22 julho, 2006

Jorgina e Berta

Descansem que não vou falar de nenhum novo casal homossexual feminino a querer casar-se. A aproximarem-se as férias e o encerramento temporário deste estabelecimento, vou escrever coisa ligeira, lembrando-me de mais duas personagens pitorescas da minha infância, esquecidas no "Mastro das Alminhas". Viviam juntas e creio, mas não garanto, que eram tia e sobrinha.

A Jorgina era um caso espantoso de literacia analfabeta. Já explico o paradoxo aparente. In illo tempore, eu menino, havia a figura da "mulher das compras", encargo excelentemente desempenhado pela Jorgina. Ao fim da tarde, dava a volta pelas freguesas e tomava nota das encomendas para o dia seguinte: talho, mercado do peixe, barraca da hortaliça.

A cada nota que tomava, ia sempre dizendo "óraites", corruptela calafona do "all right" - um dia destes hei-de escrever sobre o típico vocabulário "calafonês" açoriano, a começar pelo próprio termo "calafona", leia-se "californian". Muito mais divertida era a relação especial da Jorgina com uns amigos íntimos e indispensáveis que viviam no seu couro cabeludo. Às vezes, ficavam indisciplinados que nem meninos das escolas de hoje. A Jorgina dava então umas palmadinhas na cabeça, com meiguice e dizendo "ai, eles hoje estão tão desassossegados!".

Importante era a tal literacia. A Jorgina tomava cuidadosamente nota das encomendas num caderno e nunca se enganava. Mas como, se ela era analfabeta? Muito gostava eu de poder ver ainda um caderno da Jorgina.

A Berta, que era criada, como então se dizia, de uma prima da minha mãe, era uma personagem imperdível de candura tonta, num grande coração. Esta minha prima era mãe de um dos meus mais queridos amigos e primo, já falecido, o Raul Ávila de Vasconcelos – dois nomes sempre ligados na minha família, desde há muitas gerações, mas que eu já perdi. Quando ele veio para a universidade, no Carvalho Araújo, era tempo em que a partida e chegado dos navios merecia notícia da rádio. Assim, disse a minha prima "Berta, o menino Raul já chegou a Lisboa". Resposta, "E a Sra. D. Letícia [a minha tia] estava na doca?".

A Berta era uma solteirona frustrada e deitava sortes de clara de ovo no S. João. Um dia ficou muito feliz por ver finalmente o seu destino: um marinheiro louro, na ponta do barco, de calças azuis e camisa branca, com a mão na testa a aparar o sol!

Também tinha um sentido critico muito pragmático. Foi notícia na minha terra a aventura de dois patrícios meus (lembram-se da série de TV "O barco e o sonho"?) que foram até à sonhada América num pequeno barco à vela que construíram? A Berta não achou aquilo nada de especial. "É só dar a volta ao farol da doca e depois ir sempre rente ao muro". Noção muito especial da geografia!

E vou para férias. Adeus, até ao meu regresso. Divirtam-se também e descansem, pensando numa regra importante de vida, a KISS: "keep it simple, stupid!".

15 julho, 2006

Dan Brown

Há tempos, escrevi uma nota sobre o que me parecia ser um excesso de reacção contra coisa que não é para levar a sério, o "Código da Vinci". Talvez paradoxalmente, vou cair no erro de levar a sério, desta vez o autor. É que agora, ele já não é criticado só pela Igreja. Manifestou-se também o Congresso internacional de historiadores medievalistas, acusando Dan Brown (DB) de prejudicar fortemente a credibilidade da investigação histórica.

É uso dizer-se que "à terceira é de vez". Comigo, com DB, foi à quarta, depois de ler, fora da ordem cronológica, "Fortaleza Digital". Só não digo que DB é uma fraude porque nunca o ouvi intitular-se de grande escritor. Basta-lhe ser milionário da escrita. Também Agatha Christie (AC) certamente nunca pensou ser candidata ao Nobel. Talvez fosse até mais honesta e não justificasse tanto a mais que compreensível e ética atitude de Umberto Eco, ao recusar um encontro com DB.

Parece-me óbvio que só se pode falar de subliteratura ao ler um livro com esta preciosidade, logo na primeira página (dou desconto a uma eventual má tradução):
"Deitada de costas na cama de dossel, ela levantou os olhos e soube que ele era "o tal". E enquanto estava assim, de olhar preso àqueles olhos verde-escuros, algures ao longe uma campainha ensurdecedora começou a tocar. A campainha atraiu-o e afastou-o. Estendeu os braços para o agarrar, mas as suas mãos encontraram apenas ar."
"Campainha ensurdecedora", nunca tinha lido expressão tão imaginativa!

Falei de AC, com respeito – devo-lhe bons momentos de leitura descontraída de praia – e podia também falar, sem respeito, de margarida Rebelo Pinto, a propósito do que veio a lume no seu recente caso judiciário: a técnica da repetição. Em AC, ela não engana o leitor, quase que é indispensável. Já sabemos, e talvez desejemos, que vamos encontrar jardins ingleses, moral vitoriana, desprezo pela Europa do lado de lá, chá e scones e os clichês de Poirot. Mas isto faz parte das regras de AC. O leitor compra ou não compra.

DB não assume a repetição de um esquema bem construído, mas ela é evidente, em todos os livros. Começo pela construção dos cenários. Já a Globo a tinha inventado nas suas telenovelas: três cenários principais (pior, DB só usa dois) que alternam em contraponto, cada um com um conjunto de personagens distintos, apenas com dois elos de ligação, os pivôs da história. Estes pivôs, com ligeiras nuances, seguem o mesmo estereotipo: um académico americano da área das humanidades, que se revela depois um super-homem de capacidades aventureiras (não inventou nada, copiou e mal o Indiana Jones), e uma mulher profissional de topo, muito inteligente e que, na última página, se revela um portento sexual a premiar o herói. Aqui é que inovou, mas não sei se melhorou, porque as parceiras do Indiana eram deliciosamente tontas.

O tema foge inteligentemente ao mundo das tias de Cascais da nossa literatura leve, sabendo muito bem DB ir directo a um moderno imaginário público, principalmente desafiado pelo mistério cultivado ou natural de algumas instituições, a Igreja católica, a NASA, as agencias secretas americanas. Não arrisca nada, porque se alimenta desse secretismo. O que é desonesto é confundir o leitor, dando-lhe claramente a noção de que DB tem "inside information" que garante algum fundo de verdade.

Curiosamente, joga com pau de dois bicos. No decurso dos livros, parece devastar os seus alvos institucionais, mas salva-os à última hora. Neste último livro que li, a solução final é inconcebível, aliando o politicamente correcto ao securitarismo "Patriot act". O supercomputador que podia espiar a net é destruído, mas o seu computador paralelo, que guarda a base de dados da "pax americana" é miraculosamente salvo na última página. Desculpem, última não, porque esta é a tal da recompensa sexual dos heróis.

A galeria de personagens é estereotipada. Não vou falar dos vilões, porque DB tem um talento especial para os retratar primariamente, como assassinos frios e mecânicos (nunca temos deles a expressão de um simples sentimento), curiosamente albinos ou surdos, novamente grandes ideias literárias. Para além dos bons, há os que recorrem a eles, figuras eminentes e muito responsáveis das tais instituições. Normalmente, ocupam posição de vice, deixando os dirigentes supremos para melhor altura. Estes só aparecem a meio do livro, anunciam-se cada vez mais a cada capítulo e, finalmente, são os que permitem o final feliz. Bonito, a autoridade suprema. E quem é o culpado, coisa que, em qualquer bom policial, só adivinhamos no último capítulo? Com DB é elementar. É um dos tais incorruptíveis de segunda linha, mas cujo carácter ou ideologia é extremado em sentido de "missão", como DB tem o cuidado de nos revelar logo.

No entanto, não deixo de elogiar, tecnicamente, as construções de DB: boa técnica de suspense, a fazer apetecer passar para o capítulo seguinte, aparência de boa informação "científica", embora não resista a qualquer abano, como a inconcebível bomba de antimatéria; esoterismo cuidadosamente quanto baste, sem ser daquele que nos faz logo dizer "tolice", como os extra-terrestres nas aparições de Fátima; cenários que dizem muito à cultura híbrida americana, desde coisas "high-tec" domésticas até aos mitos artísticos europeus, Louvre, Roma, Bernini.

