30 novembro, 2006

Boa governação?

O orçamento do aeroporto da Ota, como se esperava, já derrapou. Porque a sua entrada em funcionamento foi atrasada de 2012 para 2017, porque o movimento previsto aumentou de 20%, a previsão de custos passa de 3,1 milhões de euros para não sei quanto, é omitido na notícia do Público. No mínimo, vou admitir que os tais 20%.

Entretanto, em notícia que já não consigo localizar, anuncia-se que a Portela vai ser reforçada a curto prazo com obras, se não me falha a memória, de cerca de 400 milhões de euros, para o lixo depois da Ota: um novo terminal, o dobro das placas de estacionamento, o triplo das mangas. Só quem não viaja frequentemente de avião é que pode negar a necessidade urgente deste investimento, mas o que motiva esta escrita é outra questão.

Temos nós, portugueses, um défice nato para o planeamento e a previsão? Até parece que sim. Somos especialistas do desenrascanço, que, por definição, é a antítese do planeamento. O novo aeroporto de Lisboa vem na agenda política ainda dos tempos do marcelismo. Compreensivelmente, os anos pós-Abril não permitiram grandes empreendimentos, mas, depois, veio a fonte comunitária para a euforia de obras públicas do tempo cavaquista. No essencial, tudo auto-estradas, dão votos. Hoje temos uma rede provavelmente das de maior densidade europeia, mas nunca se pensou no aeroporto.

Outro exemplo notório foi o custo exorbitante da modernização ranhosa da linha ferroviária do Norte, em que continuamos a viajar à velocidade dos velhos Foguete, quando, na altura, já havia TGV em vários países. Quando hoje se fala no nosso futuro TGV, é preciso adicionar ambos os custos, porque os pagámos ambos, e responsabilizar alguém. Mas quem? Foram sucessivos governos. Podia dizer: responsabilizemos todos os que têm a culpa da nossa incapacidade de previsão e de planeamento. Mas quem são? Não seremos todos nós? Com isto, passando à minha actual missão de vida principal, a grande prioridade nacional não é a educação e, determinante de todo o sistema educativo, a educação superior?

Este país tem medo de existir? A questão hoje começa a ser outra, mais dramática: este pais quer existir? "That's the globalization, stupid!".

29 novembro, 2006

Gente típica (IV)

O Zé das camionetas

O Zé é verídico, mas alguma da história é ficcionada, em nomes e lugares, em um ou outro pormenor pitoresco, porque ele ainda deve andar por aí. Não tira nada à caracterização de um caso de gente típica. Eles ficam ainda mais típicos quando acentuamos as pinceladas do retrato.

O Zé das camionetas também era miúdo da minha R. do Saco de infância, mas “capitão da areia”. Não se sabia onde vivia, arribava à minha rua vindo talvez de uma noite mal dormida num bidão da doca. Ele não o dizia, mas sempre pensei que a sua vida passava muito por rei da doca, porque nos contava que era ajudante de guardas fiscais contrabandistas. A sua escola foi sempre a da malandragem, com histórias que me deliciavam e aos meus amigos, histórias de vivência impossível para nós, meninos burgueses e educados religiosamente.

Aos cinco anos, o Zé começou a sua carreira rodoviária, com uma velha cega, minúscula, desdentada e trôpega, que acho que não lhe era nada, apenas sócia no negócio. Entravam na camioneta da Lagoa e o Zé cantava o fado da ceguinha, com a sócia de olhos bem fechados, mas a adivinhar-se que olhavam para o vazio, talvez o triste vazio interior. Boné cheio de moedas, descia no Rosário e tomava a camioneta para a Vila Franca, repetindo-se o trabalho. Chegava a dar, num dia, toda a volta à ilha. Há quem garanta que, no fim, a velha finalmente abria os olhos e não se deixava perder nas contas da divisão de proventos que o Zé fazia.

O Zé foi crescendo e o tamanho já não despertava a vontade da esmola. Espírito empreendedor, virou-se para outra actividade, tirando partido dos seus conhecimentos de transportes públicos. Entrava nos cafés e fazia apostas. “Qual é a paragem que fica a seguir à do Cabouco?”. Ganhava sempre e, com isto, lá ia para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.

Um dia, jovem estudante em Lisboa, passeando-me na Feira da Ladra, parei a ver um dos habilidosos da vermelhinha, em grande discurso de distrair os jogadores. Entrou-me logo no ouvido a toada micaelense, reparei bem e era o Zé. Tinha assentado praça no 18 mas não durou lá muito, indo logo como corrécio para Penamacor. Tudo porque numa noite de sentinela, mais do que entediado, se entreteve a usar a Mauser para uns tirinhos aos pardais do Campo de S. Francisco. Isto contou-me ele, mas não acreditei, porque degradação a corrécio exigia muito mais, ou política ou grande malandragem de ciganos. Segredos lá dele, inconfessáveis até a velho companheiro, mas fiquei sempre a suspeitar de que ali devia haver história de saias com mulher de oficial. A vermelhinha ia-lhe dando algum proveito, mas a ambição era poupar todos os cobres para o regresso à ilha.

Interrogando os meus velhos companheiros, ninguém sabe do Zé. Com o seu jeito para o negócio, mesmo que pouco ortodoxo, não será hoje empresário bem sucedido, a ganhar muito mais do que eu?

(Adaptado de "O Mastro das Alminhas")

28 novembro, 2006

Fado tropical

Boa parte do meu tempo passa-se em frente ao computador. Há muitos anos, era eu estudante, frente aos livros. Há uma coisa em comum, o gostar de um fundo musical, antes no rádio portátil, na varanda-escritório, com o meu primeiro bebé a olhar-me embevecido (pai feliz que sou), agora no iTunes. Hoje, apeteceu-me descarregar músicas do Chico Buarque e lá fui dar com o Fado Tropical.

"Este pais vai cumprir seu ideal, vai ser um imenso Portugal." Errado. Portugal é que pode ser um imenso Brasil, se quiser e souber. Lula, candidata-te a presidente de Portugal.

Vem à baila outra coisa sobre o Chico. Só o vi ao vivo uma vez, algures nos anos 60, quando o TUCA trouxe a Lisboa o "Morte e Vida Severina". À direita do palco, lembro-me bem, alguns músicos, coro modesto, em que um se destacava. Na fila atrás de mim, estava Fernando Lopes Graça e lembro o comentário que lhe ouvi, para a Francine Benoit: "Este rapaz vai dar que falar". O rapaz era o Chico Buarque.

E, já agora, quando é que Lopes Graça vai ser nossa coisa diária, na rádio e na televisão? E outros, Luís de Freitas Branco, Peixinho, Emanuel Nunes?

O Papa na Turquia

O Papa começa hoje a sua tão falada viagem à Turquia. Tenho dúvidas de que seja sensata. Começa por se dever em conta que não é uma visita pastoral, quando os católicos turcos são poucos milhares. Aliás, as visitas de um papa, mesmo que pastorais, têm sempre significado politico (veja-se a visita a Cuba, um país de tradição católica, ou a primeira visita de João Paulo II à Polónia).

Vou deixar de lado a questão, provavelmente ainda quente, do discurso de Ratisbona e pensar principalmente em termos políticos. O Papa fez há tempos declarações inequívocas contra a possível adesão turca à UE. Sabe-se que é tema muito quente da política turca. Como vai ser recebido pelas autoridades políticas? Uma provável diminuição, até protocolar, dessa recepção, não vai envergonhar o Vaticano? Por outro lado, a laicidade turca é um bom exemplo para o mundo islâmico. O Papa vai resistir a falar nisto? Ou melhor, pode não deixar de falar? Mas, com isto, que reacções vai causar, nos meios islâmicos turcos e em outros países islâmicos?

Por outro lado, leio que a razão principal da visita é o diálogo ecuménico com o patriarca ortodoxo. Mas o que tem a Turquia a ver com isto, sendo apenas pais de hospedagem de um chefe religioso de alguns milhares de crentes e que, talvez, nem se sente bem turco? Havia uma solução bem mais "diplomática": uma simples visita privada para participar com o Patriarca na festa de S. André e conversarem ao jantar sobre o ecumenismo cristão. Todos as diplomacias sabem fazer a gestão simbólica, em relação aos chefes de estado, entre visitas particulares, visitas politicas e visitas de estado.

