30 janeiro, 2006

O novo bloco central: Cavaco-Sócrates

Se Cavaco Silva fosse primeiro ministro, em vez de Sócrates, provavelmente estaria a fazer a mesmíssima política para a redução do défice orçamental. Por isto, creio que não vai haver grandes problemas na coabitação. Vão-se entender, melhor talvez do que Sócrates se entenderia com Soares e, muito mais, com Alegre. Creio mesmo que, ao contrário do que alguns temem, esse entendimento vai ser mais importante para o próximo PR do que qualquer plano de relançamento da direita partidária. Um homem como Cavaco só se interessa pelas suas próprias ideias e política, até tem algum desprezo pelos partidos.

Com isto, ambos correm graves riscos. Julgo que Cavaco pode gerir bem algum distanciamento em relação a Sócrates e à política do governo mas, pelas razões que disse, provavelmente vai dar uma imagem de sintonia com ela que o corresponsabilizará perante a opinião pública. Não é assunto que muito me interesse.

Interessa-me mais o que isto pode significar para o PS, não tanto por ele próprio mas sim pelas repercussões em toda a esquerda. Começo por dizer que tenho uma atitude aparentemente paradoxal em relação a este governo, quando encaro as suas medidas tanto no plano técnico como no politico. No primeiro plano, concordo. No segundo, considero a actuação do governo totalmente inábil, mesmo desastrosa. Parece-me que não haverá remédio, isto está na natureza de Sócrates. O problema é que isto se pode reforçar pelo que julgo vir a ser o apoio de Cavaco. Vão-se juntar a fome e a vontade de comer.

Um dos riscos que vejo é o da formação a curto prazo de um "bloco central" camuflado, uma mistura de Blair e Merkel em que os rótulos partidários pouco contam. Com isto, provavelmente o governo aguentará a legislatura, mas as próximas eleições serão de um pasmo como nunca vimos. A decisão pantanosa entre PS e PSD, prevejo, não se fará por diferenças politicas essenciais mas sim por coisas menores, simpatias pessoais, telegenia, marketing da campanha, expectativas de "jobs for the boys". Possivelmente, o CDS à direita e o PCP e o BE à esquerda lucrarão com isto, mas não se afectará o resultado essencial.

A afirmação de uma alternativa realista, nestas eleições presidenciais, quando Soares se identificou tanto com o PS de Sócrates, poderia ter vindo de Alegre. Fui seu apoiante e seu eleitor, embora, afirmando a minha atitude crítica, não tenha sido chamado a qualquer participação na campanha e, agora, no que fazer do milhão de votos. Mas, nesse aspecto do distanciamento em relação a Sócrates, fiquei frustrado. Não vi uma afirmação clara de como Alegre poderia ser um moderador da inabilidade e falta de sentido social da política do actual primeiro ministro, afinal ainda seu companheiro de partido.

Segui com atenção os trabalhos deste fim de semana do movimento "alegrista". Fiquei satisfeito pela exclusão da fundação de um novo partido, porque julgo que seria uma aventura condenada ao fracasso. Quanto ao clube ou associação, muito bem, embora tenha dúvidas sobre a sua viabilidade (é ilusório pensar em um milhão de membros virtuais) e sobre o efeito que nele vai ter a decisão de Manuel Alegre de continuar ou não com a sua vida partidária a alto nível. Tenho a minha opinião, mas a decisão é dele e certamente bem pensada.

Mas mais me preocupam as linhas orientadoras desse movimento: "o objectivo é o debate e defesa de causas políticas já defendidas por Manuel Alegre durante a campanha ou outras que, entretanto, venham a surgir. Por agora os temas e as causas são, por exemplo, a justiça, a desertificação do território, a igualdade de género, a corrupção." Muito bem, mas isto reflecte uma perspectiva política clássica. É importante discutir tudo isto, mas ainda estaremos a fazê-lo daqui a vinte anos. Anoto, todavia, o "outras que, entretanto, venham a surgir".

Não sei ainda se virei a ser membro desse clube politico. Se for, bater-me-ei pelas "que venham a surgir". A minha prioridade seria tudo o que combatesse, nas ideias, o novo bloco Cavaco-Sócrates: Como ter uma política de equilíbrio financeiro-orçamental compatível com a justiça social e civicamente compreensível pelos necessariamente afectados? Como promover a competitividade nacional, equilibrando isto com a defesa ou remobilização dos milhares de postos de trabalho obsoletos nas empresas condenadas à falência ou à deslocalização? Como qualificar os portugueses, do ensino básico ao superior, sem exclusões sociais? Como harmonizar as regras económicas comunitárias com um desenvolvimento sustentado e, principalmente, com o desenvolvimento humano?

Para isto, vale a pena um novo centro de reflexão e influência política à esquerda. No entanto, para debates vagos ou tradicionais, não adianta. Gostaria de pensar, vou ver, que os apoiantes mais activistas de Alegre se diferenciam por coisas estruturais, mais do que bandeiras, por muito valor simbólico que tenham. Se sim, alinho.

29 janeiro, 2006

Teresa e Lena

Antes de falar sobre a Teresa e a Lena, umas considerações prévias. Ao contrário do modo anglo-americano, pragmático e partindo frequentemente do caso particular para o geral, nós, pelo menos os latinos, temos sempre uma atitude sistemática. Quero dizer com isto que temos dificuldade em olhar para o concreto, para o caso particular e daí partir para uma solução geral. Ficamos sempre à espera da grande lei, da grande reforma. Por isto, estamos sempre a fazer essa coisa inútil que é culpar o sistema. Contra isto, falo sempre da atitude à engenheiro. Se uma máquina está a trabalhar mal, não se revê todo o seu projecto, substitui-se é o parafuso ou o transístor que estão a funcionar mal.

O casamento de homossexuais, que tem toda a minha concordância, vai ficar encravado durante muito tempo em discussões políticas, considerações da oportunidade, equilíbrios partidários. A Teresa e a Lena, que vivem juntas, vão atirar uma pedrada ao charco. Vão-se apresentar numa conservatória do registo civil a requerer o seu casamento. Claro que lhes vai ser negado, com base no Código Civil. Daí passarão para o Tribunal Constitucional e, a seguir, para o Tribunal Europeu. Pode parecer um disparate quixotesco, mas todas as avalanches começam numa pequena bola de neve.

28 janeiro, 2006

Os dislates do rescaldo

Nos últimos dias, tenho lido coisas espantosas, como comentário aos resultados das eleições presidenciais. Não fosse o humor fino (muito pouco correspondido nos comentários) de Luís Aguiar-Conraria em "A destreza das dúvidas", ficaria confrangido. O pior exemplo é o incrível escrito de José Medeiros Ferreira, no "Bicho carpinteiro". Lamento pessoalmente, por ser um velho amigo. "Merece" transcrição:
"Muitos foram os que declararam que dormiriam bem com qualquer PR que fosse eleito. A declaração soporífera foi a mais das vezes feita por gente de esquerda a apresentar o seu atestado de sabedoria democrática.
Contados os votos, e numa interpretação selvagem, só os setecentos mil em Mário Soares parecem sólidos em termos de defesa do regime democrático representativo. Do mais de um milhão que cifrou Manuel Alegre, por muito cívicos que sejam, ninguém saberá quantos se apresentariam para soerguer o sistema de partidos.Os populistas que levaram Cavaco Silva aos ombros, desde que este escondesse os apoios do PSD e do CDS-PP, também não morrem de amores por aparelhos partidários e gostariam de ver o PR eleito ao leme. Embora Jerónimo de Sousa tenha andado de Constituição na mão, ninguém em consciência acha que se deve pedir aos comunistas que sejam convictos defensores dos regimes pluralistas, representativos e ocidentais, ou meramente europeus. Descontados esses quatrocentos mil votos, resta-nos os trezentos mil de Francisco Louçã cuja estadia no pórtico do sistema não permite um sono prolongado ao relento.
Agora já podem ir para a cama."
Mal vai uma democracia cuja defesa só assenta em setecentos mil votos. Como eleitor de Manuel Alegre, sinto-me ofendido por esta minha exclusão da defesa sólida da democracia. O que me vale é conhecer, desde os nossos tempos de liceu, o gosto de JMF pela "boutade". Ou estará a falar a sério?

23 janeiro, 2006

Notas sobre as presidenciais

1. A formalidade banal mas necessária: Sr. Presidente, não votei em si, lamento pessoalmente que tenha ganho, mas, a partir deste momento, é o Presidente da República que respeitarei como tal.

2. Nestas eleições, aflorou de vez em quando a questão de uma maioria de esquerda definidora da nossa sociedade. Julgo que é uma ideia falsa e politicamente perigosa. Trinta anos depois do 25 de Abril, a nossa democracia "serenou" e apresenta um traço comum às democracias actuais: não há maioria estrutural de esquerda nem de direita. Tudo se decide pela movimentação sempre muito imprevisível e conjuntural do "centrão". Há meses, deu maioria absoluta a Sócrates, agora a Cavaco. Como homem de esquerda, isto preocupa-me porque muito provavelmente vou assistir a uma tendência da esquerda predominante para atenuar as suas posições, visando a conquista do "centrão" - ou o pântano, o "marais", como costumam dizer os franceses.

