Esta receita é uma improbabilidade, resultou de um momento na minha cozinha. Apeteceu-me fazer uma das especialidades de família, a galinha de molho de perdiz ("O gosto de bem comer", pág. 281). E um exemplo do que eu chamei "cozinha morgada", uma cozinha aristocrática de ilhas longínquas levada por fidalgotes que iam uma vez por ano beber a civilização nos hotéis lisboetas, cozinha francesa incluída. No regresso, "au bonheur des dames", receitas misturadas com sedas, veludos, chapéus e rendas. E os criados em fila, no Cabo da Praia, a acenar boas vindas ao patrão João Diniz, a fumar o seu charuto no deck do vapor, requinte da modernidade, só uma semana de Lisboa à Terceira.
Volto à minha cozinha que não tem nada de grandezas, que se foram com anéis e, "c'est la vie", se calhar também com dedos. A galinha coze um pouco num bom caldo de galinha, preparado antecipadamente com outra galinha. Depois vai a assar e do molho do assado só se aproveita parte. Que desperdício! Resultado: fiquei com uns bons nacos de galinha da canja, miúdos, canja, molho de assar. Com isto e mais alguma coisa, resultou uma boa empada, com a massa quebrada também da tradição familiar.
1/2 galinha com miúdos, cozida, 2 dl da canja respectiva, 3 c. sopa de gordura de assar bem outra galinha, 200 g de cogumelos (boletos, mas se não houver, paciência), 2 c. sopa de manteiga, 4 c. sopa cheias de farinha, 1 dl de vinho da Madeira ou verdelho açoriano, 2 c. sopa de nata, 2 gemas, 3 grãos de pimenta da Jamaica, noz moscada, sumo de limão.
Massa. 250 g de farinha, 60 g de manteiga (4 c. sopa), 60 g de banha, 1 c. sobremesa de açúcar, 1 c. café rasa de sal (a gosto), 2 ovos.
Cortar em cubos pequenos os restos de carne de galinha e de miúdos da canja, excepto um fígado. Cortar os cogumelos às lascas grossas e alourar na manteiga, em lume médio, regando com um pouco de sumo de limão e mexendo sempre.
Derreter o resto da gordura de assar a outra galinha, para a preparação de molho de perdiz e voltear bem com a farinha, mexendo sempre, para roux. Entretanto, aquecer a canja. Depois de arrefecido o roux, juntar o caldo e a gordura dos cogumelos e misturar muito bem. Juntar as gemas, as natas e os temperos, com um fígado esmagado. Levar outra vez ao lume, baixo, mexendo, até fervilhar, mantendo durante dois minutos. Juntar as carnes e os cogumelos e dar algumas voltas, durante meio minuto. Reservar.
Juntar os ingredientes da massa e amassar bem. Formar uma bola e deixar descansar, pelo menos 1 hora. Espalmar bem fino (cerca de 2 mm) sobre farinha, com rolo bem polvilhado com farinha. Forrar uma forma untada, rechear e cobrir com uma tampa de massa, deixando uns furos para respirar. Levar ao forno, a 200º, preaquecido. Fica mais bonito à vista, embora não seja indispensável, pincelar a tampa da empada com gema de ovo.
Servir só com uma coroa de alface ripada, temperada com flor de sal e um ligeiro fio de azeite virgem extra e umas gotas, só mesmo umas gotas, de vinagre balsâmico. Podem não gostar de um extra mas eu sou grande apreciador e acrescento umas boas azeitonas pretas curtidas com alho e orégãos.
1 comentário:
Ai...
ps: com que então "au bonheur des dames"?
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