15 julho, 2006

Dan Brown

Há tempos, escrevi uma nota sobre o que me parecia ser um excesso de reacção contra coisa que não é para levar a sério, o "Código da Vinci". Talvez paradoxalmente, vou cair no erro de levar a sério, desta vez o autor. É que agora, ele já não é criticado só pela Igreja. Manifestou-se também o Congresso internacional de historiadores medievalistas, acusando Dan Brown (DB) de prejudicar fortemente a credibilidade da investigação histórica.

É uso dizer-se que "à terceira é de vez". Comigo, com DB, foi à quarta, depois de ler, fora da ordem cronológica, "Fortaleza Digital". Só não digo que DB é uma fraude porque nunca o ouvi intitular-se de grande escritor. Basta-lhe ser milionário da escrita. Também Agatha Christie (AC) certamente nunca pensou ser candidata ao Nobel. Talvez fosse até mais honesta e não justificasse tanto a mais que compreensível e ética atitude de Umberto Eco, ao recusar um encontro com DB.

Parece-me óbvio que só se pode falar de subliteratura ao ler um livro com esta preciosidade, logo na primeira página (dou desconto a uma eventual má tradução):
"Deitada de costas na cama de dossel, ela levantou os olhos e soube que ele era "o tal". E enquanto estava assim, de olhar preso àqueles olhos verde-escuros, algures ao longe uma campainha ensurdecedora começou a tocar. A campainha atraiu-o e afastou-o. Estendeu os braços para o agarrar, mas as suas mãos encontraram apenas ar."
"Campainha ensurdecedora", nunca tinha lido expressão tão imaginativa!

Falei de AC, com respeito – devo-lhe bons momentos de leitura descontraída de praia – e podia também falar, sem respeito, de margarida Rebelo Pinto, a propósito do que veio a lume no seu recente caso judiciário: a técnica da repetição. Em AC, ela não engana o leitor, quase que é indispensável. Já sabemos, e talvez desejemos, que vamos encontrar jardins ingleses, moral vitoriana, desprezo pela Europa do lado de lá, chá e scones e os clichês de Poirot. Mas isto faz parte das regras de AC. O leitor compra ou não compra.

DB não assume a repetição de um esquema bem construído, mas ela é evidente, em todos os livros. Começo pela construção dos cenários. Já a Globo a tinha inventado nas suas telenovelas: três cenários principais (pior, DB só usa dois) que alternam em contraponto, cada um com um conjunto de personagens distintos, apenas com dois elos de ligação, os pivôs da história. Estes pivôs, com ligeiras nuances, seguem o mesmo estereotipo: um académico americano da área das humanidades, que se revela depois um super-homem de capacidades aventureiras (não inventou nada, copiou e mal o Indiana Jones), e uma mulher profissional de topo, muito inteligente e que, na última página, se revela um portento sexual a premiar o herói. Aqui é que inovou, mas não sei se melhorou, porque as parceiras do Indiana eram deliciosamente tontas.

O tema foge inteligentemente ao mundo das tias de Cascais da nossa literatura leve, sabendo muito bem DB ir directo a um moderno imaginário público, principalmente desafiado pelo mistério cultivado ou natural de algumas instituições, a Igreja católica, a NASA, as agencias secretas americanas. Não arrisca nada, porque se alimenta desse secretismo. O que é desonesto é confundir o leitor, dando-lhe claramente a noção de que DB tem "inside information" que garante algum fundo de verdade.

Curiosamente, joga com pau de dois bicos. No decurso dos livros, parece devastar os seus alvos institucionais, mas salva-os à última hora. Neste último livro que li, a solução final é inconcebível, aliando o politicamente correcto ao securitarismo "Patriot act". O supercomputador que podia espiar a net é destruído, mas o seu computador paralelo, que guarda a base de dados da "pax americana" é miraculosamente salvo na última página. Desculpem, última não, porque esta é a tal da recompensa sexual dos heróis.

A galeria de personagens é estereotipada. Não vou falar dos vilões, porque DB tem um talento especial para os retratar primariamente, como assassinos frios e mecânicos (nunca temos deles a expressão de um simples sentimento), curiosamente albinos ou surdos, novamente grandes ideias literárias. Para além dos bons, há os que recorrem a eles, figuras eminentes e muito responsáveis das tais instituições. Normalmente, ocupam posição de vice, deixando os dirigentes supremos para melhor altura. Estes só aparecem a meio do livro, anunciam-se cada vez mais a cada capítulo e, finalmente, são os que permitem o final feliz. Bonito, a autoridade suprema. E quem é o culpado, coisa que, em qualquer bom policial, só adivinhamos no último capítulo? Com DB é elementar. É um dos tais incorruptíveis de segunda linha, mas cujo carácter ou ideologia é extremado em sentido de "missão", como DB tem o cuidado de nos revelar logo.

No entanto, não deixo de elogiar, tecnicamente, as construções de DB: boa técnica de suspense, a fazer apetecer passar para o capítulo seguinte, aparência de boa informação "científica", embora não resista a qualquer abano, como a inconcebível bomba de antimatéria; esoterismo cuidadosamente quanto baste, sem ser daquele que nos faz logo dizer "tolice", como os extra-terrestres nas aparições de Fátima; cenários que dizem muito à cultura híbrida americana, desde coisas "high-tec" domésticas até aos mitos artísticos europeus, Louvre, Roma, Bernini.

E "assim se fazem as cousas".

Sem comentários: