29 abril, 2006

O que se escreve sobre o 25 de Abril

Faço parte de uma lista bem conhecida da comunidade Mac, o Correio dos Outros. Por volta do 25 de Abril, vários membros escreveram depreciativamente. Foi um direito que o 25 de Abril lhes deu e muito bem. A uma dessas mensagens, de PauloSR, que não sei quem é nem que idade tem, resolvi responder. O seu texto vai em "indent".
É bom que se diga que os famosos “capitães” que têm a fama de terem feito o libertador 25 de Abril de 74, não o fizeram com o altruísmo de libertar a população do jugo ditatorial em que na realidade se encontrava, mas sim o fizeram a pensar nos seus bolsos e, goste-se ou não, apenas por razões salariais...
Isto é mentira e uma enorme injustiça. É verdade que, ainda em 1973, as primeiras movimentações dos capitães foram corporativas (não salariais, antes de antiguidade na carreira), mas logo evoluíram, surpreendentemente, para a contestação à guerra colonial, primeiro, e a seguir para a consciência de que esse drama só se resolveria com uma mudança de regime. É por isto que muitos militares, de posto superior e de maior consciência política, desconfiaram inicialmente do movimento mas depois o conduziram com grande apoio de "base". Não é por acaso que inicialmente se falava do "movimento dos capitães" e depois ficou como MFA. No 25 de Abril, saíram à rua oficiais, sargentos e soldados. Do quadro e milicianos, muitos dos quais meus companheiros do movimento associativo. Também a Armada, nada corporativa e muito politizada.

Cito três exemplos de militares do 25 de Abril: Vasco Gonçalves esteve envolvido na revolta da Sé. Varela Gomes esteve preso vários anos pelo golpe de Beja. Melo Antunes foi, entre muito mais, candidato pela CDE nas eleições de 1969, embora a Pide o tivesse vetado.

É certo que houve alguns casos lamentáveis. Para mim, homem de esquerda, fica-me para a vida o desgosto do percurso de Otelo, que condeno inteiramente. Mas também houve ao contrário. Por exemplo, José Bernardo Canto e Castro - por alguma razão era protegido de Salazar! - passou de membro da coordenadora do MFA a militante do ELP e fornecedor de bombas assassinas (lembram-se de que o terrorismo do ELP matou gente, até um bebé?).
O que eles nunca julgaram foi serem “apanhados” pelo povo (e por alguns partidos políticos, mais ou menos organizados) o que acabou por transformar um Golpe de Estado em uma Revolução (desorganizada, mas uma revolução)... Revolução essa que caminhou rapidamente para a anarquia e na prática, de novo para uma nova ditadura, só que agora de outra vertente (para não dizer mesmo de uma outra cor)...
A arrogância intelectual de quem julga que a história é desenhada a régua e esquadro. Quem é que hoje rejeita a imensa herança da revolução francesa? e, no entanto, houve Robespierre, o terror, a guilhotina, o processo de Lavoisier. Mas também a revolução francesa teve o seu 25 de Novembro, o 18 Brumaire, Napoleão, o domínio de uma nova oligarquia, a guerra e a miséria levadas a toda a Europa.
É exemplo de liberdade e bem saber governar a maneira como se deu a já devida independência às antigas colónias ultramarinas, levando para a desgraça e miséria milhões de indivíduos lá e cá???!!! Criando uma vaga de Retornados e Refugiados (refugiados sim... porque os nascidos e criados lá são refugiados e não retornados como foram e ainda são chamados), criando o desenraizar e mutilação de populações inteiras...
Tinha de vir a descolonização. Não sei se PauloSR teve contacto com as "províncias ultramarinas". Eu tive porque, sendo antifascista, segui a orientação de irmos para a guerra. Foi acertadíssimo. Creio que não teria havido consciencialização dos capitães se não fosse o "brainstorm" que lhes fazíamos entre um poker e um uísque, no meio do mato.