3. A esquerda apresentou-se auto-diminuída a estas eleições. Há muito tempo que se perfilava a candidatura de Cavaco, com boas perspectivas de vitória. A frase de Soares, "não deixarei que haja o passeio triunfante de Cavaco pela Avenida da Liberdade" revela, no fundo, essa convicção. Porque é que o PS não encarou a sério essa candidatura e se remeteu a uma posição frouxa, quase acomodatícia? A meu ver, Sócrates é o grande derrotado destas eleições (a não ser que, como se diz, não lhe desagrade muito o resultado). Teve um clamoroso erro de "casting", como é moda dizer. No entanto, como escreverei adiante, creio que nada lhe acontecerá.

4. E é a Sócrates que se deve o momento mais desagradável desta noite eleitoral, coisa que nunca tinha visto, o abafamento da intervenção de Manuel Alegre. Um primeiro ministro tem de ter maneiras. Quando não as tem, isto revela alguma coisa má do seu carácter.

5. Apoiei publicamente Manuel Alegre e, claro, votei nele. Mas nunca pensei que tivesse uma votação tão expressiva. Que vai fazer Manuel Alegre? Em primeiro lugar, no PS se, como é provável, nele se mantiver. Creio que pouco, a não ser capitalizar este resultado para uma eventual nova candidatura a secretário geral. Nessa altura, duvido de que tenha muita legitimidade para o fazer, porque estes seus eleitores não se reverão num candidato agora para-partido, contestatário da lógica e poder dos aparelhos mas que, depois, regressa à luta pelo poder partidário. Por outro lado, não estou certo de que a diferença Alegre-Soares, no eleitorado, tenha equivalente no partido. Todo o aparelho e os notáveis do PS estiveram com Soares e Sócrates. Infelizmente, no PS, e não só, os jobs são muito mais importantes do que as ideias e os valores.

6. E o que fazer de um milhão de votos, fora do PS? Também aqui estou pessimista. Lembro-me do movimento em torno da candidatura Pintasilgo - é certo que com menos votos - que se desvaneceu no dia seguinte. São, em muito, movimentos de protesto, dificilmente convertíveis numa intervenção futura positiva. E sob que forma? Uma associação política? O pragmatismo actual leva a que as pessoas só se empenhem no eficaz e, queiramos ou não, o eficaz são os partidos. Um novo partido socialista com verdadeira imagem de esquerda? Depois do BE, apesar de algumas fragilidades e incongruências, o espaço ficou reduzido.

7. Manuel Alegre vai ser acusado de ter dividido a esquerda, diga-se PS. Pelo contrário, estou convencido de que a opção de Sócrates por Soares iria causar grande abstenção à esquerda. Alegre fixou esse eleitorado.

8. A república (romana) respeita os seus heróis. Soares é-o. Por isto, não digo mais nada.

9. Jerónimo de Sousa mostrou novamente ser uma mais-valia do PCP. Pergunto-me se um homem com tal capacidade intelectual e com grande sentido humano será de facto um ortodoxo do estilo duro e intelectualmente medíocre que conheci em outros funcionários do PCP (nunca falei com Jerónimo de Sousa). Não virá a ser o Gorbatchov do PCP?

10. Finalmente, Louçã, que foi, para mim, a surpresa negativa destas eleições e, juntamente com Soares, um derrotado em termos pessoais. Tudo indicaria que, com as suas qualidades, ultrapassaria em eleições muito personalizadas os resultados do BE nas legislativas. Há homens que apresentam em alto grau tanto qualidades como defeitos. Creio que Louçã foi vítima destes últimos.

11. Garcia Pereira, do PCTP/MRPP: isto ainda existe?!

15 janeiro, 2006

O meu governo

Fim de semana é para descontrair e para algum humor. Esta campanha tem-me dado que pensar. Já assumi que nunca vou ser PR, mas, PM, quem sabe, se der para o jeito o meu próximo Partido Surrealista. Acho que um mínimo de transparência é divulgar desde já o que seria a composição do meu governo.

Presidência – Alberto João Jardim, obviamente.

Negócios Estrangeiros – Emb. Jorge Ritto.

Defesa – Jaime Neves.

