30 setembro, 2006

O cardeal e o aborto

O último "sound bite" sobre o referendo da despenalização do aborto (não alinho na denominação politicamente correcta de IVG) vem de D. José Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa. "Não é um problema religioso, não é um direito da mulher e o Estado não consegue fixar o momento em que um indivíduo é cidadão com direitos, liberdades e garantias. O aborto é um problema real mas, para o resolver, criamos outro." [todas as citações são de o Público de 28.9.2006].

O texto é de grande ambiguidade, tão ao gosto da escolástica de seminário. Não admira que tenha tido reacções paradoxalmente desencontradas. Para o PS, "é uma declaração doutrinariamente muito relevante porque coloca a questão no terreno do debate político". O CDS considera haver antes um apelo implícito aos não-católicos para se envolverem no debate. E, pasme-se, para o BE as palavras do cardeal "permitem admitir uma posição da Igreja de libertar o debate sobre o aborto do preconceito religioso, deixando que os cidadãos católicos se informem, discutam e decidam sem o peso da Igreja". Parece-me um bom exemplo de "wishful thinking".

Para mim, mais do que esta comprovada ambiguidade, as declarações do cardeal contêm principalmente muita hipocrisia. Em primeiro lugar, coloca fora do debate a igreja institucional, a hierarquia, mas não os católicos, a quem apela para se envolverem no debate. Com liberdade de consciência individual? Duvido. Nisto estou acompanhado por um deputado católico do PSD, Emídio Guerreiro (que vota sim à despenalização): "não é tão claro como isso que D. José Policarpo tenha pretendido dar liberdade de consciência aos católicos. Não sei se é uma evolução ou uma forma táctica diferente de abordar o problema".

A segunda hipocrisia vem do que julgo ser a primeira vez em que uma alta autoridade católica não se refere ao "início da vida" como questão religiosa, remetendo-a para a ciência: "Porquê as dez semanas ou as doze ou as dezasseis, quando a ciência diz que há um novo ser desde o primeiro momento?". Nem se trata só de hipocrisia, é também desonestidade intelectual, porque o cardeal não é nenhum ignorante. Aposto tudo o que tenho em como o cardeal não consegue apresentar um único escrito científico defendendo essa posição. A menos que esteja a falar da "ciência" teológica ou filosófica, mas nessa brincadeira não alinho, eu, cientista.

28 setembro, 2006

Apresentação

Lembram-se do Professorices? Chegou a estar nos top 50. Exterminei-o, porque desviava atenções do meu sítio onde trato de coisas sérias. Distribui os temas do Professorices e instalei no sítio três páginas tipo blogue. Os Apontamentos sobre a educação superior lá ficarão. Gerindo o calendário, tinha outras escritas de fim de semana. Ao sábado, o Bloco de notas, ao domingo o Gosto de bem comer.

Isto só era possível por o meu sítio ser muito largo, diria mesmo que uma charunfada. É o problema de os fornecedores de alojamento só nos darem um domínio. Agora, vou separar mais claramente o sub-sítio universitário do pessoal. Com isto, vou pela recomendação de um dos nossos principais bloguistas, que me desafiou a voltar à comunidade dos blogues.

Com chamada no meu sítio, para os que entretanto se habituaram, criei dois blogues. O Bloco de notas, em princípio mantendo o calendário de sábado, porque não quero voltar a ser escravo de um blogue, vai ser para escrever o que me for saindo. Só o que me parecer importante sobre a sociedade, a política, as grandes questões do nosso viver de hoje. Filosofices?

O outro é O gosto de bem comer. É um blogue de um amador que se preza de ser bom gastrónomo, cozinheiro inventivo e com um livro publicado, com esse título.

Em ambos os blogues inseri uma entrada igual à última do meu sítio. