25 março, 2006

Esquerda e direita

Conheci Fernando Gil creio que apenas uma vez e, da sua obra, sou conhecedor limitado, embora sempre o tenha lido com muito agrado. Sublinho o valor que atribuía ao conhecimento das ciências por um filósofo, conhecimento em que não incorria em erros graves ou em abusos de utilização tão vulgares nas vigarices intelectuais da escola filosófica francesa.

Do pouco que li dele nos últimos anos ("Impasses") e de notícias sobre algumas intervenções suas na política, fico com a impressão, talvez injusta, de um "desvio para a direita". A expressão, aliás, não é minha, mas sim de Eduardo Prado Coelho, na sua coluna do Público. Isto serve-me de pretexto para alguma reflexão ligeira sobre a esquerda e a direita.

Só um fanático é que não se coloca hoje esta questão e continua preso aos esquemas de há um século. Em primeiro lugar, não vejo lugar para uma distinção baseada no sistema económico. O modelo de "socialismo real" mostrou-se inadequado, fracassou e não adianta dizer que se pode aceitar o mercado sem o capitalismo. Não sendo economista, não percebo qual é a diferença. A questão essencial parece-me ser: pode-se imaginar um capitalismo de esquerda e um capitalismo de direita?

Parece-me que a questão não faz sentido, do ponto de vista puramente económico. Teremos então de colocar a questão esquerda-direita noutros planos, o ideológico, o politico e o social.

Há um velha fórmula pretensamente definidora que diz que, no binómio liberdade-igualdade, a esquerda privilegia a igualdade e a direita a liberdade. É meia verdade, porque, a não ser que se entenda liberdade como sinónimo da concorrência capitalista selvagem, a esquerda (esquecendo o estalinismo e o maoísmo, como aberrações históricas, embora com herdeiros) não pede meças na defesa das liberdades. É fácil verificar que, nos últimos anos, a restrição securitária da liberdade vem da direita. Que eu saiba, o "Patriot Act" não é obra de esquerda.

Por outro lado, para a esquerda, a igualdade tem hoje um sentido menos retórico e mais operacional. A igualdade, na nossa actual sociedade possível, é a igualdade de oportunidades, pela qual ainda há muito que lutar, e que é indissociável, política e ideologicamente de outro valor que julgo definidor da esquerda, a solidariedade (não se venha com a caridade de direita, que é coisa bem diferente). Neste sentido, parece-me ainda adequada a velha fórmula da revolução francesa. De "liberté" e de "égalité", já falei. A "fraternité" é hoje a solidariedade e a recusa da exclusão.

Também se faz a distinção, com frequência, em termos da concepção do papel de intervenção do estado. A esquerda favoreceria o estatismo, a direita o papel da sociedade civil. Começa logo por um equívoco histórico: se alguém teorizou muito sobre a sociedade civil, na sua herança hegeliana, foi o próprio Marx. Depois, na prática, a desestatização não é só uma bandeira de direita que, aliás, a vê apenas como privatização empresarial. A esquerda moderna defende com ênfase a importância da proximidade aos cidadãos da decisão política, o papel das ONG, etc. A esquerda não pode deixar à direita a posse da fórmula hoje tão usada, "menos Estado, melhor Estado".

Destacaria também, embora com reservas, os "problemas transversais", no sentido de um progressismo humanista: o ambiente, uma nova ordem internacional, a igualdade de géneros e orientações sexuais, a abertura às inovações de progresso científico e médico, etc. No entanto, conheço pessoas de direita, conservadoras em termos económicos, que partilham dessa minha "visão de esquerda".

Depois, temos a prática. Quem vota CDS é, para mim, seguramente de direita. Quem vota PCP ou BE é de esquerda. Mas quem vota PS é de esquerda e quem vota PSD é de direita? Já não me parece tão linear.

Se calhar, tenho de me limitar a uma velha fórmula definidora: "é certamente de direita quem diz que já não faz sentido falar de direita e de esquerda".

11 março, 2006

A importância de se ser "earnest"

Há dias, ao traduzir um texto de Berverly Trayner, deparei-me como uma grande dificuldade: como traduzir "earnestness"? Isto fez-me pensar em como a língua traduz em muito as idiossincrasias psicológicas e culturais do seu povo falante. Também temos as nossas: saudade, desenrascar, não são linearmente traduzíveis por "nostalgy" ou "to improvise". "Alone" também não atende ao valor do sufixo de sozinho. Por alguma razão temos duas palavras, só e sozinho.

Como é bem sabido, uma peça importante, e deciosa, de Oscar Wilde intitula-se "The importance of being earnest", fazendo um trocadilho com o nome Ernest da personagem. Geralmente, traduziu-se para português como "A importância de se chamar Ernesto", o que anula completamente o trocadilho e o significado. Releia-se a peça e logo se vê.

O Webster define o adjectivo "earnest" como "characterized by or proceeding from an intense and serious state of mind". O Dicionário Inglês-Português da Texto Editora traduz por um conjunto de termos que não são obrigatoriamente sinónimos: "sério, diligente, sincero, cuidadoso, zeloso". Poder-se-ia continuar com "dedicado, motivado" e mais. Tanto quanto conheço os meus amigos ingleses que se consideram "earnest", são tudo isto.