E "assim se fazem as cousas".

08 julho, 2006

Para quê chamar a ciência à discussão do aborto?

Revogando uma decisão judicial anterior, no chamado caso de Aveiro, algumas mulheres acabaram por ser condenadas pelo crime de aborto. Parece-me sobeja razão para reflexão de todos aqueles que têm a consciência tranquila porque, "na prática, ninguém é penalizado por este crime". Ele lá está no código penal e ao alcance de algum juiz mais "escrupuloso". Também reflexão para mim, atento ao que me rodeia e solidário por natureza e ideologia. É uma reflexão desafiante, porque pode suscitar duas ordens de questões, em que a minha situação é oposta: uma discussão jurídica e social, em que só falo como cidadão e pensante; outra científica, em que me sinto no dever de ser muito cuidadoso em relação a alguma influência pública.

Não sei nada de filosofia do direito, mas tenho algumas ideias de senso comum. Para mim, talvez um pouco esquematicamente, há três tipos de crimes. O primeiro é o que atenta contra os direitos, a liberdade, a segurança e a propriedade do outro. É o que chamo um crime absoluto, que não é afectado por nenhuma circunstância sociológica. Se o roubo ou a agressão física começarem a ser prática corrente, isto não justifica nenhuma desculpa social para a despenalização. A realidade social não faz lei, neste caso.

O segundo caso é o de crimes que configuram atentados gerais à ordem sócio-política. Também entendo que se baseiam na valorização abstracta de coisas essenciais da nossa vida civilizada: a incitação à violência ou ao racismo, a ofensa à identidade nacional, o desrespeito aos tribunais, a desobediência, a espionagem, a evasão fiscal, etc.

Caso muito diferente, em que insiro exemplarmente o do aborto, é o dos crimes que reflectem uma visão transitória dos valores éticos e sociais, muitas vezes até dependentes de ideologias sectoriais. São casos em que, claramente, não está em causa a defesa dos interesses de outrem: por exemplo, o consumo de drogas (não o tráfico), a prostituição (não o proxenetismo), a homossexualidade (já foi crime e não há tanto tempo como se possa julgar), o adultério (questão privada, mas não no tempo de Camilo), etc. Nestes casos, considero que a penalização é frágil e contingente, muito determinada pelo nível de aceitação social e de prática, sempre a evoluir. Se milhares de mulheres praticam o aborto, quem tem uma escala de medida para avaliar se é condenável (juridicamente) ou não? Não é como o assassínio, em que, mesmo que não houvesse nenhum caso, nunca deixaria de ser crime.

Uma nota sobre a participação indirecta: distingui consumo e tráfico, prostituição e proxenetismo. Devo distinguir, no caso do aborto, a mulher e o abortador? Tenho muitas dúvidas. Considerem este caso: um médico é a favor do aborto, quer ajudar as mulheres a fazerem-no nas melhores condições (já que, de qualquer forma, o farão, no vão da escada) e, para se situar bem e marcar posição, não leva um tostão por essa operação. Se eu fosse obstreta, é o que faria. Podiam depois acusar-me de tudo, mas nunca de interesse de negócio.

Quero deixar algum espaço para um tema que me interessa muito, cientificamente, o da vida humana. O tema foi suscitado, ainda há dias, pelo bastonário da Ordem dos Médicos: "Os códigos de ética dos médicos proíbem a eliminação de uma vida humana. (…) Deve-se centrar o debate no diagnóstico do início da vida. (…) A sociedade portuguesa deveria ter a coragem de definir a fronteira a partir da qual não será possível eliminar a vida humana." Desculpe a brutalidade, estimado colega, mas tudo isto é tolice e falta de bagagem científica.

A ciência não sabe lidar com definições de "senso comum". Lembro-me, tantos anos depois, de uma aula do meu inesquecível Ilídio Sardoeira (aula de biologia!) em que nos desafiou a definir força. É a qualidade de se ser forte (definição circular), é o que vence a inércia, é o que faz mexer, etc. No fim, a conclusão aceite foi a de que força é "apenas" o produto da massa pela aceleração. E se, depois, ele nos tivesse perguntado o que era a massa? Para os meus amigos físicos, talvez eu esteja a dizer grande asneira. Desculpem-me.