P. S. - Para meu espanto leio hoje, depois de escrita esta nota, que afinal o Vaticano apoia a entrada da Turquia na UE. Declarações contraditórias do Vaticano, com poucos meses de distância, era coisa a que não estava habituado. Modernização da Igreja?

27 novembro, 2006

O custo da Defesa

Nos últimos dias, tem sido muito comentado na blogosfera o peso que representa para o PIB a nossa despesa com a defesa, em comparação com outros países da UE. Sem repetir, vou tentar dar outras achegas.

Creio que a questão passa pela noção de defesa nacional, no quadro da UE. Não é credível a noção de defesa em relação a eventuais agressões indiscriminadas, mormente por parte de outros países comunitários, já vai longe Aljubarrota. Creio que a questão da defesa só se deve pôr hoje em termos da União. Assim, o peso dos custos da defesa de cada país membro seria ponderado em termos comparáveis aos das outras contribuições para a UE, com critérios de coesão.

É evidente que isto implica coisas bem difíceis: uma defesa comum e, logicamente, uma política externa comum. Com a moeda, são os maiores símbolos da soberania. A moeda nacional acabou e estamos a gostar. Não chegará o dia de virmos a gostar de ter uma política externa e um aparelho militar comuns? Nunca digo "desta água não beberei". E talvez prefira isto a outras formas ridículas de federalismo, desde as placas de matrícula dos automóveis ao rótulo das maçãs.

Outro aspecto é meramente interno, de desadequação às realidades militares actuais. Ainda temos hoje regimentos por todo o pais, como se não houvesse meios rápidos de projecção de tropas, ou baterias antiaéreas em tempos de disparo de mísseis por aviões a quilómetros de distância.

Fala-se também do excedente de quadros, muitas vezes pensando-se ainda na herança dos contingentes da guerra colonial. Não é verdade, basta fazer contas. A guerra colonial acabou há 32 anos. Mesmo os oficiais e sargentos então muito jovens estão hoje na casa dos sessenta e já passaram à reserva. O excesso de quadros foi posterior, por falta de uma política de adequação das Forças Armadas à situação pós-guerra. Em todo o caso, os excedentes não são só números, são homens e famílias. Que fazer com eles?

Nota final – O que escrevi não contradiz questões particulares de cada país, como sejam as relações diplomáticas especiais com os PALOP e encargos militares decorrentes da cooperação com esses países.

26 novembro, 2006

Do jornal de hoje (I)

Dá-me satisfação ao ego e à auto-imagem de pessoa isenta concordar, de vez em quando, com pessoas com quem habitualmente não concordo, como António Barreto. Hoje, escreve sobre os rankings das escolas e vale a pena começar por algumas transcrições, sem necessidade de comentários.
As críticas dirigidas a esta forma de avaliação e informação são, em maioria, verdadeiras. Os rankings não explicam as causas das situações verificadas. Não têm em linha de conta os contextos sociais e geográficos das escolas. Passam ao lado de várias realidades, como sejam os números reais de alunos e de candidatos a exames. São indiferentes a certo tipo de manipulações que se podem fazer, como seja incluir ou excluir certo tipo de alunos (adultos, repetentes, trabalhadores) e de cursos (nocturnos, profissionalizantes), o que pode alterar radicalmente o lugar de uma escola. Não consideram as situações reais de vida de uma escola e de uma comunidade, como sejam as actividades económicas, as condições de exercício dos docentes (nomeadamente a estabilidade, a experiência e a residência) e as características dos equipamentos e dos edifícios. Tudo isso é verdade. Mas nada disso retira definitivamente valor a estas classificações. Se não se lhes pedir demasiado e se não se considerar que são a última palavra da avaliação, são elementos de conhecimento insubstituíveis.
(…)
Há outras críticas bem mais risíveis e que quase não merecem ser consideradas. Por exemplo, aquelas que referem as vaidades e os traumas criados em consequência da publicação. As escolas bem classificadas ficariam arrogantes, enquanto as do fundo da tabela ficariam deprimidas e sem energia para recuperar. Também há os que dizem que a educação é um processo social delicado e sério de mais para que se façam classificações ou se provoque a concorrência. Acrescentam que a competição é negativa e prejudicial à boa pedagogia.
(…)
Aquando da publicação dos rankings, a grande excitação que aflige jornalistas e leitores diz respeito à comparação entre escolas públicas e privadas. Estas últimas ganham quase sempre, o que provoca imediatamente umas reflexões vencedoras dos respectivos defensores e umas azedas réplicas dos seus adversários. Também neste domínio os rankings não são de grande utilidade. Na verdade, a posição relativa das públicas e das privadas está falseada à partida. O recrutamento de docentes e de alunos dos dois tipos de escolas é desigual desde a origem. Natural será que os resultados traduzam essa desigualdade fundamental. Ora, os rankings são indiferentes a essa desigualdade. De qualquer modo, convém notar que, no conjunto, as diferenças de médias entre todas as públicas e todas as privadas não traduzem uma vantagem esmagadora: são mínimas.
Destaco um parágrafo, também sem necessidade de comentários, porque estou em inteiro acordo:
Mas o que é verdadeiramente interessante na publicação destas classificações são outras informações menos "picantes", mas bem mais reveladoras do estado da nossa educação. As médias nacionais dos exames das cerca de 600 escolas secundárias são certidões de fiasco e de desastre insubstituíveis. Com efeito, a média nacional das duas provas de Matemática, em todas escolas, é de 6,8 para uma prova e de 8,1 para outra. Quer dizer: 90 por cento das escolas exibem notas inferiores a 10, isto é, chumbam! Em Química, a média situa-se entre 7,3 e 8,8. Em Português, entre 9,5 e 11,8. Em Física, entre 8,5 e 8,7. Em Biologia, 11. Em História, entre 8,4 e 9,4.
Ainda outra judiciosa observação:
Outra observação importante é a das diferenças entre as classificações internas atribuídas pelos professores aos seus alunos (um misto de testes e de avaliação contínua) e as conseguidas nos exames nacionais. Com raras excepções, as notas internas são sempre muito mais elevadas do que as dos exames. Em média de escola e por disciplina, as diferenças chegam a atingir 5 e 6 pontos numa escala de 20. Há mesmo casos em que a diferença pode chegar aos 10 valores. Por outras palavras, alunos que obtêm notas dos seus professores de 10 a 14 ficam-se, nos exames nacionais, pelos 5 a 9!
Os números são indiscutíveis, mas não as causas. O que está mal, a avaliação contínua ou a avaliação final pelos exames nacionais, ou ambas? Não estou em condições de a discutir, mas estou certo de que é matéria que merece estudo sério. Estão em jogo o futuro de muitos jovens, a qualidade do acesso à educação superior, a garantia de qualificação dos nossos quadros aproveitando potencialidades reais e não formais.

Finalmente, passagem para a educação superior. Com uma cultura de avaliação já consolidada, critica os rankings, porque a avaliação é essencialmente qualitativa. Isto é possível em relação a umas dúzias de instituições, mas é-o em relação a centenas ou milhares de escolas? No entanto, há um aspecto da avaliação em que a educação superior está em atraso, em relação ao novo ECD: a avaliação individual dos professores.

Do jornal de hoje (I)

Assumi como regra basear este blogue na entrada de sábado. Provavelmente, errei. O jornal de domingo, a minha leitura diária do Público, dá-me sempre sobejas razões para notas. Uma delas é a crónica de Frei Bento Domingues. Coisa estranha, um não católico que nunca deixa de a ler! É que nada do que é humano me é estranho e a religião é componente essencial da nossa cultura, para além de não poder esquecer-me do que ela foi de importante na minha construção-reconstrução da personalidade.

A sua crónica semanal permite-me manter essa ligação, hoje não estrutural e meramente cultural, sem o masoquismo de ler alarvidades de dogmáticos e integralistas. Fossem assim todos os católicos (por isto, a sua leitura é sempre uma homenagem aos meus pais e a muitas discussões de respeito mútuo que tínhamos). Hoje, aborda uma coisa em que nunca tinha pensado, Cristo Rei. O que é isto, rei de quê? Vale a pena ler o que pensa Fr. Bento Domingues.