Voltando às colónias, é preciso lembrarmo-nos do que foi o colonialismo português. Franceses e ingleses criaram elites locais, universidades, infra-estruturas, etc. Em Angola e Moçambique, tudo isto era primitivo, nas outras vestigiais. Já alguma vez foi a Luanda? Agora ainda está pior, mas, no meu tempo, era um miolo de cidade desenvolvida só branca, rodeada por um imenso musseque miserável. Fui assistente da universidade, aliás muito tardia. Em uma centena de alunos, não chegavam a meia dúzia os alunos pretos.

Há de facto grandes culpas pela situação actual dos PALOP, que muito me entristece. Mas a culpa não foi da descolonização, foi da colonização. A descolonização foi a possível. Eu pessoalmente, nunca pensei que até corresse tão "bem".
Desrespeitando por completo o esforço e sangue dos que lá morreram e lutaram...
Isto é chantagem psicológica. A grande maioria dos nossos mortos, a quem devemos homenagem, morreram sacrificados, por uma causa em que não acreditavam. Como disse, estive no mato, em companhias de fuzileiros. Com algum risco da minha parte, tentava fazer acção política e tinha conversas com muitos marinheiros. Eram raros os que acreditavam no "império". Suspiravam era pelos 24 meses que os aliviariam daquele inferno.
Pois à excepção da Guine os restantes territórios estavam o suficientemente controlados para se dar uma independência em condições para os novos países de África.
Outra falácia. Vou falar do que conheço, Angola, mas sabendo que ainda era pior em Moçambique. Fora as cidades, não havia nenhuma zona segura. As principais vias de comunicação, rodoviárias e ferroviárias, estavam sob vigilância permanente. O leste, onde estive, só estava relativamente seguro graças à cumplicidade da Unita com a Pide. Claro que em Luanda se comia lagosta, mas isso era como em Havana, quando Baptista acordou num reveillon com as tropas de Fidel a atirarem sobre o casino.

Aceito, no entanto, que Angola não estava na iminência da tomada de poder pela força principal, o MPLA, aliás a passar por uma crise grave. Mas estava-se num empate. Já era impossível o controlo estratégico pelas forças armadas portuguesas.
E repugna-me e deixa-me revoltado ouvir as desculpas dos intervenientes da altura: “... foi a independência possível...”... Foi a independência possível entregar a minorias DITATORIAIS o controlo e os desígnios de vários povos nos novos países daí nascidos... É isto o exemplo de Liberdade que queriam dar entregando as chefias e governos dos novos países a ditaduras do partido único???
Mas, depois de décadas de fascismo de partido único, quem é que habituou esses povos às virtudes da democracia pluripartidária, que, aliás, não têem correspondências aos seus valores civilizacionais?
Revolta-me é o medo que já começa a haver hoje de expor a nossa revolta e as nossas ideias contra as posições de um governo que se aproveitando da sua posição maioritária se comporta de modo “ditatorial”, atacando os direitos dos indivíduos de uma forma mais grotesca do que seria de pensar hoje em dia.
Curioso, isto, quando toda a direita escreve na comunicação social com maior facilidade do que a esquerda! E quem é que limitou este escrito de PauloSR? Ninguém pode acusar o PA [nota, JVC - PA é o moderador da lista onde este texto foi publicado] de não ser democrata e, veja bem o que ele escreve, não me parece que seja um democrata nascido no 25 de Novembro.
Ou será que ainda ninguém reparou na estratégia que têm de antes de atacar os direitos de uma classe profissional, atacam-na e desacreditam-na na praça publica e quando a opinião pública está contra ela lá vai “facada”, com todos os outros a bater palmas... O pior é quando esse ataque nos bate à porta, aí revoltamo-nos mas já estão todos os outros contra nós... E as pessoas ficam caladas que nem presas amedrontadas, com medo de que lhes possa acontecer alguma coisa... Isto sim eu já começo a ver como um ataque à nossa tão demorada e conquistada Liberdade... (Ai... Se arrependimento matasse...)
Ah, já esperava, os direitos de uma "classe profissional". Eu aprendi a discutir "classes sociais". A sua expressão tresanda a corporativismo. É um problema que me atormenta, ver como essa herança salazarista ainda está tão presente, mesmo que sob formas mais modernas.
Isto já vai longo demais... Por isso digo “LIBERDADE SEMPRE”
Paulo (PauloSR)
Também eu digo LIBERDADE SEMPRE, mas, para não falar do 25 de Abril, não a isolo da trilogia "liberté, égalité, fraternité", que hoje poderia actualizar como "liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social".

