Correspondendo ao desafio do Vítor Sousa, vou alinhar com ele numa pequena série de apontamentos sobre gente típica, exemplificativa do melhor e do pior deste pais. Tantos, na minha vida. Podia começar por casos anedóticos, embora instrutivos, mas escolhi, para estreia, dois exemplos que me maravilham, dois analfabetos que construíram a sua própria literacia prática.
A Jorgina era um caso espantoso de literacia analfabeta. Já explico o paradoxo aparente. In illo tempore, eu menino, havia a figura da "mulher das compras", encargo excelentemente desempenhado pela Jorgina. Ao fim da tarde, dava a volta pelas freguesas e tomava nota das encomendas para o dia seguinte: talho, mercado do peixe, charcutaria, barraca da hortaliça.
A cada nota que tomava, ia sempre dizendo "óraites", corruptela calafona do "all right" - um dia destes hei-de escrever sobre o típico vocabulário "calafonês" açoriano, a começar pelo próprio termo "calafona", leia-se "californian". Muito mais divertida era a relação especial da Jorgina com uns amigos íntimos e indispensáveis que viviam no seu couro cabeludo. Às vezes, ficavam indisciplinados que nem meninos das escolas de hoje, em que difícil é sentá-los. A Jorgina dava então umas palmadinhas na cabeça, com meiguice e dizendo "ai, eles hoje estão tão desassossegados!".
Importante era a tal literacia. A Jorgina tomava cuidadosamente nota das encomendas num caderno e nunca se enganava. Mas como, se ela era analfabeta? Muito gostava eu de poder ver ainda um caderno da Jorgina.
O outro caso é o de um mestre pedreiro, cujo nome, infelizmente, não recordo. Em miúdo, eu não largava o meu pai e gostava muito de o acompanhar em trabalho, quando ele ia supervisar as obras da empresa de construção civil de que era o responsável técnico. Foi então que conheci esse mestre, um pedreiro muito especial e até com o estatuto principal de encarregado da obra.
Era dos operários mais considerados pelo meu pai, que, sendo um perfeccionista – quantas vezes mandou deitar paredes inteiras abaixo porque tinham uma ligeira barriga, quase imperceptível – não era muito de confiar em qualquer operário. Este homem cumpria integralmente as instruções do meu pai, lia perfeitamente os números, tanto as cotas do projecto como os valores da fita métrica. Mas era tudo o que sabia, porque era analfabeto! Biólogo, pergunto-me: como é que aquele cérebro construiu uma rede neuronal especial para lidar com números, independentemente da leitura e escrita normais?
Jorgina e mestre "Botelho", como crismei, eles eram os Açores e todo o país nos princípios dos anos 50. Era este o capital humano desperdiçado e a formação profissional de que vivia a economia e a técnica portuguesa. É por isto que vou vomitar qundo leio pulidovalentices, moniquices e coisas semelhantes, perfidamente (porque encapotadamente) saudosistas do antigamente. Pois é, berço de ouro é incólume a toda a mudança...
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1 comentário:
João, li com deleite este texto. Não foi por acaso que me socorri do seu apoio, quando surgiu a ideia de descever "personagens", ou "gente típica".
Hoje, publico mais um texto dedicado a um orbívago do Funchal.
Um abraço
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