25 novembro, 2006

O caso Luísa Mesquita

Depois de um caso recente semelhante, o do presidente da Câmara de Setúbal, chegou agora a vez de Luísa Mesquita (LM), deputada muito conhecida do PCP e sua voz mais activa na educação. Foi solicitada a renunciar ao mandato, recusou, foi despromovida, por quebra da confiança política. No entanto, parece-me haver uma diferença importante. No primeiro caso, foi a quebra da confiança política que levou à demissão, agora essa quebra resulta da recusa da deputada em renunciar ao mandato, a única forma de permitir a sua substituição. Como não gosto de processos de intenções, vou aceitar que a única razão do PCP era, como afirmado, o rejuvenescimento do grupo parlamentar. Diferença ainda está no facto de, ao contrário de deputado, o cargo de presidente de câmara ser muito personalizado, muitas vezes decidindo isso a eleição.

Como aconteceu no caso de Setúbal, adivinho que o PCP vai ser criticado pela maioria dos comentadores. Sendo eu muito critico do PCP, este caso, todavia, merece-me muita reflexão. Por facilidade de exposição, começo por me pôr no papel do PCP. LM foi eleita numa lista partidária, numas eleições em que os únicos programas são os programas centrais de cada partido. A esmagadora maioria dos eleitores põe a cruz no quadrado identificador do partido em que vota e desconhece os candidatos. A prática parlamentar consolidada é a de disciplina partidária, com raras excepções de voto contra a decisão do partido ou de concessão de liberdade de voto. Um partido, na lógica do sistema, tem o direito de reajustar o seu grupo parlamentar (todos fazem rotações por motivos da agenda política do momento e dos temas em discussão). Não digo que tudo isto seja indiscutível, apenas que merece reflexão. E também não digam que estou de acordo antes de lerem todo este texto.

Saliento outro aspecto, de tipo pessoal. Como é sabido, os deputados do PCP (só do PCP?) comprometem-se a colocar o lugar à disposição sempre que o partido entenda que isso é politicamente necessário. LM tê-lo-á feito, mas agora não aceitou cumprir o compromisso. É questão de honra pessoal, não vou discutir. Também não me parece admissível que LM traga para esta discussão a sua amargura e sensação de ingratidão face à decisão partidária. Tem todo o direito de o sentir, quem não se sente não é filho de boa gente, mas não deve misturar isto com a questão política. A menos que tire daí consequências politicas em relação à sua militância, mas, então, a renúncia ficaria mais premente.

Questão diferente é a legitimidade ética de tal declaração, exigida pelo PCP aos seus candidatos. Tudo isto me leva a apoiar os muitos e muitos que consideram que é necessário rever a lógica do nosso sistema parlamentar, o seu funcionamento e o processo eleitoral.

Qual o papel dos partidos? Ninguém o nega, mas parece haver alguma tendência para o sacralizar em termos oitocentistas, de correntes organizadas de opinião política. Alguns ainda serão partidos com forte marca ideológica, mas a tendência é para a sua transformação em aparelhos de conquista e distribuição tribal do poder. Nestes termos, fica inquinada a teorização da relação eleitor-eleito. Na prática, quem é eleito é o partido. Cinicamente, diria que o deputado é um empregado como qualquer outro, subordinado ao poder do patrão.

Parece-me evidente que há que valorizar a responsabilidade e qualidade individuais dos deputados. Não podem ser apenas pessoas ao serviço exclusivo do interesse do partido. A questão de um compromisso entre a uninominalidade e a proporcionalidade parece-me mais importante colocada nestes termos do que em questões práticas de maior facilidade de contacto entre o eleitor e o eleito. Algum componente de uninominalidade vai exigir aos partidos maior cuidado na selecção dos candidates.

Por isto, simpatizo com uma regra de excepção para os eleitos nominalmente, a impossibilidade da sua substituição. A sua renúncia ou impedimento obrigaria a eleição intercalar, coisa não muito difícil em círculos uninominais. Também para responsabilização dos partidos na escolha dos seus candidatos, creio que declarações como as que o PCP pede aos seus deputados deviam ser consideradas como ilegais. Ao apresentar a candidatura de um deputado, o partido não pode estar a usá-lo como instrumento politico, tem de respeitar a pessoa (mas também esta tem de mostrar que merece esse respeito). No entanto, pelo que disse atrás, creio que no caso limite de uma cisão colectiva ou de uma desvinculação individual, é questão de honra os deputados renunciarem, porque, no actual sistema, perdem legitimidade política. Ou então, e é esta a minha conclusão, reveja-se o sistema, da sua filosofia à sua prática.

Finalmente, uma declaração patética de LM: "disseram que em Setembro devia regressar à minha vida profissional e académica, ou seja, ao lugar de professora do ensino secundário que ocupava antes de suspender a actividade, em 1995. Mas não é aos 57 anos que se regressa à carreira académica". Não sabia isto quando se candidatou? A sua decisão foi leviana e irresponsável? Ou estava a contar com a reforma, no fim do mandato? Não se pode ter o bolo e comê-lo.

24 novembro, 2006

No DR

Diário da República de hoje: Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 20/2006/M. Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa. Resolve solicitar ao Presidente da República que exerça os seus poderes constitucionais de veto e de fiscalização da proposta da lei n.º 97/X, que aprova a Lei de Finanças das Regiões Autónomas.

Público, de hoje: a lei só vai ser votada pela AR na próxima 5ª feira. Teoricamente, até pode ser reprovada.

Precipitações jardinescas.

22 novembro, 2006

Gente típica (III)

Homens que souberam escolher

Há pessoas que nascem fadadas para um destino permanente, por fortuna ou por carreira e que, sabe-se lá porquê, subvertem a subordinação ao destino. Aqui vão dois exemplos.

O leiteiro da minha casa

Já eu era adolescente quando, em Ponta Delgada, o Loreto começou a distribuir o leite industrial pasteurizado, em garrafas. Antes, imperava o leiteiro, rua a rua, casa a casa, sentado à ilharga da carroça de cavalo, embrulhado na camisola grossa de lã de S. Maria e com o seu típico barrete. Tão típico como o indispensável cão, atado ao eixo da carroça. A carroça vinha prenhe de latas de leiteiro, de onde se vendia o leite em medidas de canada.

Leiteiro, filho de gente pobre, rendeiro de um cerrado de pasto para meia dúzia de vacas. Excepção era o leiteiro da minha casa, o Sr. Teves, filho de família rica. Visita diária matinal, a dar grito da Mercês, criada-minha comadre, que isto nos Açores estas relações são mistura de dependência e de afectividade.:"Senhora, é o leiteiro!". Respondia a minha avó: "Mercês, não é o leiteiro, é o Sr. Teves", ao que o Sr. Teves retorquia "Rapariga, é mesmo o leiteiro, Sr. Teves foi coisa de que não tive culpa, leiteiro foi decisão minha".

O taberneiro catedrático

A minha avó materna prezava muito a riqueza familiar de um primo emérito académico, o Prof. Sousa Júnior, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e um infecciologista que entrou na história da medicina portuguesa. O meu pai ainda o conheceu, mas em situação magnificamente diferente.

Nos sessentas (minha idade, será que me dá também para a maluqueira?) deu-lhe uma pancada e reformou-se antecipadamente das láureas académicas. Regressou à Terceira e às terras de família, minha também, no Porto Martins, onde se produzia vinho de velhas quintas de família. Despiu a beca e uniformizou-se com camisa de linho rústico sem colarinho, suspensórios e chinelos de ourelo. Abriu uma taberna e gastou o resto da vida a vender vinho a copo de três, cavaqueando com campónios e pescadores. Há açoriano que não tenha um grão de loucura? São séculos de grande consanguinidade e a genética cobra o seu preço, para o melhor e para o pior.

Há tempos, um amigo comum propiciou-me o encontro com um primo meu distante, herdeiro directo de Sousa Júnior. É hoje um médico bem sucedido, carreira a sério, mas acabámos por ficar com a provocação mútua: será que ainda vamos fazer sociedade para abrir uma taberna no Porto Martins? Nesse momento, foi ocasião de riso. Daqui a uns anos, não digo que será só riso... Ainda por cima, o JAG e eu partilhamos outra paixão, bem açoriana, a da marinha. Taberna no Porto Martins com fotografias da Sagres e uns copos com velhos marinheiros? E em sociedade com o Luís Brum, quase familiar por via das "amigas" Maias, para bom apetrechamento de vinho dos Biscoitos?