Administração interna – o presidente da Securitas.

Moralização pública – Isaltino de Morais.

Justiça – Rui Guerra ou Fátima Felgueiras.

Finanças – José Braga Gonçalves.

Economia – Pina Moura, outra vez, agora em grande consagração.

Educação superior e ciência – Queriam que eu dissesse?!

Agricultura e pescas – Quem mais sobreiros tiver desbastado no ano passado, que isto é que é coragem.

Obras públicas – Avelino Torres.

Educação – M. Fátima Bonifácio.

Cultura – Quim Barreiros.

Ambiente – Miguel Champalimaud.

Igualdade – João César das Neves.

Trabalho e segurança social – Luís Delgado

Saúde – O residente na cave do HSMaria, ninguém deve perceber mais de hospitais.

SE porta-voz – Manuela Moura Guedes.

14 janeiro, 2006

Incompetência

O caso em foco dos registos telefónicos de altas figuras do Estado é, obviamente, muito grave, em termos políticos. No entanto, há outra perspectiva, igualmente preocupante, a da incompetência, factor de descredibilização da coisa pública e de toda a nossa vida social. Já que se fala na justiça, tendo a pensar que muitas das suas falhas não representam intenções malévolas ou menos democráticas, muito menos falta de integridade ou cabalas, mas principalmente incompetência. Até na actividade legislativa ela se nota: leis com disposições ambíguas, até contraditórias, para além de péssima redacção.

O nosso nível educacional, quantitativo e qualitativo, é muito baixo e isto reflecte-se obviamente no nível geral de competência, a todos os níveis. Pode ser só o canalizador que nos deixa o tubo mal apertado, o electricista que troca a polaridade de uma ligação, a empregada doméstica que me estraga uma camisa porque não sabe ler qual a temperatura máxima de lavagem. Mas também é o médico que considera como indigestão uma peritonite em começo, o advogado que manda o cliente para a prisão porque se esqueceu de uma formalidade essencial num recurso, a directora de serviços que faz o responsável incorrer em processo disciplinar porque se esqueceu de que um determinado despacho exigia publicação no Diário da República. Uma ministra publica um despacho com uma fórmula matemática reitertiva e incalculável. E ninguém é verdadeiramente responsabilizado, porque tudo isto faz parte natural da nossa vida.

Este caso começa por a PT só ter registo de facturação detalhada por cliente e não por número de telefone. Apesar de tudo, é aceitável, porque o cliente é que determinante para o fim em vista. Aqui, diz-se que o cliente era o Estado. Claro que não, porque então sairiam milhares de contas. Presumo que seja um cliente Estado muito excepcional, o que contrata e paga os números confidenciais das altas figuras. Merecia cuidado muito especial.

Um funcionário ou técnico da PT passa os dados para um ficheiro Excel. Incrivelmente, em vez de apagar os dados não solicitados ("select rows > delete rows", nada mais simples), limita-se a aplicar um filtro. O magistrado do MP lê-os no ecrã e não consegue ver que há ali um filtro. Não tem toda a culpa. Nada na sua formação de direito o habilitou para esta competência transversal hoje tão básica que é o domínio geral das tecnologias da informação. E ainda há quem considere como bizarria o paradigma de Bolonha!

PS - A propósito de responsabilização, uma história pessoal ilustrativa. O IHMT, de que fui director, tinha uma actividade clínica importante. Numa inspecção, fui censurado por ter feito para o instituto um seguro de responsabilidade civil a cobrir indemnizações por erros médicos. Era ilegal! Quase que tive que o pagar do meu bolso. Mas, mais uma vez, a incompetência. Este processo passou por várias mãos responsáveis e ninguém detectou essa ilegalidade. É perigoso ser-se dirigente.

13 janeiro, 2006

A culpa do PS

Desacreditar as sondagens é uma patetice, mas é preciso saber lê-las e, principalmente, ter em conta os intervalos de confiança. Assim, não vou falar de Cavaco. Se não houver uma grande alteração decorrente da campanha, vai ganhar as eleições à primeira volta, por muito que isto me desagrade. Diferente é o caso da disputa Alegre-Soares.

As posições relativas na primeira volta vão-se alternando nas sucessivas sondagens, mas sempre dentro da margem de erro. Mais significativa é a diferença sobre qual deles obteria melhor resultado contra cavaco, numa segunda volta. A vantagem, significativa e constante, vai para Alegre. Podem dizer-me que isto não interessa e que é contraditório com a minha previsão de eleição logo à primeira volta. Penso que não, porque há lições políticas a tirar.

