15 novembro, 2006

Gente típica (II)

Continuando com a minha lista interminável de gente típica que conheci, vem-me logo à memória o Teixeira. Quem não se lembra dele, de entre os coimbrões do meu tempo? Atarracado, um pouco vesgo, tresandando a vinho, ombreava em importância praxística com o dux e tinha direito a magníficos decretos em latim macarrónico, na vitrina do Primeiro de Janeiro, arte provavelmente já perdida.

Na última nota, falei de analfabetos que me maravilharam, a sério. O Teixeira também, mas a brincar. Era ardina, embora, "profissionalmente", os seus maiores proventos viessem de cravar os calouros, a quem tinha o direito de proteger do rapanço de cabelo. Entrada nossa no Mandarim, com direito a sentirmo-nos gente, passava por gorjeta ao Teixeira.

Analfabeto mas leitor ávido do Diário de Lisboa, que vendia – lembram-se? – a 50 centavos. Rodeado de malta, lia o jornal, com fartos comentários. "Olha, hoje a Académica ganhou por 2-1", "O malandro do Salazar bota discurso amanhã", etc. O pior era quando alguém se lembrava de lhe dar a ler o jornal de cabeça para baixo. Ele tinha uma habilidade fabulosa para, mesmo assim, conseguir "ler" as notícias.

À margem, porque o referi acima, vou falar do impagável latim macarrónico. É uma mistela de português com preposições latinas e declinações das palavras portuguesas. O seu sabor só pode ser apreendido por quem sabe latim. Julgam que não eu? Tive um avô latinista que me encheu de latim durante o liceu, bem uma ou duas horas por semana, alegando que, de outra forma, eu nunca poderia saber exprimir-me correctamente em português. Não dou por mal empregado.

O meu avô José da Costa tinha como maior amigo um grande poeta, injustamente esquecido, Armando Cortes-Rodrigues e correspondiam-se sempre em latim macarrónico. Aqui vai, como exemplo, um convite do meu quase avô Armando.
Ad Josephum carissimum, salus et pax.
Hodie festa Sancti Martini prandium opiparum manducare etiam bibere non potumus, quia dies cinema est.
Sed cras, feria quinta, cum sit etiam dies festivum patronis nostris amantissimi, automobilum stat ad portam domus tuae ad septimam horam, ut venias sine fatigatione, cum comoditate ac brevitate, celebrationem facere nobiscum, sicut noster est mor.
Sicut verbum tuum "Utique" ad portatorum, quia novi tibi licet fatigare et etiam cogitare ad responsam scribendum.
Dei te salutent.
Amplexum maximum tibi donno, amice carissime.
Armando
Que delicia! Dou um doce a quem me mandar a versão portuguesa, excluindo, claro, os versados em latim.

6 comentários:

M.C.R. disse...

se um jurista reformado não for considerado latinista aqui vai uma tradução livre mas muito aproximada:querido José. paz e saude
hoje dia (da festa)de S Martinho não podemos encher a pança (comer uma refeição opipara) nem beber-lhe como se deve porque é dia de ir ao cinema.
todavia, amanhã, quinta fira, pode também ser dia de festa do nosso queido patrono, pelo que estará um carro à tua porta pelas sete horas para poderes vir sem canseira, comoda e rapidamente celebrar o dia como já vem sendo nosso costume.
de todo o modp diz qualquer coisa ao portador desta para não teres o trabalho de pensar na resposta que terias de escrever.
que os deuses te abençem (saudem) Recebe um forte abraço deste teu muito amigo Armando.

O cortes Rodrigues é um excelente poeta. Pode estar fora de moda momentaneamente mas é um excelente poeta, repito. o tempo dele voltará. Os poetas são assim: vão eem.
amplexus Maximus
M.

M.C.R. disse...

retifico : quinta feira; querido; modo: vão e veem. as gralhas devem-se à pressa e eu não sei retifica-las depois de as ver já no canto esquerdo do ecrã.
M.

JVC disse...

Batota, Marcelo. Se ainda recordo os nossos tempos de liceu, os que iam para direito (alínea D?) aprendiam latim no 6º e no 7º ano.

E do Teixeira, não há mais histórias?

VFS disse...

Cortes-Rodrigues, amigo de Pessoa?

JVC disse...

Sim, Vítor, e colaborador da Orpheu, sob o pseudónimo Violante de Cysneiros.

M.C.R. disse...

não é batota: eu disse que era jurista. logo tive latim no 3º ciclo. fui aliás bom aluno porque achei graça à língua. Todavia, quase cinquenta anos depois parecve-me engraçado ainda conseguir fazer a tradução. amor aos clássicos? E só a fiz por mero exercício. Aliás em coimbra os decretos académicos do conselho de veternanos (a que pertenci por erros meus, má fortuna e escasso amor ainda que ardente) e das repúblicas eram redigidos num macarrónico do macarrónico. Como o Palito Métrico e outras piblicações da tradição goliárdica coimbrã. Mas aqui para nós dou um doce a quem a cinquenta anos de distancia ainda consiga decifrar as latinadas. E não gasto muito dinheiro, podes crer.