20 novembro, 2006

O pânico dos privilegiados

Estamos em época de caça aos privilégios. Na dúvida reinante sobre se o governo é ou não de esquerda, a luta contra os privilégios parece-me ser sempre, em princípio, uma coisa estruturante da esquerda. Agora são os sistemas especiais e sectoriais de saúde, a ADSE, os SAMS, os jornalistas. Não tenho nada contra eles, eu que também tenho um seguro de saúde de família amplo, se forem um acréscimo ao SNS mas pago pelos que deles beneficiam, não por todos os contribuintes.

Não me venham é tentar justificá-los com argumentos primariamente emocionais e sem qualquer racionalidade, a enganar o pagode. O Sindicato dos Jornalistas afirma que "a CPAFJ faz parte do património dos jornalistas como um patamar de qualidade e de direitos, é um reconhecimento do Estado das especificidades da profissão e é também decisiva para as condições em que os jornalistas portugueses desempenham a sua profissão". Eu aceitaria isto do sindicato dos mineiros, dos pilotos da aviação, dos controladores aéreos, até dos enfermeiros e outros mais já agora, pessoal de laborstários de invstigação, um ambiente dos mais hostis). Mas dos jornalistas? Fico a saber que é profissão de desgaste, talvez pelos riscos para o colesterol de muitos almoços em procura da caxa. Especificidades da profissão? Expliquem lá isto. Vai mal o sindicalismo em Portugal. Em Portugal que, felizmente, está cada vez menos um pais de acéfalos. Cada vez mais o Zé Povinho começa a ser o barman do cartoon diário do Público. Não lhe comem as papas na cabeça.

Entretanto, os grandes privilegiados estão seguros e não entram em pânico, até se riem dos ataques à banca. Esta é que a questão essencial.

19 novembro, 2006

O meu jornal

Leitor desde o número um, tenho com o Público uma relação de amor-ódio. Com os meus vagares de semi-reformado, lei diariamente, online, o Guardian e o El Pais, frequentemente também o Times e o Le Monde. O Público é obrigatoriamente em papel. Muito podia criticar, mas hoje apetece-me dizer bem.

Ao domingo, não se pode perder a excelente página do provedor, Rui Araújo. Muito mais mensagens recebe ele, inclusivamente minhas, que não cabem no espaço apertado dessa página semanal. Posso testemunhar que todas as que recebe são respondidas privadamente com grande amabilidade e com o rigor das que lemos no jornal impresso.

A outra nota vai para um pequeno escrito mensal, infelizmente relegado para o Local: uma crónica escrita em mirandês, "Como quien bai de camino", por Amadeu Ferreira. Para além de sinal de valorização de uma muitas vezes esquecida diversidade linguística de Portugal (para quando uma crónica em barranquenho?), é uma leitura deliciosa. Aqui vai o primeiro parágrafo de hoje: "S'ampeçarmos a ber la stória dua lhéngua, de qualquiera lhéngua, çque eilha s'ampeçou a chocar i le acumpanharmos l crecer pula sue bida fuora, hemos de cuncluir que eilha stá siempre a recebir palabras doutras lhénguas i tamien a dar-le palabras a outras lhénguas. Assi bai demudando, ganhando nuobas quelores, agarrando nuobos caminos para cuntinar, hai giente que ben a tener cun eilha, hai giente que sal, siempre por arressaios an que mos perdemos. Mas quando nun cunseguimos mirar l tiempo puls beneiros que mos traírun até als dies d'hoije, cuidamos que las cousas siempre fúrun assi i damos cun nós a sacar cunclusiones al alrobés."

Notas soltas, da leitura dos jornais

Do Público.

1. Continua a publicidade ao livro de Santana Lopes. O homem é um elemento ainda vivo da galeria deliciosa das personagens políticas queirozianas. Só a Caras lhe devia fazer publicidade. Infelizmente, o meu jornal alinha.

2. André Freire responde a Vital Moreira, sobre se o PS é de esquerda. Com toda a estima que tenho, em regra, pelos escritos de vital Moreira, vou mais por André Freire. Vejam a minha entrada de ontem e a promessa de escrever no próximo sábado sobre este assunto.

3. Sempre a Madeira (e não pensem que eu, ilhéu, sou anti-autonomia, muito pelo contrário).
O Governo Regional da Madeira adjudicou à Controlmedia, empresa propriedade de Jaime Ramos e administrada pelo seu filho, Jaime Filipe, ambos deputados do PSD, sendo o primeiro líder parlamentar e o segundo líder da JSD, a planificação da campanha promocional da Madeira como destino turístico junto do mercado continental. O contrato, orçado em 644 mil euros, tem a validade de dois anos e foi feito após concurso público ganho pela empresa do deputado. Um negócio que só é possível porque a Madeira se excluiu do regime de incompatibilidades em vigor no Continente e nos Açores, que impedem os detentores de cargos públicos de realizarem negócios com o Estado.
Sem comentários.

4. Morreu Sottomayor Cardia. Não sou dos que, nos obituários, omitem qualquer critica. Cardia tem muita coisa de excelente: a coragem intelectual e física (leia-se, resistência à tortura), a reflexão permanente e rigorosa, com reajustamento das suas posições políticas, a coragem da decisão contra as tendências gerais. Mas critico-lhe o sectarismo e intolerância, dos tempos em que o conheci, PCP e Seara Nova. Também as suas leis universitárias, reconvertido ao respeito pelas hierarquias, então medíocres.

5. O protocolo de Quioto, sobre o aquecimento global, vai ser reavaliado. Já o leram? O que há para reavaliar, senão a subordinação aos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, que não o subscreveram?

E do Expresso.

6. Na Única, uma reportagem sobre o casal Annan. Reparei primeiro na mulher, que nunca tinha visto fotografada. Que beleza e elegância, a fazer adivinhar grande qualidade intelectual e de carácter. Vou ter saudades de Kofi Annan, esperando que o seu sucessor me ajude. África, nas décadas recentes, deu-nos dois grandes SENHORES: Nelson Mandela e Kofi Annan.

7. Um artigo pobrezinho, "Cinderela ou patinho feio", sobre Bolonha e o ensino superior privado, com o estafado cheque ao estudante. O seu autor é Artur Torres Pereira, presidente da Universidade Atlântica. Quais são as suas credenciais para tão responsável cargo? Filho de um professor universitário? Dirigente partidário, creio que na mó de baixo? Ex-presidente de um pequeno município de província? O que é que alguma vez mostrou de conhecimento da educação superior? Assim, as privadas não vão a parte nenhuma.

18 novembro, 2006

Homónimos

Numa entrada e noutra do Incursões, Marcelo Correia Ribeiro refere um João Vasconcelos Costa (eu?!). Os que me conhecem, não fiquem perplexos. É o humor muito especial do Marcelo. Sobre esse humor, aliado a muita seriedade, escreverei brevemente, a propósito de um seu livro, provavelmente pouco conhecido, "A pedra no sapato, a pata na poça". Imperdível, em particular para a nossa geração de/dos 60. E leiam, estou certo de que vai valer a pena, o seu inevitável comentário à minha entrada anterior, sobre a esquerda.

O desconforto de se ser de esquerda

Creio que, até ao suspiro final, continuarei a dizer que sou de esquerda. É constitutivo, mas com desconforto crescente, por duas razões principais: O que é ser de esquerda? Como transpor isto para a prática de hoje, que mais não seja no grande momento do voto?

O que é a esquerda? Apetece-me começar por uma velha máxima: é de esquerda aquele que recusa dizer que, hoje, já não faz sentido a distinção entre a esquerda e a direita, em época do "fim da História". Claro que isto tem muito de blague e é pouco operacional.

Também há uma outra fórmula: no binómio liberdade-segurança, a esquerda privilegia a segurança, a direita a liberdade (principalmente económica, entenda-se). Esta fórmula, a meu ver, é a mais errada. Começa pela ambiguidade do termo segurança. Se o entendermos como segurança individual contra as adversidades do capitalismo selvagem, baseada na solidariedade social, muito bem. No entanto, nestes tempos, segurança está muito mais conotada com a protecção contra as ameaças (maxime, terrorismo) e neste sentido, a perspectiva securitária tem muito mais reflexos reais nas políticas conservadoras, incluindo Blair (à esquerda?). Por outro lado, em relação à solidariedade, há uma velha atitude caritativa que é apanágio de uma direita católica. A diferença essencial está no adjectivo "caritativa", coisa de superior para inferior, muito diferente da solidariedade de iguais.