Vida humana. Eu, biólogo, não sei o que isso é! Nem a ciência deve ser chamada a alicerçar decisões que são apenas do plano social e, admito, ético (mas ético de cada um, não de toda uma sociedade). Até vou ser provocador: considero menos grave "matar" um embrião do que matar um chimpanzé. Justificarei adiante.

Vida humana. Começa por ser necessário discutir separadamente o substantivo e o adjectivo. Comecemos por vida. É um conceito abstracto. O que há é seres vivos e mesmo isto abre grandes discussões. Os vírus são seres vivos? Organismos não são, mas entendo que são seres vivos, embora haja quem os coloque na fronteira. É um desafio que coloco sempre aos meus alunos, para um trabalho de duas páginas, e de que recebo opiniões muito interessantes. Posso dar muitas definições caracterizadoras de ser vivo, nem todas compatíveis entre si: a velha descrição fenomenológica, desactualizada, a definição termodinâmica, até mesmo uma definição "informática". A ciência pode facilitar mas não determina conceitos filosóficos e éticos.

Depois o adjectivo humano, e aqui é que vêm todas as discussões. A atitude mais fácil é a de alguns católicos, com maior formação científica, que se vêem obrigados a enfatizar a ligação ao adjectivo "potencial". Não consigo entrar nesta discussão, que não é científica. A ciência lida com factos, não com potencialidades. Aliás, essa discussão parece-me perigosa, em termos jurídicos, apesar de leigo. Um potencial assassino deve ser condenado à prisão? Não falo de esquizofrénicos violentos, legalmente internáveis, mas de personalidades psicopáticas imputáveis. O potencial permite tudo. Porque é que um espermatozóide não é um elemento potencial de um futuro ser humano? Afinal, é isto que justifica a condenação católica da masturbação, se não erro. Um embrião in vitro é um ser humano potencial? Queria vê-lo crescer e diferenciar-se no laboratório! Mesmo um ovo fertilizado in vivo é real, em capacidade de concretização, antes da nidação? Fico à espera das respostas do bastonário.

Voltando ao humano, o que o define? Ou, para começar, qual é o momento em que isso se define? A embriogénese é um contínuo e creio que ninguém sabe exactamente qual o momento em que ficam definitivamente adquiridos os traços humanos. A activação dos primeiros genes exclusivos do homem? Quem sabe quais eles são, "uma dúzia"? O estabelecimento das primeiras sinapses? Também todos os animais as têm e, no homem, essa rede só é verdadeiramente construída pela experiência, não geneticamente. As relações in utero com a mãe? Idem. A consciência, a mente e a linguagem? Então o aborto podia ir até aos dois anos de idade!

Seguindo a provocação que referi, vou falar de primatas, que todos somos, nós e os nossos primos chimpanzés. Imaginemos que é agora descoberta uma tribo de paleolíticos remotos, que só usam instrumentos rudimentares, umas pedras lascadas, e uma linguagem de sons primitivos. Alguém negará que são humanos? Mas os chimpanzés, nosso divertimento de zoo? Partilhamos com eles a quase totalidade do nosso genoma. Em relação a algumas marcas genéticas, há por vezes maior proximidade entre grupos humanos e chimpanzés do que entre grupos humanos diferentes. Estes primos têm consciência, noção do "self", reconhecem-se ao espelho. Usam instrumentos, também as pedras e mesmo outros por vezes mais elaborados do que os do homem paleolítico, comunicam, têm afectividade, são solidários, resolvem problemas com a nossa inteligência. No limite, podemos definir uma característica exclusivamente humana, a fala. Isto só depende de duas coisas, que só se processam depois do nascimento, a descida da laringe e do osso hióide (um dos nossos mais pequenos e mais importantes ossos, na língua). Ora os chimpanzés também fazem a descida da laringe, só lhes faltando a do hióide. Afinal, talvez seja esta coisa banal a definição científica do homem!

