18 fevereiro, 2006

Filosofia para todos

Um grupo de professores americanos de filosofia criou um "site", AskPhilosophers, para responder, rigorosa e pedagogicamente, às mais diversas perguntas dos leitores, algumas tão estranhas como "é ético mudar de clube porque o meu está na cauda do campeonato?".

A pergunta de hoje é:
Is nothing impossible? Is it just that a lot of things have infinitely small probabilities of occurring?
E a resposta:
I'm not sure what an infinitely small probability would be. Perhaps just a probability of 0? But that sounds like an impossible event. So perhaps you're asking whether all events have some finite non-zero probability of occurring — and whether the events we call "impossible" really just have a very small finite probability.

Philosophers have spent a lot of time trying to figure out what we're actually saying when we assign a probability to an event. Are we making some claim about the world? Or are we making a claim about our degree of confidence in some judgment about the world? I won't go into that here and instead will say a few words about impossibility.

Philosophers often distinguish between different kinds of impossibilities. Some situations would conflict with the laws of logic: for instance, the state of affairs in which I am over thirty years old and not over thirty years old is one that conflicts with the law of logic that says that "A and not-A" is false for every statement A. We might say that that state of affairs is logically impossible, or impossible relative to the laws of logic. By contrast, some situations conflict only with the laws of physics: for instance the state of affairs in which I am moving faster than the speed of light is not a possible one according to contemporary physics. It's one that is logically but not physically possible, one that is impossible relative to the laws of physics. Likewise, we might have situations that we would describe as impossible relative to the laws of chemistry, and so on. And perhaps, when someone suggests that your spouse is having an affair you will find yourself exclaiming that that's impossible, meaning not that such perfidy is inconsistent with the laws of logic or physics, etc., but that it's incompatible with what you believe to be true about your spouse.

If this is the right way to think about impossibility, then nothing is impossible — tout court. A situation is possible or impossible only relative to certain assumptions. And relative to any given body of assumptions, many situations will be impossible.
Vale a pena uma lição diária de filosofia, principalmente quando exposta em termos tão simples, ao contrário da forma detestável de expressão da moderna filosofia francesa (IMHO, na minha modesta opinião).

12 fevereiro, 2006

Notas soltas

Sobre o Público de hoje:

1. Escreve Frei Bento Domingues : "Se houvesse, nas religiões, mais humoristas do que apologetas e fanáticos, talvez elas pudessem manifestar melhor o humor de Deus". Muito interessante, escrito por um padre. Mas acho que se Deus tem humor, é um humor negro "infinitamente divino", quando se vê a humanidade que ele criou.

2. Mário Mesquita, exemplificando a volubilidade das convicções em função de experiências concretas, refere um amigo marroquino, muito moderado no seu islamismo, mas que virou ao contrário com o caso Rushdie. Não é só entre muçulmanos. Tenho um bom amigo americano que é exemplo do "liberal", senão mesmo do "radical". Depois do 11 de Setembro, passou sempre a usar a bandeira americana na lapela e converteu-se em grande defensor do "Patriot Act".

3. Álvaro de Vasconcelos lembra muito bem que a onda actual de fundamentalismo islâmico tem muito a ver com o fracasso do nacionalismo árabe laico, progressista e muito radicado em lutas anti-coloniais ou anti-imperialistas. Se o ocidente tivesse lidado de outra forma com Ben Bella, Nasser, os primeiros líderes do Baas, Soekarno, Mossadegh, até Khadafi, a história hoje seria outra. E seria interessante recuar até à 1ª guerra, no fim da qual os nacionalistas árabes foram traídos em relação às expectativas que Lawrence (o da Arábia) lhes tinha transmitido.

4. Um grupo de gente conhecida de direita está a tentar recolher assinaturas para um referendo com as seguintes perguntas:
"Concorda que a lei permita a criação de embriões humanos em número superior àquele que deva ser transferido para a mãe imediatamente e de uma só vez?"
"Concorda que a lei permita a geração de um filho sem um pai e uma mãe biológicos unidos entre si por uma relação estável?" e
"Concorda que a lei admita o recurso à maternidade de substituição permitindo a gestação no útero de uma mulher de um filho que não é biologicamente seu?"
Responderei que sim às três perguntas, embora com algumas dúvidas quanto à última.

11 fevereiro, 2006

As caricaturas de Maomé

Para além deste espaço de escrita sobre assuntos gerais, vou tentando alimentar a discussão entre amigos que fazem parte de uma lista restrita de correio electrónico. Como se imagina, muita discussão temos tido sobre a questão dos "cartoons". Tenho deixado sedimentar as minhas ideias. Creio que só é possível exprimi-las com uma distinção de níveis e aspectos.