Outra identificação tradicional foi entre esquerda e progressismo, entendido este de forma multidimensional: a crença optimista no processo histórico, no progresso humano não limitado ao aumento da riqueza, a valorização das novas ideias, o racionalismo e a cultura para todos, o pacifismo, o anticonfessionalismo, a solidariedade com os povos oprimidos. Esta visão tem a vantagem de não se crispar em sistemas ideológicos, como o marxismo-leninismo (note-se que, sem espaço para desenvolver este tema, distingo inteiramente o marxismo do marxismo-leninismo). Honestamente, há que reconhecer que estes valores, em maior ou menor grau, são hoje partilhados por gente que até se assume como de direita. Vou mesmo mais longe. Vejo sinais de, numa atitude defensiva, alguma esquerda diabolizar o progresso.

Lembro-me também de uma fórmula de Vital Moreira, há uns anos, que me agradou: a esquerda de hoje é a que ainda continua fiel ao lema da Revolução Francesa, "liberté, égalité, fraternité". Nessa altura, escrevi, modernizando-a, "liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social". Com tristeza para toda a nossa geração, agora já se reduz a fórmula à mera preservação do estado social, coisa que me parece muito mais limitada. Tristes tempos!

Talvez a minha melhor abordagem pessoal seja a da memória da juventude. Porque é que fui de esquerda, no desabrochar dos vintes etários? A pergunta implica a vantagem de transferir o discurso da teoria, hoje nebulosa, para a prática. Com risco de parecer sectário, digo que, em 1960 e nas décadas anteriores, ser de esquerda, em Portugal, era ser comunista ou independente simpatizante e colaborante (não falo aqui das derivações posteriores, maoístas, que sempre rejeitei, mas que, em alguns casos, respeito, bem como dos grupos de católicos progressistas, pouco expressivos, embora importantes). Antifascistas houve muitos e muito respeitáveis, mas não posso considerar como de esquerda muitos democratas que rejeitavam qualquer aliança com o movimento popular ou que se recusavam a afirmar uma atitude anticolonial. Mais tarde, vem a ASP, embrião do PS. Aceito que de esquerda, mas sem uma visão de alternativa ao capitalismo.

Chegamos a uma pedra de toque. Pode-se ser de esquerda aceitando o capitalismo, como sistema económico? Nesses tempos, julgo que não se pode sequer colocar a questão, hoje é uma inevitabilidade prática. O modelo real de socialismo faliu, para não falar da hipocrisia da China actual (continua a ser socialista?). Muito antes da falência política, o "socialismo real" já tinha falido em três coisas essenciais: o défice democrático, a falência da utopia da construção do "homem novo" (veja-se o que é hoje a Rússia) e na economia, com uma visão burocrática e anti-científica de um sistema económico. Por este último factor, talvez mais do que pelos políticos e sociais, longamente acumulados, qualquer proposta da chamada "esquerda dogmática" enferma logo da falta de credibilidade, por falta de um modelo económico alternativo.

Talvez muita coisa pudesse ter sido diferente se tivessem vingado a autogestão jugoslava, a revolução húngara, a primavera de Praga. Infelizmente, a história nunca volta atrás. Fica isto apenas como consolo para quem, e foram bastantes, não esperou pelo estertor perestroiko para pôr em ordem a sua cabeça, no armário da ideologia e da política.

E estes, eu e muitos dilectos amigos, com que se defrontam hoje? Com a ordem capitalista, provavelmente por muitos anos, sem alternativas, com as regras do mercado, com a globalização, com as restrições do euro, e principalmente com a chantagem da poupança das empresas em relação ao esmiframento dos contribuintes trabalhadores, porque elas são as nossas queridas garantes da competitividade. Ironicamente, está-se a cumprir um velho princípio comunista, o colectivo antes do individual. Simplesmente, o colectivo é agora essa coisa vaga e contraditória que é o mundo das empresas.

Parece inegável que, hoje, a economia e as leis do mercado condicionam fortemente, senão totalmente, a liberdade de opção política. Como ainda li há dias, entende-se que controlar o défice, criar condições de competitividade na globalização, contribuir para a robustez do euro, não são políticas de esquerda ou de direita, são só boa governação. Por outro lado, há novas situações muito condicionantes, como a necessidade de preservação dos recursos escassos ou, por outro lado, a grande mudança demográfica, com grandes consequências para a siustentabilidade da segurança social e dos sistemas públicos de saúde. Realisticamente, aceito isto, em boa parte, mas é perigoso. Não aceito que a forma de fazer essa boa governação seja indiscutível. Se o for, congrega, como se está a ver em muitos lados, também cá, um albergue espanhol de apoios, em que, aí sim, se torna muito difícil distinguir esquerda e direita.

Com tudo isto, volto à tal minha fórmula de ser de esquerda, que me alivia o desconforto: liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social. Como disse, parece que agora a solidariedade social é o último reduto definidor. Dou mais valor à igualdade de oportunidades. Acrescentaria também um aspecto importante, de atitude. Mesmo aceitando-se a inevitabilidade das constrições do nosso sistema económico, pode-se pactuar com as suas consequências ou até mesmo desejá-las. Isto é claramente uma atitude de direita. Pelo contrário, pode-se lutar pela limitação, a maior possível nas circunstâncias reais, das consequências sociais da generalizada visão neoliberal e da globalização. É ser-se de esquerda. Juntaria a independência de espírito e o respeito pela pluralidade de visões, sempre em debate, num quadro comum de valores essenciais. Também uma atitude profunda, não só de circunstância, de revolta e luta activa contra a pobreza, a exploração dos povos, o belicismo, o obscurantismo, a subjugação das mulheres, a doença no terceiro mundo, etc. (sem negar que há muita gente dita de direita que também partilha estas preocupações, mas sem que isto seja estruturante do pensamento de direita). Não é muito, mas é difícil.

Isto vai longo, desculpem-me, mas assunto tão sério não se compadece com "sound bites". Para a próxima, fica outra questão, agora bastante discutida: o governo Sócrates é de esquerda? E, já agora, ao inverso, o PCP e o BE não serão uma esquerda que se mata a si própria, por desajustamento à realidade? O que fica?

17 novembro, 2006

Mariano Gago subscreve Teixeira dos Santos?

Se virem a barra lateral, repararão que escrevo regularmente, no meu sítio, apontamentos sobre a educação superior. Creio que o de hoje tem interesse político mais amplo e aqui o reproduzo.

"Isto é à maneira do célebre poema de Brecht. Primeiro foram os funcionários públicos, a seguir os juízes, depois os militares e, com grande estrondo, os professores. Só faltavam os universitários.

Na discussão parlamentar do orçamento, o Ministro das Finanças acusou as universidades de má gestão, falta de rigor, desperdício. Não vou sair em luta cega em defesa das universidades, em geral. Como antigo dirigente universitário, sei que isto é verdade, em muitos casos, em relação às despesas de funcionamento: ignorância da economia de escala, má gestão de stocks, irracionalidade de procedimentos administrativos, falta de controlo dos gastos com energia e comunicações, contratos de externalização ("outsorcing") pouco exigentes, etc.

No entanto, isto é uma gota de água no actual problema orçamental. Ao que se diz, cerca de metade das universidades não terão orçamento suficiente para cobrir as despesas de pessoal. Neste caso, não há que falar em falta de rigor ou desperdício. São despesas fixas, com excepção de contratos a termo, avenças e contratos de prestação de serviços, pouco significativos nas universidades. Ainda por cima, o défice orçamental das universidades e dos politécnicos foi agravado consideravelmente pela decisão de última hora, fora da fórmula de financiamento, do desconto "patronal" de 7,5% para a CGA. No mínimo, por elementar lisura e cumprimento das regras do jogo, exigia-se o respectivo reforço orçamental. Nestas circunstâncias, é preciso ser-se "carola" para se querer ser reitor.

