Conheci Fernando Gil creio que apenas uma vez e, da sua obra, sou conhecedor limitado, embora sempre o tenha lido com muito agrado. Sublinho o valor que atribuía ao conhecimento das ciências por um filósofo, conhecimento em que não incorria em erros graves ou em abusos de utilização tão vulgares nas vigarices intelectuais da escola filosófica francesa.
Do pouco que li dele nos últimos anos ("Impasses") e de notícias sobre algumas intervenções suas na política, fico com a impressão, talvez injusta, de um "desvio para a direita". A expressão, aliás, não é minha, mas sim de Eduardo Prado Coelho, na sua coluna do Público. Isto serve-me de pretexto para alguma reflexão ligeira sobre a esquerda e a direita.
Só um fanático é que não se coloca hoje esta questão e continua preso aos esquemas de há um século. Em primeiro lugar, não vejo lugar para uma distinção baseada no sistema económico. O modelo de "socialismo real" mostrou-se inadequado, fracassou e não adianta dizer que se pode aceitar o mercado sem o capitalismo. Não sendo economista, não percebo qual é a diferença. A questão essencial parece-me ser: pode-se imaginar um capitalismo de esquerda e um capitalismo de direita?
Parece-me que a questão não faz sentido, do ponto de vista puramente económico. Teremos então de colocar a questão esquerda-direita noutros planos, o ideológico, o politico e o social.
Há um velha fórmula pretensamente definidora que diz que, no binómio liberdade-igualdade, a esquerda privilegia a igualdade e a direita a liberdade. É meia verdade, porque, a não ser que se entenda liberdade como sinónimo da concorrência capitalista selvagem, a esquerda (esquecendo o estalinismo e o maoísmo, como aberrações históricas, embora com herdeiros) não pede meças na defesa das liberdades. É fácil verificar que, nos últimos anos, a restrição securitária da liberdade vem da direita. Que eu saiba, o "Patriot Act" não é obra de esquerda.
Por outro lado, para a esquerda, a igualdade tem hoje um sentido menos retórico e mais operacional. A igualdade, na nossa actual sociedade possível, é a igualdade de oportunidades, pela qual ainda há muito que lutar, e que é indissociável, política e ideologicamente de outro valor que julgo definidor da esquerda, a solidariedade (não se venha com a caridade de direita, que é coisa bem diferente). Neste sentido, parece-me ainda adequada a velha fórmula da revolução francesa. De "liberté" e de "égalité", já falei. A "fraternité" é hoje a solidariedade e a recusa da exclusão.
Também se faz a distinção, com frequência, em termos da concepção do papel de intervenção do estado. A esquerda favoreceria o estatismo, a direita o papel da sociedade civil. Começa logo por um equívoco histórico: se alguém teorizou muito sobre a sociedade civil, na sua herança hegeliana, foi o próprio Marx. Depois, na prática, a desestatização não é só uma bandeira de direita que, aliás, a vê apenas como privatização empresarial. A esquerda moderna defende com ênfase a importância da proximidade aos cidadãos da decisão política, o papel das ONG, etc. A esquerda não pode deixar à direita a posse da fórmula hoje tão usada, "menos Estado, melhor Estado".
Destacaria também, embora com reservas, os "problemas transversais", no sentido de um progressismo humanista: o ambiente, uma nova ordem internacional, a igualdade de géneros e orientações sexuais, a abertura às inovações de progresso científico e médico, etc. No entanto, conheço pessoas de direita, conservadoras em termos económicos, que partilham dessa minha "visão de esquerda".
Depois, temos a prática. Quem vota CDS é, para mim, seguramente de direita. Quem vota PCP ou BE é de esquerda. Mas quem vota PS é de esquerda e quem vota PSD é de direita? Já não me parece tão linear.
Se calhar, tenho de me limitar a uma velha fórmula definidora: "é certamente de direita quem diz que já não faz sentido falar de direita e de esquerda".
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