1. Do ponto de vista pessoal. O meu sentido de humor é muito largo. Apesar de cientista, nunca me ofendi com a célebre caricatura do macaco Darwin. No meu livro de curso, fizeram-me uma caricatura devastadora, enfatizando vícios meus que cada vez mais reconheço e tento corrigir. Mas ri-me, porque sem riso não há vida que valha a pena viver. Pessoalmente, ri-me às gargalhadas com a célebre caricatura do António com o papa e o preservativo no nariz, embora admitindo que alguns católicos se ofendessem. Não, por exemplo, a minha ultra-religiosa mãe, que sempre diz que é um crime contra os filhos não se usar contracepção e não se ter meios para os sustentar. Tem 90 anos, é profundamente católica.

Mas não abdico de uma maneira sensata de ver as coisas. Imagino-me dinamarquês, quando um jornal publicou as caricaturas e ninguém adivinhava esta guerra. Soube então que as caricaturas não eram iniciativa de um desenhador, mas que tinham sido encomendadas por um pasquim xenófobo e de acordo com os objectivos do jornal. Estou certo de que eu teria escrito violentamente contra isso, e o mesmo faria se se tivesse passado em Portugal. Entretanto, muito se passou, mas creio que não devemos esquecer este ponto de partida.

2. Do ponto de vista de eu na sociedade. O meu pai, "very british", habituou-me a uma regra: nunca discutir, fora do círculo de amigos, política e religião. Há anos, a minha mulher e eu fizemos um cruzeiro no Nilo, com um simpático acompanhante egípcio. Tivemos antes nós dois uma conversa. Quando estávamos os três juntos, com o guia, ela não usava calções nem falava, apesar de toda a vontade que lhe vinha à boca, sobre a execrável situação da mulher nas sociedades muçulmanas. A viagem correu muito bem.

Se eu fosse caricaturista, tinha publicado algumas daquelas caricaturas, deliciosas, por exemplo, a das virgens esgotadas. Mas não teria figurado Maomé com uma bomba, identificando-o com o terrível terrorismo islâmico. Também, se fosse o director do jornal, não teria permitido a publicação dessa caricatura, muito menos encomendá-la. Quem, como eu, manda com frequência artigos para os jornais, sabe que muitos são rejeitados e respeitamos isto. É o direito do jornal. A liberdade de expressão está em foco, mas há algum jornalista que nunca tenha tido essa liberdade coarctada pelo director ou pelo chefe de redacção?

3. Do ponto de vista da nossa civilização. Tudo o que se tem escrito é à volta da liberdade de expressão. Muito bem, mas não é o único valor civilizacional que temos de defender, nesta situação, é também o do laicismo ou laicidade do estado. Bem sei que seria deitar mais achas na fogueira, mas não devemos esquecer isso.

Os meus leitores habituais sabem como eu abomino o politicamente correcto, no pensamento e, mais ridículo, na linguagem. Assim, ninguém me leva a dizer que todas as civilizações são iguais. Elas nem sequer são iguais a si próprias: todas nascem, sobem ao apogeu e degeneram. Se não, ainda vivíamos no império romano. A árabe foi uma grande civilização, hoje, para mim, claramente que já não é. Aceito é que seja muito difícil medir um civilização, mas sempre usámos alguns critérios base: prosperidade, hegemonia, poder (estes os aspectos "criticáveis"); mas também cultura, ciência, artes, pensamento humanista, e, hoje, desenvolvimento humano.

Para mim, a teocracia é uma característica diminuidora do mérito de uma civilização. É certo que a tivemos, mitigada na partilha de poder entre o rei e a igreja. Por alguma razão a revolução francesa impôs como valor fundamental a separação e o laicismo, porque a ligação era um elemento essencial do antigo regime. A dificuldade é que, no caso do Islão, é difícil falarmos apenas de religião. Se assim fosse, a "intocabilidade" dos sentimentos religiosos teria, neste caso, outra dimensão. O problema é que o islão é, indissociavelmente, uma ordem social e uma política e, em boa parte, intrinsecamente agressiva (não, não estou a esquecer as cruzadas!). E hoje, neste mundo globalizado e interdependente, toda a gente tem o direito de discutir a política de qualquer estado, mesmo que, com isto, esteja a discutir uma religião.