O "sound bite" do ministro é uma desonestidade intelectual e política, de cuja cobertura o MCTES não pode isentar-se. O MCTES não pode viver em situação esquizofrénica de duplicação de personalidades. Fique o Dr. Jekill da ciência, cujo mérito é largamento reconhecido, mas não o Mr. Hyde da educação superior.

O governo está a ter uma acção corajosa para o equilíbrio orçamental e para a redução de situações privilegiadas discutíveis, embora se esteja a penalizar muito mais o indivíduo do que a sagrada vaca empresa (a velha contradição trabalho-capital ainda tem muito que se lhe diga!). Mas o governo tem feito isto com vitimização de grupos ou entidades vulneráveis, face à opinião pública, com maior ou menor demagogia. Ganha o apoio de todos os que se sentem à margem de privilégios, mas um dia, à Brecht, estes acabarão por ver que algumas reformas governamentais já serão justificadas com os privilégios do Zé da esquina em relação ao sem abrigo da mesma esquina."

16 novembro, 2006

Notas breves

Suscitadas pela leitura do Público de hoje, leitura obrigatória – mas já não com o mesmo gosto da do Público dos tempos iniciais.

1. Ramalho Eanes doutorou-se pela Universidade de Navarra. Deve ser caso raro, um ex-presidente doutorar-se, já adiantado na casa dos sessenta, se já não entrado na dos setenta. Mas porquê em Navarra? À primeira vista, preferia um doutoramento em Portugal. No entanto, pergunto-me se seria possível uma tese com forte conteúdo politico, escrita por quem foi, ser apreciada em Portugal com total isenção académica.

2. O sultão de Omã, implicitamente, reconhece Israel, defendendo que "a coexistência pacífica entre nações pode gerar prosperidade para a humanidade". Palavras sensatas que, até agora, no mundo árabe, só fazem doutrina no Egipto e na Jordânia. A resolução do conflito israelo-palestiniano precisa disto, que também terá efeitos limitadores na atitude israelita, hoje fortalecida pela intolerância da maioria dos países árabes.

3. O Papa também manifesta a sua discordância com o uso do véu integral islâmico nas sociedades ocidentais. O caso começou, em Inglaterra, com uma professora, o que coloca o problema noutra esfera, não só a política. Não é admissível o uso desse véu, pedagogicamente. O ensino é comunicação plena e exigente, oralidade, expressão, atitude corporal. Como é possível ensinar-se e comunicar só com os olhos? A professora foi bem demitida, não digo que em termos políticos, mas em termos profissionais.

4. O Museu de Arte Antiga adquiriu um Ecce Homo de Frei Carlos, não sei por que valor. Parabéns. Em tempos de constrição orçamental, ainda vai havendo algum dinheiro para coisas destas. "Há mais vida para alem do orçamento".

5. Isabel II pronunciou o discurso do trono. Não sei se já alguma vez viram isto na televisão. Coroa na cabeça, discurso aos lordes, na respectiva câmara, todos ataviados. O deputados, os comuns, com o primeiro ministro à frente, batem à porta e pedem licença para ouvir, amontoando-se em pé à entrada da sala. A monarquia britânica pode render muito em receitas turísticas, mas não há dúvida de que é muito anacrónica.

6. Contra o exagero de cuidados médicos intempestivos, o Nufield Council of Bioethics, inglês, recomenda que não se prestem cuidados a prematuros com reduzidas probabilidades de sobrevivência. A minha família está comprometida com a minha firme vontade de não querer ser reanimado se tiver a pouca sorte de sofrer uma paragem cardíaca com alguns minutos de duração. Antes morto do que vegetativo.

15 novembro, 2006

Incongruências?

Segundo notícia do Público, os deputados do PCP e do BE vão hoje votar contra a proposta de lei das finanças regionais. Podem fazer-me o favor de me explicarem porquê?

Já agora, merece transcrição, sem comentários, outra pequena nota do Público.
Assembleia da Madeira custa mais 70 por cento do que a dos Açores

O orçamento da Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) para 2007, ontem aprovado pelo PSD e com a abstenção da oposição, prevê uma despesa global de 17,6 milhões de euros. Inferior em cerca de 60 por cento é o orçamento da sua congénere dos Açores, estimado em 10,2 milhões de euros. A ALM, cujos deputados não estão sujeitos ao regime nacional de incompatibilidades nem à legislação que pôs termo às subvenções vitalícias, dedica 46,7 por cento do total da verba orçamental à cobertura de despesas com pessoal (8,2 milhões de euros, incluindo vencimentos dos 68 deputados), 39,6 por cento às despesas com aquisição de bens e serviços correntes, 36,2 às transferências correntes e 3,2 por cento às despesas com a aquisição de bens de investimento. O parlamento açoriano, com 52 deputados e delegações fora da Horta, gasta 5,6 milhões de euros com pessoal. Ao apoio à actividade parlamentar destina 775 mil euros, um oitavo dos 6,2 milhões de euros relativos à subvenção anual atribuída pela assembleia madeirense aos grupos parlamentares e partidos.

Com regras de financiamento partidário distintas das que regem o apoio parlamentar nos Açores, a ALM transfere anualmente 3,6 milhões de euros para os cofres do PSD (com 44 deputados), 1,5 milhões de euros para o PS (antes de perder dois dos seus 19 deputados que, como independentes, recebem 90 mil euros), 160 mil euros para o CDS e PCP (com dois mandatos) e 80 mil euros para o BE (um representante). Nos Açores, o grupo parlamentar do PS (com 31 deputados) recebe cerca de 430 mil euros, o do PSD (19 eleitos) 263 mil euros e o CDS (um representante) 46 mil euros.
E também a notícia de que uma prioridade orçamental do GRM vai ser a construção de um novo estádio para o Marítimo (80-100 milhões de euros) ...

Gente típica (II)

Continuando com a minha lista interminável de gente típica que conheci, vem-me logo à memória o Teixeira. Quem não se lembra dele, de entre os coimbrões do meu tempo? Atarracado, um pouco vesgo, tresandando a vinho, ombreava em importância praxística com o dux e tinha direito a magníficos decretos em latim macarrónico, na vitrina do Primeiro de Janeiro, arte provavelmente já perdida.

Na última nota, falei de analfabetos que me maravilharam, a sério. O Teixeira também, mas a brincar. Era ardina, embora, "profissionalmente", os seus maiores proventos viessem de cravar os calouros, a quem tinha o direito de proteger do rapanço de cabelo. Entrada nossa no Mandarim, com direito a sentirmo-nos gente, passava por gorjeta ao Teixeira.

Analfabeto mas leitor ávido do Diário de Lisboa, que vendia – lembram-se? – a 50 centavos. Rodeado de malta, lia o jornal, com fartos comentários. "Olha, hoje a Académica ganhou por 2-1", "O malandro do Salazar bota discurso amanhã", etc. O pior era quando alguém se lembrava de lhe dar a ler o jornal de cabeça para baixo. Ele tinha uma habilidade fabulosa para, mesmo assim, conseguir "ler" as notícias.

À margem, porque o referi acima, vou falar do impagável latim macarrónico. É uma mistela de português com preposições latinas e declinações das palavras portuguesas. O seu sabor só pode ser apreendido por quem sabe latim. Julgam que não eu? Tive um avô latinista que me encheu de latim durante o liceu, bem uma ou duas horas por semana, alegando que, de outra forma, eu nunca poderia saber exprimir-me correctamente em português. Não dou por mal empregado.

O meu avô José da Costa tinha como maior amigo um grande poeta, injustamente esquecido, Armando Cortes-Rodrigues e correspondiam-se sempre em latim macarrónico. Aqui vai, como exemplo, um convite do meu quase avô Armando.
Ad Josephum carissimum, salus et pax.
Hodie festa Sancti Martini prandium opiparum manducare etiam bibere non potumus, quia dies cinema est.
Sed cras, feria quinta, cum sit etiam dies festivum patronis nostris amantissimi, automobilum stat ad portam domus tuae ad septimam horam, ut venias sine fatigatione, cum comoditate ac brevitate, celebrationem facere nobiscum, sicut noster est mor.
Sicut verbum tuum "Utique" ad portatorum, quia novi tibi licet fatigare et etiam cogitare ad responsam scribendum.
Dei te salutent.
Amplexum maximum tibi donno, amice carissime.
Armando
Que delicia! Dou um doce a quem me mandar a versão portuguesa, excluindo, claro, os versados em latim.