Toda esta história de primatas pode parecer parvoíce de fim de semana mas tem um fim provocatório. Os nossos "defensores da vida" não se ficam pelo seu direito legítimo de condenarem o aborto. A única conclusão será a de que não o devem praticar (nunca o praticam?). Invocam argumentos científicos, até imagens horrorosas como as que eu, fumador, vou ter de ver nas minhas cigarrilhas. A minha provocação é a de que sejam coerentes: defendam a libertação de todos os chimpanzés!

Para quê chamar a ciência à discussão do aborto?

Revogando uma decisão judicial anterior, no chamado caso de Aveiro, algumas mulheres acabaram por ser condenadas pelo crime de aborto. Parece-me sobeja razão para reflexão de todos aqueles que têm a consciência tranquila porque, "na prática, ninguém é penalizado por este crime". Ele lá está no código penal e ao alcance de algum juiz mais "escrupuloso". Também reflexão para mim, atento ao que me rodeia e solidário por natureza e ideologia. É uma reflexão desafiante, porque pode suscitar duas ordens de questões, em que a minha situação é oposta: uma discussão jurídica e social, em que só falo como cidadão e pensante; outra científica, em que me sinto no dever de ser muito cuidadoso em relação a alguma influência pública.

Não sei nada de filosofia do direito, mas tenho algumas ideias de senso comum. Para mim, talvez um pouco esquematicamente, há três tipos de crimes. O primeiro é o que atenta contra os direitos, a liberdade, a segurança e a propriedade do outro. É o que chamo um crime absoluto, que não é afectado por nenhuma circunstância sociológica. Se o roubo ou a agressão física começarem a ser prática corrente, isto não justifica nenhuma desculpa social para a despenalização. A realidade social não faz lei, neste caso.

O segundo caso é o de crimes que configuram atentados gerais à ordem sócio-política. Também entendo que se baseiam na valorização abstracta de coisas essenciais da nossa vida civilizada: a incitação à violência ou ao racismo, a ofensa à identidade nacional, o desrespeito aos tribunais, a desobediência, a espionagem, a evasão fiscal, etc.

Caso muito diferente, em que insiro exemplarmente o do aborto, é o dos crimes que reflectem uma visão transitória dos valores éticos e sociais, muitas vezes até dependentes de ideologias sectoriais. São casos em que, claramente, não está em causa a defesa dos interesses de outrem: por exemplo, o consumo de drogas (não o tráfico), a prostituição (não o proxenetismo), a homossexualidade (já foi crime e não há tanto tempo como se possa julgar), o adultério (questão privada, mas não no tempo de Camilo), etc. Nestes casos, considero que a penalização é frágil e contingente, muito determinada pelo nível de aceitação social e de prática, sempre a evoluir. Se milhares de mulheres praticam o aborto, quem tem uma escala de medida para avaliar se é condenável (juridicamente) ou não? Não é como o assassínio, em que, mesmo que não houvesse nenhum caso, nunca deixaria de ser crime.

Uma nota sobre a participação indirecta: distingui consumo e tráfico, prostituição e proxenetismo. Devo distinguir, no caso do aborto, a mulher e o abortador? Tenho muitas dúvidas. Considerem este caso: um médico é a favor do aborto, quer ajudar as mulheres a fazerem-no nas melhores condições (já que, de qualquer forma, o farão, no vão da escada) e, para se situar bem e marcar posição, não leva um tostão por essa operação. Se eu fosse obstreta, é o que faria. Podiam depois acusar-me de tudo, mas nunca de interesse de negócio.

Quero deixar algum espaço para um tema que me interessa muito, cientificamente, o da vida humana. O tema foi suscitado, ainda há dias, pelo bastonário da Ordem dos Médicos: "Os códigos de ética dos médicos proíbem a eliminação de uma vida humana. (…) Deve-se centrar o debate no diagnóstico do início da vida. (…) A sociedade portuguesa deveria ter a coragem de definir a fronteira a partir da qual não será possível eliminar a vida humana." Desculpe a brutalidade, estimado colega, mas tudo isto é tolice e falta de bagagem científica.

A ciência não sabe lidar com definições de "senso comum". Lembro-me, tantos anos depois, de uma aula do meu inesquecível Ilídio Sardoeira (aula de biologia!) em que nos desafiou a definir força. É a qualidade de se ser forte (definição circular), é o que vence a inércia, é o que faz mexer, etc. No fim, a conclusão aceite foi a de que força é "apenas" o produto da massa pela aceleração. E se, depois, ele nos tivesse perguntado o que era a massa? Para os meus amigos físicos, talvez eu esteja a dizer grande asneira. Desculpem-me.