4. Do ponto de vista dos estados europeus. Há dias, o nosso MNE alinhou na onda europeia das meias tintas e da "realpolitik". Defendeu vagamente a liberdade de imprensa mas manifestou a sua simpatia pela indignação dos que se sentiram ofendidos, criticando a irresponsabilidade do jornal dinamarquês, chegando mesmo a usar palavras de clara condenação. Para mim, é uma atitude à Munique de 1939. Eu bem sei que há petróleo e o medo generalizado dos ataques terroristas. Mas lembremo-nos de Churchill. Ceder ao medo e à chantagem é logo a perda da primeira batalha. Um governo não tem nada que fazer declarações valorativas sobre actividades privadas. Que a publicação das caricaturas foi infeliz, estou de acordo, mas é tema da vida privada e nenhum ministro, em nome do estado, tem de se pronunciar.

Dos comunicados europeus que li, o do nosso MNE é o mais lamentável. Para além da parolice da referência a "Cristo e a sua Mãe, a Virgem Maria" (sic; só faltava ter-se benzido ao dizer isto) e da "lição" de história sobre a raiz comum das religiões monoteístas em Abraão, nem uma palavra a condenar os desmandos que esta questão está a provocar nos países islâmicos.

5. Do ponto de vista do confronto de civilizações. Tendo a alinhar com os que escrevem que, com a geopolítica, o petróleo, a mundialização das novas ameaças (ie, terrorismo internacional), estamos a entrar numa "guerra de civilizações", ocidental e islâmica (enquanto não aparece a oriental).

Esta guerra tem dois terrenos: o primeiro é mundial, o segundo é a nível de cada pais com comunidades islâmicas relevantes. Não vou falar agora sobre isto, embora seja um problema indissociável do problema internacional.

Claro que não tenho receitas, porque o problema não é apenas cultural; as tensões culturais acabam sempre por se resolver. Veja-se o exemplo paradigmático da excelente síntese cultural feita pelo Japão após a 2ª Guerra. Agora, o problema é muito mais fundo, porque a religião, sendo elemento também da cultura civilizacional, é muito mais funda.

Desde o 11 de Setembro que toda a gente se interroga: como dar relevo ao mundo islâmico que, como entre nós, segue as instruções de ulemas inteligentes, modernos e mundividentes? Confronto-me com alguns problemas. Em primeiro lugar, eu que até não vou muito com hierarquias, reconheço que as figuras máximas das igrejas desempenham um papel regulador muito importante. O Islão não tem uma autoridade máxima.

Li há tempos um relato pouco difundido de uma reunião com Bento XVI (e bem bom, senão a guarda suíça teria de ser reforçada). Segundo o papa, há uma diferença essencial entre os textos revelados. No judaísmo (Moisés e os profetas) e no cristianismo (os evangelistas), Deus transmite uma revelação a homens para as escreverem para o seu tempo, mas sem prejuízo da reinterpretação ao longo dos tempos. Pelo contrário, o arcanjo Gabriel ditou, textualmente, o Corão a Maomé. É a palavra de Deus infalível. Há margem para interpretação? Pode assim essa religião actualizar-se e reformar-se?

Lembro-me de uma excursão estragada quando visitei Israel. O guia, israelita de esquerda e muito inteligente, foi massacrado por uma turista malaia. Quando ela o defrontava com uma tese, ele respondia que aquilo era velha história bíblica e que precisava de ser reactualizada. Ela abria o Corão, lia uma passagem e dizia, a terminar a conversa, "isto é a palavra de Deus único, que também tem de ser o seu".

6. Do ponto de vista do direito internacional. Incendiar embaixadas, com óbvia complacência das policias? Quem pode pactuar com isto, sem renegar os princípios mínimos da ordem internacional? Muitos protestam contra as intervenções bushianas à margem da ordem internacional, eu próprio. Mas como é que temos autoridade para afirmar essa ordem se contemporizamos, "politically correct", com este populismo obviamente fomentado por estados?

Finalmente, uma nota cínica. Li hoje (dia em que escrevo) uma notícia importante que talvez passe despercebida. Desde há muito tempo que parece haver na Dinamarca uma rivalidade pessoal feroz entre dois candidatos à supremacia da influência na comunidade islâmica. Um deles foi descobrir estas caricaturas já de há alguns meses e lançou uma hábil campanha político-religiosa junto dos países árabes. Coisa pequenina e mesquinha, a rivalidade entre dois pequenos líderes locais, mas é o efeito borboleta.

PS – Isto já vai longe. Peço desculpa, mas não me parece assunto para tratar em duas linhas. Acrescento ainda uma nota. Estou a escrever numa espécie de blogue e ninguém duvida da influência da blogosfera. Nestas semanas, tenho feito pesquisas intensas acerca de sítios ou blogues que expressem o ponto de vista de muçulmanos "modernos". Alguém já os encontrou? Eu não.