Cinjamo-nos ao "sério" e note-se a diferença. Em português, parece-me denotar mais uma atitude ou um temperamento. Facilmente se associa a sisudo, circunspecto, distante do humor. Raramente a sinceridade e nem sempre a motivação. Ora eu conheço muita gente "earnest" que é alegre e divertida.

O resultado prático da minha dificuldade foi a minha amiga Beverly ter modificado o seu texto e, em vez de "earnestness", acabei por traduzir, muito mais facilmente, o que ela acabou por escrever, desdobrando a palavra: "candour, enthusiasm and a sense of humour".

No Público de hoje

1. São José Almeida, cuja leitura costumo apreciar, comete hoje um erro que desvirtua a sua argumentação. Critica Jorge Sampaio por ter desrespeitado a Constituição ao dissolver a AR no período Santana Lopes, dado que esse seu poder só podia ser exercido em condições de mau funcionamento das instituições democráticas. Ora esta limitação só vale para outro poder, o de exoneração do primeiro ministro. O poder de dissolução é discricionário, dependendo apenas, formalmente, da consulta ao Conselho de Estado.

2. Um novo Maio de 68? Creio que não, a ajuizar pela fraca dimensão do movimento. Mas mais interessante é atentarmos aos fundamentos. Em 68, as reivindicações eram de natureza educativa, embora rapidamente diluídas numa movimentação política geral. Agora, sinais das dificuldades sociais, os protestos estudantis vão para além da sua educação e visam as limitações postas ao sistema de favorecimento do primeiro emprego para os jovens. Não quero dizer com isto que não têm razão.

3. Delors afirmou que o investimento no social é o que mais contribui para o desenvolvimento. Não sou economista e não sei analisar a validade científica da afirmação. Mas, política e ideologicamente, diz-me muito.

04 março, 2006

Pensadores, precisam-se

Este apontamento é sobre os fazedores de opinião. Mais especificamente, quero discutir a diferença entre pensadores ("thinkers") e fazedores de opinião ou, como é mais vulgar entre nós, colunistas ou comentadores. Um pensador reflecte nos seus escritos uma grande sabedoria vivida e uma larga concepção do mundo, do homem e das sociedades. Nem sempre, ou até raramente, é um filósofo, a menos que chamemos de filosofia "espontânea" a toda a sabedoria que ultrapassa e integra os conhecimentos sectoriais. Os seus escritos têm dimensão de "universalidade" e fazem-nos pensar para além da nossa esfera espacial e temporal do quotidiano. Com eles, sentimos que, virtualmente, estamos a viajar para além das nossas fronteiras.

Obviamente que não me refiro aos muitos autores de livros de pensamento transversal e global. Cinjo-me aos que verdadeiramente fazem opinião porque estão presentes nos media, com muito mais leitores, e particularmente aos que aparecem nos nossos jornais. O primeiro exemplo que me vem à ideia é Lord Dahrendorf. Numa geração posterior, Timothy Garton Ash. De certa forma, também Kofi Annan e Gorbatchov, embora numa esfera mais política. Muitos mais, embora nem todos das minhas simpatias: Frank Furedi, Fukuyama, o "Spengler" do Asian Times (em registo humorístico), etc. Em Portugal, curiosamente, só vejo hoje, nestas condições, um político, mas com bastante superficialidade: Mário Soares. Outro caso conhecido, com maior profundidade de visão, é o de José Gil, mas limitado por uma reflexão limitada a Portugal e pelo risco de generalização abusiva de que os grandes pensadores se devem defender.

Em situação diametralmente oposta, temos a maioria dos nossos colunistas locais. Abro excepções, que ficam ao critério de cada um. Dos restantes e muitos, alguns são inteligentes, escrevem bem, até são saudavelmente provocadores. Mas não me ensinam a ser mais sabedor, que é a minha pedra de toque (e, com isto, a ser melhor professor). Raramente saem do comentário à situação diária e conjuntural da nossa realidade portuguesa. Quando abordam problemas internacionais é, geralmente, para uma transposição para Portugal. Pior ainda, têm geralmente uma abordagem classicamente politica, quando não transparentemente partidária.

"Pensadores" portugueses, precisam-se! Parodiando expressões na moda, "é a sabedoria, stupid" ou "há a cultura, para além do défice".

Uma questão de género

Já escrevi milhentas vezes que tenho grande aversão pela linguagem politicamente correcta, mas abro hoje uma excepção. Em relação ao execrável assassinato de um/a transsexual no Porto, devo escrever Gisberto ou Gisberta? Oficialmente, era um homem. Para sua infelicidade, nunca conseguiu os meios para a sua conversão física e civil ao género em que se sentia psicologicamente feliz.

Os jornais estão a referi-la no feminino e chamando-a Gisberta. Parece-me ruma bonita homenagem e associo-me a ela. Pobre e infeliz Gisberta! Mas também pobres e infelizes crianças, transformadas tão cedo em monstros. Não teremos todos um pequeno grão de culpa por esta sociedade?