Vida humana. Eu, biólogo, não sei o que isso é! Nem a ciência deve ser chamada a alicerçar decisões que são apenas do plano social e, admito, ético (mas ético de cada um, não de toda uma sociedade). Até vou ser provocador: considero menos grave "matar" um embrião do que matar um chimpanzé. Justificarei adiante.

Vida humana. Começa por ser necessário discutir separadamente o substantivo e o adjectivo. Comecemos por vida. É um conceito abstracto. O que há é seres vivos e mesmo isto abre grandes discussões. Os vírus são seres vivos? Organismos não são, mas entendo que são seres vivos, embora haja quem os coloque na fronteira. É um desafio que coloco sempre aos meus alunos, para um trabalho de duas páginas, e de que recebo opiniões muito interessantes. Posso dar muitas definições caracterizadoras de ser vivo, nem todas compatíveis entre si: a velha descrição fenomenológica, desactualizada, a definição termodinâmica, até mesmo uma definição "informática". A ciência pode facilitar mas não determina conceitos filosóficos e éticos.

Depois o adjectivo humano, e aqui é que vêm todas as discussões. A atitude mais fácil é a de alguns católicos, com maior formação científica, que se vêem obrigados a enfatizar a ligação ao adjectivo "potencial". Não consigo entrar nesta discussão, que não é científica. A ciência lida com factos, não com potencialidades. Aliás, essa discussão parece-me perigosa, em termos jurídicos, apesar de leigo. Um potencial assassino deve ser condenado à prisão? Não falo de esquizofrénicos violentos, legalmente internáveis, mas de personalidades psicopáticas imputáveis. O potencial permite tudo. Porque é que um espermatozóide não é um elemento potencial de um futuro ser humano? Afinal, é isto que justifica a condenação católica da masturbação, se não erro. Um embrião in vitro é um ser humano potencial? Queria vê-lo crescer e diferenciar-se no laboratório! Mesmo um ovo fertilizado in vivo é real, em capacidade de concretização, antes da nidação? Fico à espera das respostas do bastonário.

Voltando ao humano, o que o define? Ou, para começar, qual é o momento em que isso se define? A embriogénese é um contínuo e creio que ninguém sabe exactamente qual o momento em que ficam definitivamente adquiridos os traços humanos. A activação dos primeiros genes exclusivos do homem? Quem sabe quais eles são, "uma dúzia"? O estabelecimento das primeiras sinapses? Também todos os animais as têm e, no homem, essa rede só é verdadeiramente construída pela experiência, não geneticamente. As relações in utero com a mãe? Idem. A consciência, a mente e a linguagem? Então o aborto podia ir até aos dois anos de idade!

Seguindo a provocação que referi, vou falar de primatas, que todos somos, nós e os nossos primos chimpanzés. Imaginemos que é agora descoberta uma tribo de paleolíticos remotos, que só usam instrumentos rudimentares, umas pedras lascadas, e uma linguagem de sons primitivos. Alguém negará que são humanos? Mas os chimpanzés, nosso divertimento de zoo? Partilhamos com eles a quase totalidade do nosso genoma. Em relação a algumas marcas genéticas, há por vezes maior proximidade entre grupos humanos e chimpanzés do que entre grupos humanos diferentes. Estes primos têm consciência, noção do "self", reconhecem-se ao espelho. Usam instrumentos, também as pedras e mesmo outros por vezes mais elaborados do que os do homem paleolítico, comunicam, têm afectividade, são solidários, resolvem problemas com a nossa inteligência. No limite, podemos definir uma característica exclusivamente humana, a fala. Isto só depende de duas coisas, que só se processam depois do nascimento, a descida da laringe e do osso hióide (um dos nossos mais pequenos e mais importantes ossos, na língua). Ora os chimpanzés também fazem a descida da laringe, só lhes faltando a do hióide. Afinal, talvez seja esta coisa banal a definição científica do homem!