14 novembro, 2006

Arrogância inadmissível

Segundo o Público de hoje, o arcebispo de Braga e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Jorge Ortiga, declarou que "não se pode reconhecer ao poder constituído, na sua vertente legislativa, competência para liberalizar ou descriminalizar o que, por sua natureza, é crime". Parece-me coisa espantosa, a arrogância de uma instituição, por mais respeitável que seja, contestar a total soberania do Estado, também no plano legislativo. Segundo creio, só tem uma limitação, a Constituição, mãe condicionadora detodas as leis. Ou a Igreja ainda está nos tempos da vigência universal do direito canónico e da vassalagem ao Papa?

Registe-se também, na mesma notícia, a habilidade da Igreja para uma no cravo e outra na ferradura. Em contraponto à negação do aborto, o arcebispo reconhece "os dramas psicológicos, sociais e económicos que tantas vezes se apresentam como "indicações" para o aborto". Mas defende que esses dramas devem provocar "a solidariedade real e efectiva do poder político e da sociedade civil, criando as condições necessárias para que a nova vida seja acolhida e se possa desenvolver".

Nota – Repare-se que o Público designa sempre o arcepisbo apenas pelo nome. Eu dou-lhe o "Dom" tradicional. Para se ser de esquerda não são necessários excessos jacobinos insignificantes. E até confesso que não gosto dos telefonemas publicitários ao Sr. João, aparentemente filho anónimo.

13 novembro, 2006

Concordo e discordo

Cito António Barreto, da sua crónica de ontem no Público:
"Este PS não é de esquerda. O governo também não. Nem Sócrates, aliás.

É provável que seja essa a atitude mais sensata. Como é possível que o governo esteja a fazer, pelo menos em parte, o que tem de ser feito. O mais certo é que não haja uma política de esquerda capaz de salvar o que deve e pode ser salvo. As alternativas de esquerda à política deste governo poderiam ser fatais para a economia e o investimento.

O problema é que, sem uma esquerda sólida e significativa, ou limitada ao PC e ao Bloco, o país fica pior."
Concordância total com o primeiro e o último parágrafo, discordância com o segundo. Fica reforçada com isto a minha promessa de escrever no próximo sábado sobre "o desconforto de se ser de esquerda".

12 novembro, 2006

Notas soltas

Da leitura do Público de hoje.

1. Almeida Santos é um homem culto e sabedor. Por isto, espanta-me a sua afirmação de ontem, no congresso do PS, de que há cientistas apostados em criar um olho retrovisor nos humanos. Devia saber que a natureza já nos dotou de um olho retrovisor, infelizmente muito desaproveitado, embora haja quem o aproveite bem para outros fins. É certo que esse olho vê muito mal, pior ainda quando o tapamos com cuecas e calças. Muito pior ainda quando sofre de uma miopia especial, as hemorroidas.

2. Passando ao sério. Na recensão de um livro sobre a guerra civil de Espanha, Sofia Branco escreve que "Salazar dava algum apoio aos rebeldes". Este "algum" fica muito aquém da verdade. Os portos portugueses eram a porta de entrada a todo o apoio logístico aos franquistas. No início da guerra, as zonas dominadas pelos franquistas estavam separadas, junto à fronteira portuguesa. De uma zona para outra, tropas, abastecimentos, munições, tudo fazia trânsito por Portugal. E quantos refugiados entregou Salazar a Franco, com destino certo ao fuzilamento?

11 novembro, 2006

A geração de/dos 60

Que bom que é falar de velhos e queridos amigos. "In illo tempore", em Coimbra, conheci os dois irmãos Correia Ribeiro, Octávio e Marcelo, moçambicanos, brancos, mas aparentemente com um toque de mestiçagem, que os deve orgulhar. O Octávio era meu colega de curso e, por isto, eu tinha relações mais próximas com ele. Passámos juntos para Lisboa e tínhamos encontros diários de café pós-almoço na velha Bocage. Ele foi "responsável" por uma das minhas mais tristes experiências, a da passagem por um tribunal plenário, felizmente para mim apenas como sua testemunha. Muito mais tarde, reencontrei-o em circunstâncias penosas, como médico da fase terminal do meu pai. Ai, médicos de antigamente!

Agora vou falar é do Marcelo, personagem única de mistura de inteligência, cultura, carácter e humor. Não há ninguém da geração de 60 em Coimbra que não o conheça. Anos mais tarde, foi manchete, talvez já esquecida, por ter sido demitido pelo Santana Lopes da pulseira do cargo de director regional da cultura no Norte.

Anos depois, conversámos muito como participantes independentes nos Estados Gerais de Guterres, já ambos órfãos na esquerda (tenho em agenda uma nota sobre "O desconforto de se ser de esquerda", sempre adiada pela dificuldade de se escrever hoje sobre isto). Venho agora a descobri-lo como co-autor de um muito bom blogue, o Incursões.

Entretanto, entre grandes abraços de e-mail, enviou-me um seu livrinho que desconhecia: Manuel Heizelmann, "A pedra no sapato, a pata na poça" (Centro Cultural do Alto Minho, ISBN 972-9467-10-2). Imperdível, meus amigos órfãos de/dos 60. Em cada linha, o que – parvamente? – nos definia, a utopia, a generosidade, o carácter, o gosto pela afirmação intelectual, o compromisso entre o individual e o colectivo, a conciliação difícil entre a disciplina e a rebeldia, tanto mais. É por isto que me repugnam tantos escritos actuais que não conseguem compreender o que era a riqueza mental e afectiva de se ser militantemente de esquerda, nesses tempos. Por isto, e o Marcelo certamente me compreende, dói-me hoje a minha vida política, como disse, "com o desconforto de ser de esquerda". O que é que isto quer dizer, no momento do voto?

Ainda por cima, o Marcelo escreve primorosamente. Para quando um romance sobre a nossa geração?

Pessoas ou sobreiros?

Esforço-me por ter a humildade de não emitir opiniões firmes sobre assuntos de alta complexidade técnica, que não domino. Um deles é o novo aeroporto, Ota ou outro. Quando muito, ponho-me na situação do utente comum e vejo como a minha vida é afectada. Neste caso, é em sentidos opostos.

Vou deixar de pensar no risco, mesmo que diminuto, que correm os meus concidadãos de Lisboa, vou pensar em como os seus visitantes vão ficar agradados nos seus passeios sem ruído de aviões e até vou deixar de interromper as minhas aulas de cinco em cinco minutos, com aviões a sobrevoarem baixíssimo a minha universidade.

Mas vou pensar em que terei de acordar bem duas horas mis cedo para ir tomar à Ota o avião das minhas viagens mais frequentes, para as ilhas, e que vou gastar muito mais tempo entre casa e a entrada para o avião do que a viagem propriamente dita, para além da maior despesa em gasolina e portagens.

Seria fácil eu aceitar tudo isto se visse com clareza que é uma opção técnica indiscutível. Parece que não. Leiam-se alguns excertos de uma notícia do Público, há umas semanas, acerca de um debate sobre o aeroporto da Ota. Começo pelos defensores, mas salientando que desconfio de interesses mais ou menos evidentes.
O empresário Henrique Neto, em representação do Movimento Pró-Ota, defendeu que Portugal pode desempenhar um importante papel como plataforma logística de dinâmica mundial com um aeroporto na Ota, um porto de águas profundas a sul de Peniche e uma rede de TGV entre Vigo e a zona do Aeroporto da Portela, cujas instalações poderiam ser bem aproveitadas, no seu entender, para terminal de comboios de alta velocidade.


Telmo Faria, presidente da Câmara de Óbidos e da Agência de Desenvolvimento do Oeste, tem uma visão contrária e salientou que a Portela está saturada e que o futuro aeroporto já está a contribuir para dois a três mil milhões de euros de investimentos, sobretudo na vertente turística, previstos para região Oeste, que, na sua opinião, poderá ser muito em breve a terceira grande região turística do território continental, depois do Algarve e de Lisboa.
Do outro lado, professores universitários:
António Brotas, professor do Instituto Superior Técnico (IST), já depois de ter visitado a área para onde está prevista a construção do novo aeroporto, observou que o projecto da Ota "é totalmente disparatado", porque assenta em extensas áreas de leito de cheia e não vai ter capacidade de expansão

O professor universitário Paulino Pereira estimou que o aeroporto da Ota tenha a sua capacidade esgotada já em 2039 e aconselhou o Estado a reservar uma área para outro aeroporto mais desafogado na zona entre Pinhal Novo e a Marateca. Frisando que o projecto da Ota exigirá muitas e dispendiosas movimentações de terras, o docente salientou que "não é o local ideal".