Adivinho que a noite de 22 vá ser de "facas longas" para o campo, partidário e eleitoral, do PS. As culpas serão atiradas, principalmente, contra os candidatos, quando julgo que o principal responsável é a direcção do PS. O que as sondagens sobre a segunda volta mostram é que Alegre é um candidato que não só divide quase a meias o eleitorado do PS como, principalmente, é mais abrangente contra Cavaco. Imagine-se o que seria se tivesse em campanha todo o apoio do PS, embora talvez alienando com isso alguma parte do seu actual apoio. Para mim, Sócrates errou na escolha e é ele que deve ser questionado pelo PS.

08 janeiro, 2006

Notas soltas

1. Desde há algum tempo que sou leitor habitual do blogue Bicho Carpinteiro, principalmente por causa dos escritos do meu velho amigo José Medeiros Ferreira. Agora, transformou-se num panegírico acrítico e inflamado da campanha de Mário Soares. Nele pontifica Joana Amaral Dias, cada dia mais irreconhecível como dirigente do BE.

Hoje creio que atingiu o máximo. Descredibiliza a última sondagem da Universidade Católica, que volta a colocar Alegre à frente de Soares. E descredibiliza com o argumento de que a sondagem é feita pela UCP, universidade em que ensina Cavaco Silva. A jovem senhora não percebe como isto é ofensivo para os profissionais sérios e competentes do centro de sondagens da UCP? Ou é porque "fazer fretes" é para ela coisa de somenos e banal?

2. Um pequeno facto mas elucidativo. Ontem, na campanha de Soares, os jovens gritavam "Belém é para um doutor, não para um professor". Demagogia, estupidez, mau gosto, ou tudo isso junto?

3. Ainda uma piada do Bicho Carpinteiro, sobre a entrevista da SIC a Manuel Alegre, por ele aparecer com a sua espingarda de caça. Fui pescador, mas nunca gostei de matar caça. Não importa. Há muitos milhares de portugueses apaixonados pela caça, coisa visceral da nossa civilização. Se a entrevista fosse comigo, achava muita graça a ser filmado com um taco de golfe, no fim do 18º buraco e antes de passar ao 19º na "club house" (sabem o que é?).

Mas isto tem a ver com a ideia com que fiquei dessa entrevista. Para mim, foi o melhor momento de Manuel Alegre. Descontraído, mostrando-se como pessoa até ao ponto critico em que, para além dele, é devassidão da intimidade. Mas, com isto, fiquei com uma dúvida. Será que a cultura e formação intelectual de Manuel Alegre lhe permite uma eficiência de campanha que, por natureza, vai contra a sua personalidade? Conseguirá ele dominar os rodriguinhos medíocres de uma campanha eleitoral? Lembro-me de outra grande personagem, Maria de Lurdes Pintasilgo. Pagou o preço da sua qualidade intelectual e ética.

4. Muito se tem escrito sobre os poderes presidenciais. Com graça, António Barreto lembra hoje mais um, o "chamar a Belém". Sampaio já chamou a Belém Souto Moura, os chefes militares, Marcelo Rebelo de Sousa, agora os participantes nisso que, para mim, é o escândalo EDP-Iberdola (hei-de escrever sobre isto). No entanto, é um "poder" que tem sido mal exercido. Excita a comunicação social, mas depois tudo fica opaco, nada se sabe sobre o que o PR concluiu. Era bom que fosse exercido só quando o PR está seguro de que, depois da chamada a Belém, pode fazer uma declaração pública com impacto.

07 janeiro, 2006

Necrofilia cultural

Na sua crónica habitual no Público de hoje, Vasco Pulido Valente (VPV) escreve, a propósito da candidatura de Mário Soares:
Mas nem por tudo isso Mário Soares deixou de ser parte e parcela de uma cultura burguesa que morreu [JVC, itálico meu]. Uma cultura em que a arte, a história, a filosofia, a política, a conversa, o conforto e a cozinha contavam. Uma cultura cosmopolita, que lhe permitia estar em casa em Itália ou em França, em Inglaterra ou em Espanha, na Alemanha ou até na América "liberal" da costa leste. Um homem destes não podia perceber (e não percebeu), nem se podia adaptar (e não se adaptou) a uma civilização de "massa". Principalmente, um homem destes não podia ter a mais remota empatia pelo "novo homem", reduzido a uma educação técnica, com ideias sumárias sobre a sociedade e a vida, imitativo, grosseiro e dedicado a uma ambição primária e pessoal.
O que motiva esta minha nota não é a campanha mas a referência a uma cultura burguesa que morreu. Como, em grande parte, é a minha, isto dá-me que pensar. Serei, como muitos outros, VPV incluído, um dinossauro cultural em extinção?