Toda esta história de primatas pode parecer parvoíce de fim de semana mas tem um fim provocatório. Os nossos "defensores da vida" não se ficam pelo seu direito legítimo de condenarem o aborto. A única conclusão será a de que não o devem praticar (nunca o praticam?). Invocam argumentos científicos, até imagens horrorosas como as que eu, fumador, vou ter de ver nas minhas cigarrilhas. A minha provocação é a de que sejam coerentes: defendam a libertação de todos os chimpanzés!

01 julho, 2006

Notas soltas

1. Josep Borrell, Presidente do Parlamento Europeu, escreveu, para minha estupefacção, que "os europeus têm uma percepção escassa dos benefícios globais da sua União. A Europa surge menos pelas vantagens do que pelos problemas que coloca ou as soluções que não tem. Continua a ser necessária uma enorme tarefa pedagógica."

Alguma coisa está mal nesta UE, quando os seus "cidadãos" não se apercebem de vantagens na união. Catalães, bascos e galegos fazem o possível por salientarem as suas identidades nacionais, mas não pretendem abandonar a "união espanhola". Os genebrinos pagam para os cantões mais pobres mas sabem bem o que lhes é vantajoso em ser suíços. E até a jardinesca figura sabe bem até onde levar os impropérios independentistas.

É claro que há uma diferença essencial: estas e muitas outras situações são históricas, assentes numa consciência colectiva de séculos, mas não deixam de traduzir uma noção sempre actual das vantagens práticas. A meu ver, as vantagens da UE são intangíveis para o comum dos mortais, que não tem biblioteca nem sabe nada de finanças.

Uma grande construção política tem de ser ensinada aos seus indivíduos? Há certamente um fosso entre essa construção e a consciência colectiva dela. Não é altura de desacelerar o alargamento inevitável desse fosso e garantir ao projecto europeu a sua verdadeira base de sustentação, o apoio dos povos? Ou a tal pedagogia continuará a ser exercida em fuga para a frente?

Para que não fiquem dúvidas: esta pergunta é feita por alguém que se sente profundamente europeísta.

2. José Vítor Malheiros tem uma coluna semanal que não perco. Na última, "Discutir na escola", escreve:
"O documento "Organização do ano lectivo de 2006/07" (disponível no site do Ministério da Educação num irritante PDF em "bitmap" que não permite copiar o texto) sugere que as aulas de substituição sejam dadas por outro professor do mesmo grupo com base no plano de aulas do professor titular. Mas o mesmo documento admite que, na impossibilidade de fazer isso, o período de aulas seja ocupado por "actividades de enriquecimento e complemento curricular".

Ora é possível e proveitoso transformar essas aulas (em vez de aulas curriculares de segunda) em aulas de debate de primeira. A prática é comum na escola anglo-saxónica, mas é boa e pode ser explorada. É evidente que, para fazer isto de forma séria, é indispensável que todos os professores recebam alguma formação - mas essa formação seria útil na sua actividade lectiva quotidiana. Isto permitiria proporcionar aos alunos um espaço simultaneamente de livre expressão e de lúdico confronto intelectual, de prática de exposição e discussão públicas e de exercício de cidadania. Essas aulas poderiam partir da discussão organizada de um tema da actualidade e poderiam criar um espaço pedagógico enriquecedor para professores e alunos."
Também me parece ser muito difícil a substituição de um professor em falta por um da mesma disciplina, a dar continuidade ao programa. Que o substituto dê uma aula da sua competência específica não me parece fazer sentido. Restam as tais "actividades de enriquecimento e complemento curricular". Estou inteiramente de acordo com JVM no que ele escreve sobre a sua importância. Só não concordo, se percebi a sua ideia, com a necessidade de formação específica para tais actividades. A meu ver, elas só exigem coisas que não se ensinam: o gosto pelo despertar da inteligência dos alunos e uma sólida formação cultural. Vamos treinar professores a saberem ler o jornal e transmitirem aos alunos o interesse de um tema de actualidade?

P. S. (13:48) - da leitura do jornal de hoje: um "responsável judiciário" declarou, a respeito do caso Gisberta - a transsexual seviciada e morta por um grupo de adolescentes - que "são miúdos, aquilo foi uma brincadeira que correu mal". Sem comentários!