04 fevereiro, 2006

Reforma administrativa

Alinho com os que dizem que a redução do défice passa primeiro pela redução da despesa pública. Do lado da receita, dou prioridade à eficiência da cobrança das receitas fiscais e ao combate à evasão, bem como a regularização das dívidas à segurança social, mas parece-me ser um processo mais moroso e longe da plena eficácia. Numa fase imediata e urgente, até compreendo que a redução da despesa se faça em dimensão "macro", olhando para os grandes sectores da despesa: funcionalismo público, saúde, segurança social, serviço da dívida. Mas acho que o imediato não deve prejudicar outras políticas, também a serem lançadas no imediato, até por só terem efeitos a prazo.

Já tenho escrito que uma delas seria a da adopção de orçamentos zero. Isto é, fazer tábua rasa dos orçamentos históricos que se vão mantendo com aumentos acríticos em função da inflação e nunca discutidos. Dir-me-ão que, se estes orçamentos forem cumpridos sem saldos é porque estão ajustados. Quem teve alguma experiência de direcção na função pública, sabe que isto não é verdadeiro: gasta-se indiscriminadamente até ao último euro do orçamento.

Por razões que seria longo explicar, eu fui defrontado com a necessidade de elaborar um orçamento zero. Teve de se fazer uma estimativa real de todas as despesas, rubrica a rubrica. Para maior rigor, foi necessário introduzir contabilidade analítica, que não existia, e discutir extensivamente com cada centro de custo as suas necessidades orçamentais. No fim, foi divertido comparar esse orçamento com o orçamento "histórico" anterior.

Mesmo antes dos orçamentos zero, diz-me a experiência de gestão que há coisas imediatas muito úteis. Tudo o que se segue passa pela indexação, coisa que julgo nunca ter sido feito. Seria um valor padrão, para cada despesa, que, em caso de ultrapassagem, teria de ser justificado com fundamentação criteriosa. Vou começar pelas menores.

a) Cartão de crédito do dirigente e despesas de representação: julgo que devia ser fixada uma percentagem máxima em relação ao orçamento total. Já me falaram de um caso de um director-geral que todos os dias almoça com a sua secretária (?) num restaurante de luxo, debitando a esse cartão.

b) Correio e telefones: também fixação de uma percentagem máxima em relação ao orçamento.

c) Transportes: conjugado com a despesa de combustíveis, traduz (com importantes excepções de alguns organismos específicos) o uso e abuso do automóveis de serviço pelos dirigentes. Outro aspecto a inspeccionar.

d) Limpeza, em geral em outsorcing: facilmente indexável à área total das instalações.

Passo agora à grande fatia da despesa, a do pessoal. Os organismos diferem muito. Alguns são simples secretarias, outros tecnicamente complexos, com quadros de pessoal forçosamente mais qualificados. Mas três componentes da despesa de pessoal são facilmente indexáveis, independentemente da característica do organismo:

1. Pessoal de contabilidade: é preciso distinguir três tipos de operações. Umas são regulares mas espaçadas e independentemente do tipo de organismo, já quase automáticas com informatização mínima: processamento de vencimentos, mapas para a segurança social, mapas de execução orçamental (será que alguém no Ministério das Finanças os lê?). Depois, a contabilização das ordens de despesa, cabimentos, facturação, autorizações de pagamento. Operação de tesouraria. Tudo depende do número de ordens de despesa. Donde, o pessoal de contabilidade é facilmente indexável. O mesmo para a facturação, no caso de organismos com receitas próprias.

2. Serviço de pessoal: há tarefas básicas, mas menores. O grosso é o processamento de abonos e descontos, de faltas, de férias, de despesas da ADSE, etc. Obviamente, isto é directamente proporcional à dimensão do organismo. Uma vez mais, o pessoal encarregado destas tarefas é facilmente indexável.

3. O mesmo em relação ao pessoal da secretaria geral. O seu número deve ter um índice médio, em função do número de processos administrativos.

É assim tão difícil uma reforma administrativa?

À margem, a coisa mais surrealista com que me defrontei enquanto dirigente da função pública. Um organismo com autonomia administrativa e financeira dispõe de um orçamento de receitas próprias - prestação de serviços, propinas, análises clínicas, só para dar exemplos do instituto de que fui director. A cada mês, tem de se entregar no tesouro o produto das receitas. No mês seguinte, faz-se uma requisição de fundos para devolução dessas receitas. Surrealista!