Quando muito, posso interrogar-me sobre a tendência para extinção, por perda de hegemonia (leia-se Gramsci). Que tenha já morrido essa cultura, é mais uma "boutade" a que VPV já nos habituou. Não creio que alguma vez na história uma cultura tenha morrido, em termos absolutos, de desaparecimento. Cada nova formação cultural vai apagando os aspectos em que a cultura antes dominante entra em contradição com novas configurações sociais, mas, ao mesmo tempo, mantém delas valores essenciais, a que, talvez pomposamente, chamamos o património cultural da humanidade. A revolução francesa decapitou Luís XIV mas não destruiu o palácio de Versalhes.

Creio mesmo que a tendência actual é para a vitalização em coexistência de várias formas de cultura. É certo que hoje, principalmente graças às variadas formas de informação e de comunicação social, há grande pressão para uma certa homogeneização cultural. No entanto, vejamos o caso dos EUA. A sua globalização interna não impede que haja a cultura de bota e chapéu de cowboy, de budweisser e de mau gosto, mas também, ao mesmo tempo, principalmente em ambas as costas, os melhores museus, os melhores concertos, as grandes exposições, tudo a abarrotar de gente. E são todos da velha burguesia os milhões de turistas que hoje nos impedem de ver bem a Gioconda ou a Capela Sixtina?

Pelo contrário, a massificação da educação o que está causar é o acesso de cada vez mais pessoas à tal cultura "morta". O que admito é que ela não reflecte, ao ritmo da vida, as mudanças sociais e a enorme mudança da "outra cultura", que não quero adjectivar. Claro que esta dicotomia cultural sempre existiu. Os metecos conheciam Homero? O padeiro de Paris era capaz de ler Diderot?

Mesmo isto se tem atenuado. Os intelectuais snobs de hoje acham-se cada vez mais um grupo restrito de elite, perante uma massa de jovens (vou servir-me deles como exemplo) incultos. É certo que isto pode causar um desequilíbrio na relação-sobreposição entre elite intelectual e elite social e económica (prefiro não falar da "elite" politica...). A ascensão à elite social foi explosiva, e bem bom. Muitos destes não estão preparados para ter igual nível em termos de elite cultural, provieram de meios menos propícios, fizeram-se por si, formaram-se numa educação superior massificada, fábrica de profissionais. Terem ascendido é o seu grande mérito e não se pode continuar a vê-los por um padrão ultrapassado.

Por outro lado, também há nisto um equívoco, na comparação dos tempos. Nos meus tempos de estudante universitário, em que a selecção social era muito maior, mesmo assim quantos dos meus colegas nunca liam nada de qualidade, nunca conheceram S. Carlos, não tinham a mínima ideia de quem tinha sido Demócrito, de jornais só liam a Bola. E até nunca tinham lido os Lusíadas, do primeiro ao último verso.

O que não nos apercebemos, muitas vezes, é como essa "outra cultura" tem evoluído. Nesse meu tempo, ouvia-se o António Calvário, hoje, entre muita coisa, há excelente "música ligeira". Hoje, há quem se delicie com a Margarida Rebelo Pinto, mas havia colegas minhas que liam Corin Tellado, creio que muito pior. E, depois, a net, nem vale a pena dizer mais nada.

Com tudo isto, o que me repugna é a atitude arrogante dos que se fecham cada vez mais no seu umbiguismo "cultural", ao ponto de, como nesta declaração de VPV, se assumirem como mortos vivos. Volto a lembrar o mestre Bento de Jesus Caraça, quando escrevia que um dever das elites era o de lutar pela cultura como património da comunidade inteira, de lutar pela tarefa essencial de "despertar a alma colectiva das massas".

VPV, Filomena Mónica, muitos outros, são exemplo do oposto. Criticam, ou até ridicularizam, do alto do pedestal, a "canalha" de mau gosto, que, no fundo, se calhar, invejam pelo seu sucesso na vida de hoje. Não produzem uma ideia nova, não ensinam ninguém. Julgam-se novos Eças ou Ramalhos, mas estes só ridicularizavam como instrumento de pedagogia cívica e cultural, nunca como forma de narcisismo. Infelizmente, há uma coisa muito nossa, a decadência. Pior, a decadência auto-satisfeita.