A mesma opinião manifestou António Diogo Pinto, engenheiro e professor do IST que participou na obra do novo aeroporto de Macau, que estimou que fazer o aeroporto na Ota e os respectivos acessos por TGV venha a custar 10456 milhões de euros, mais 1500 milhões que na margem esquerda do Tejo. Alertou, também, para as dificuldades de realização da obra numa área atravessada por três ribeiras. "Na margem sul afectaria mais sobreiros, na Ota afecta mais pessoas", vincou.
E pergunto-me porque é que nunca vejo discutida uma hipótese já alvitrada por alguém, o campo de tiro de Alcochete. Será veto da Nato?

09 novembro, 2006

Dever de defesa

Ninguém me encomendou esta nota. Ou melhor, encomendou-a alguém a quem não posso negar nada, eu próprio, fiel aos deveres de rigor intelectual, de justiça e de amizade.

Há alguns dias, escrevendo no Público, Eduardo Prado Coelho (EPC), ao mesmo tempo que confessa o seu desconhecimento da blogosfera e de quem nela escreve, refere-se depreciativamente a Luís Aguiar-Conraria (LAC), um pobre diabo que, provavelmente, nunca leu os delírios de Derrida ou dos outros brilhantes exemplos da actual "filosofia" francesa.

O "A destreza das dúvidas" é, merecidamente, dos mais visitados blogues portugueses. EPC, cronista do Público, provavelmente não liga à economia e não lê o suplemento Dia D, com imperdíveis artigos de LAC, numa mistura excelente de humor e de exposição de temas económicos. E não é um amador, é doutorado em economia pela Universidade de Cornell e autor de trabalhos muito importantes.

Mas, em termos de gosto pela literatura, LAC tem outras credenciais. EPC não sabe de quem ele é filho. Ser filho de alguém tem importância quando presumimos logicamente que o pai deve ter exercido influência nos gostos e valores, como também aconteceu com EPC. LAC certamente leu muito e do melhor, por influência do seu pai, meu querido amigo e patrício, Cristóvão de Aguiar, romancista de grande mérito.

Decididamente, não há pachorra para aturar a "bolinha semiótica". No entanto, o Luís fica a dever-lhe um favor. Neste país de masoquistas, que, como eu, ainda lêem EPC, muitos leitores devem ter engordado a lista de visitantes do "A destreza das dúvidas".

Maçonaria e Opus Dei

No Público de ontem, o juiz Pedro Mourão emitiu a opinião de que não devia ser permitida aos juízes a filiação em associações secretas, como a Maçonaria e o Opus Dei. Hoje, responde o grão-mestre António Reis, desmentindo que nas sociedades secretas haja compromissos violadores da isenção pessoal.

A ideia do referido juiz parece-me pecar por violação do direito constitucional da liberdade de associação, embora esse direito tenha limitações, como, por exemplo, o da filiação partidária dos militares. Mais importante, para mim, é a possibilidade legal de constituição de associações secretas ou, como eufemísticamente preferem, associações discretas. É inegável que, na sua origem, a maçonaria, movimento revolucionário, tinha de ser clandestina, como foi também, mais recentemente, no Portugal fascista. Já não compreendo que o mesmo se passe com o Opus Dei. Muito menos, em ambos os casos, em plena sociedade democrática.

Quem não deve não teme e mostra a cara. Se não, fica a suspeita de que deve. Deixo o meu testemunho pessoal. Há uns bons vinte anos, fui sondado para adesão ao GOL. Quem me contactou foi uma das pessoas mais inteligentemente cínicas que conheci. Conhecendo-me ele também, não fez nenhum discurso virtuoso, limitou-se a dizer que isso seria muito importante para a minha carreira (afinal, não me conhecia assim tão bem). E no Opus Dei? Diz o provérbio que não há fumo sem fogo. Vejamos um exemplo bem conhecido: Jardim Gonçalves, OD, escolheu como sucessor Paulo Teixeira Pinto, OD. Certamente, o actual presidente tem altas credenciais profissionais, mas a coincidência de OD terá sido completamente irrelevante?

No entanto, as solidariedades proteccionistas mais ou menos encobertas não se ficam por aqui. Um exemplo que testemunhei directamente é o dos antigos meninos da Luz. ao menos, não precisam de sinais secretos de identificação, basta o emblema da barretina na lapela.

08 novembro, 2006

Gente típica (I)

Correspondendo ao desafio do Vítor Sousa, vou alinhar com ele numa pequena série de apontamentos sobre gente típica, exemplificativa do melhor e do pior deste pais. Tantos, na minha vida. Podia começar por casos anedóticos, embora instrutivos, mas escolhi, para estreia, dois exemplos que me maravilham, dois analfabetos que construíram a sua própria literacia prática.

A Jorgina era um caso espantoso de literacia analfabeta. Já explico o paradoxo aparente. In illo tempore, eu menino, havia a figura da "mulher das compras", encargo excelentemente desempenhado pela Jorgina. Ao fim da tarde, dava a volta pelas freguesas e tomava nota das encomendas para o dia seguinte: talho, mercado do peixe, charcutaria, barraca da hortaliça.

A cada nota que tomava, ia sempre dizendo "óraites", corruptela calafona do "all right" - um dia destes hei-de escrever sobre o típico vocabulário "calafonês" açoriano, a começar pelo próprio termo "calafona", leia-se "californian". Muito mais divertida era a relação especial da Jorgina com uns amigos íntimos e indispensáveis que viviam no seu couro cabeludo. Às vezes, ficavam indisciplinados que nem meninos das escolas de hoje, em que difícil é sentá-los. A Jorgina dava então umas palmadinhas na cabeça, com meiguice e dizendo "ai, eles hoje estão tão desassossegados!".

Importante era a tal literacia. A Jorgina tomava cuidadosamente nota das encomendas num caderno e nunca se enganava. Mas como, se ela era analfabeta? Muito gostava eu de poder ver ainda um caderno da Jorgina.

O outro caso é o de um mestre pedreiro, cujo nome, infelizmente, não recordo. Em miúdo, eu não largava o meu pai e gostava muito de o acompanhar em trabalho, quando ele ia supervisar as obras da empresa de construção civil de que era o responsável técnico. Foi então que conheci esse mestre, um pedreiro muito especial e até com o estatuto principal de encarregado da obra.

Era dos operários mais considerados pelo meu pai, que, sendo um perfeccionista – quantas vezes mandou deitar paredes inteiras abaixo porque tinham uma ligeira barriga, quase imperceptível – não era muito de confiar em qualquer operário. Este homem cumpria integralmente as instruções do meu pai, lia perfeitamente os números, tanto as cotas do projecto como os valores da fita métrica. Mas era tudo o que sabia, porque era analfabeto! Biólogo, pergunto-me: como é que aquele cérebro construiu uma rede neuronal especial para lidar com números, independentemente da leitura e escrita normais?

Jorgina e mestre "Botelho", como crismei, eles eram os Açores e todo o país nos princípios dos anos 50. Era este o capital humano desperdiçado e a formação profissional de que vivia a economia e a técnica portuguesa. É por isto que vou vomitar qundo leio pulidovalentices, moniquices e coisas semelhantes, perfidamente (porque encapotadamente) saudosistas do antigamente. Pois é, berço de ouro é incólume a toda a mudança...

05 novembro, 2006

Morte prematura

O meu silêncio destes últimos dias foi reconfortante, deu-me provas de grande amizade. As mensagens de condolências que a minha mulher recebeu foram muito bonitas, uma até propunha um obituário que me desvanece.

No entanto, a notícia da minha morte foi prematura e não confirmada por fontes credíveis do Alto de S. João. Simplesmente, viajei. Nunca anuncio as minhas ausências, que bom convite aos assaltantes de casas. Daqui a pouco, cá volto, agora que estou de regresso.