P. S. Esta entrada merece uma dedicatória. Vai dedicada, com muita saudade, a um querido amigo, que teve grande influência em mim: Ernesto Melo Antunes. Nunca chegou a general, nunca teve a Torre e Espada, sentiu-se ultrapassdo pela direita no 25 de Novembro, morreu amargurado por nunca ter visto concretrizado o Portugal com que sonhou, muito antes do 25 de Abril, mas um dia a história há-de lhe fazer justiça.

12 abril, 2006

Notas soltas

Hoje não é sábado mas, no próximo sábado pascal ninguém me lê.

1. Li uma coisa engraçada escrita por Vasco Pulido Valente: na nossa administração pública, o valor de um dirigente mede-se pelo dinheiro, pelo número de funcionários e pelo espaço que domina. Nada de estranho, é visceralmente biológico. Com excepção do dinheiro, qualquer macho dirigente se mede pela dimensão da manada e pelo espaço que conquista. Agora se um dirigente se quer ver apenas como animal, é lá com ele.

2. Será também um comportamento biológico, de defesa de interesses? Há bastante tempo, colaborei intensamente com uma escola universitária e conheci muito bem o seu clima doentio de relações internas baseadas em grandes amizades e ódios de estimação. A isto, estamos todos habituados. Há dias, depois de muito tempo de falta de contacto, tive uma descrição pormenorizada da situação actual. Continua na mesma, mas mudaram os papeis dessa farsa. Grandes amigos são hoje inimigos figadais, grandes e velhos ódios rancorosos converteram-se em amizades de grande cumplicidade. Não faz mal, disse a esse ex-colega, a responsabilidade que certamente todos sentem em relação aos desafios de Bolonha vai pôr toda a gente a proceder superiormente...

3. Já tem sido mais do que discutido: a unidade de missão para a reforma do código penal propõe que vários crimes cometidos por políticos (peculato, abuso de poder, favorecimento em negócios, não estou certo se mais) possam ser punidos com a perda do mandato, em vez da prisão. Foro privado dos políticos?

Parece-me um escândalo e um atentado ao respeito colectivo pela vida democrática, respeito já muito em baixo. Mas que capacidade há em Portugal para um cidadão manifestar a sua indignação? É verdade que os blogues vão sendo importantíssimos, mas só chegam a uma magra minoria dos cidadãos. Nós temos, colectivamente, a democracia que merecemos porque, ao longo dos séculos, não soubemos criar uma sociedade civil forte. O milagre finlandês - e outros - não é de tecnologias, é essencialmente disto. Sociedade civil muito forte, grande cultura democrática interiorizada, aprendizagem da ética desde as primeiras palavras.

08 abril, 2006

Literatura e história

Nos últimos dias, desde 4 de Abril, Pacheco Pereira – licenciado em História, segundo creio – tem publicado no "Abrupto" excertos de um novo livro de Agustina Bessa Luís, "Fama e Segredo da História de Portugal". Não percebo bem o que será o livro. À primeira vista parece uma coisa de tipo "a história contada aos coitadinhos que nunca a estudaram". Literariamente é pobre, pela amostra; historicamente é pouco séria.

Como alguns leitores do Abrupto chamaram a atenção, abundam os erros ou, pelo menos, as fantasias. Muitos dos que vou apontar são referidos por leitores do Abrupto. Ao menos, Pacheco Pereira teve a honestidade de publicar essas criticas. O tema também tem sido discutido no blogue "Um prego no sapato".

Segundo o primeiro texto, D. Afonso Henriques poderá muito bem ter sido filho bastardo de Egas Moniz. O conde D. Henrique pode ter sido filho do rei da Hungria e veio para Espanha, coisa que não existia na época. O conde Sisnando é sempre tratado por capitão, coisa que nunca li e termo que, se não estou em erro, não era usado na época. Há uma ama de leite, Ausenda Dias, que recebe de ABL o nobilíssimo e então muito raro título de Dona. Mais mirabolantemente, D. Teresa amantizou-se (ou ter-se-á casado, segundo ABL) não com o galego Fernão Peres de Trava, mas sim com um conde Pedro Trastâmara, inventado séculos antes do primeiro Trastâmara, Henrique, rei e pai do João de Castela que o mestre derrotou em Aljubarrota. Ainda por cima, esse conde Pedro Trastâmara tinha por pai o Fernandes (qual o nome próprio?) de Trava. Sem ABL referir o patronímico do tal Trastâmara, fica uma grande confusão de condes. Finalmente, a troca de um infante aleijado de nascença por uma obscura criança aldeã pode ser fantasia imaginativa mas duvido de que seja história.

Outro texto fala de D. Filipa de Lencastre. Para não alongar mais isto, só a referência de ABL aos seus "quatro filhos rapazes". Como toda a gente sabe, foram Duarte, Pedro, Henrique, João e Fernando, para só falar dos que sobreviveram até adultos. Faz-me lembrar um antigo politico pomposo e caricato que explicava sempre "por três razões", que, afinal, ou eram duas ou quatro, nunca três. Mas já chega de exemplos e passe-se ao importante.

Que direito tem um escritor ficcionista de "usar" a história? A meu ver, todo, desde que o jogo seja limpo. Ninguém tem dúvidas de que o bispo negro de Herculano não é uma figura histórica, embora o conto se enquadre magnificamente na história da época. Ninguém tem dúvidas de que o romance entre Ana de Áustria e o duque de Buckingham não tem base histórica sólida, mas "Os três mosqueteiros" nunca sofreram por isso. Mais recentemente, os fascinantes livros de Dan Brown têm muitas fantasias "históricas", mas deliciosas, e que ninguém considera como impostura e que, por isso, levam ao ridículo os protestos do Opus Dei.

Este triste caso de ABL, a quem se exigem grandes responsabilidades intelectuais, não é nada disto. Não é ficção, nem sequer a recriação de um ambiente de época. É pseudo-história, perigosa porque, para muita gente, avalizada pelo prestígio da autora. É mais um caso para nos lembrarmos de que "não suba o sapateiro além da chinela".

Lembram-se de um caso inconcebível, já aí há uns vinte anos, de um "historiador" chamado Magalhães Barreto e de um seu livro "top seller" sobre Colombo português e agente secreto de D. João II? ABL fica agora com boa companhia. A propósito, lembro-me de que esse "historiador" de fados e touradas escrevia sempre Cólon-Zargo. Aqui está uma boa sugestão para ABL: escrever Trava-Trastâmara. Daria muitas teses "académicas"!

Pena é que talvez não haja agora cá para zurzir em ABL pessoas como as que afrontaram o "colombólogo", Luís de Albuquerque e Luís de Távora. Com isto, sofreram vexames de uma canalha "intelectual". O que seria agora com quem arrostasse com a áurea de ABL? Afinal, estou a fazê-lo mas, como toda a gente sabe, eu sou um "desbocado" que ninguém leva a sério, salvo os amigos que conhecem o gozo que isto me dá.

Toda a direita, os sectores mais tradicionalistas, algumas mentes brilhantes que se consideram moderníssimos, criticam a ausência de um verdadeiro ensino de conhecimentos fundamentais sobre a nossa história. É certo que ainda não li nada de ABL sobre isto, mas conhecendo-se a sua posição ideológica, não parece abusivo pensar-se que ela partilhe dessa opinião. Com isto, ela está a dar um enorme tiro nos pés. Por mim, agradeço. E até me dá gozo, porque tenho sempre alguma "vergonha" em afirmar que não gosto nada da sua escrita literária, questão de meu gosto pessoal. Também não de Saramago e de Lobo Antunes, mas "porra, sou lúcido!" Agora, fico reconfortado e vou dormir hoje que nem menino embalado.

E já que estou embalado, recordando Almada e o manifesto anti-Dantas: ABL merece "pim"! De mim não leva um tostão de direitos de autora.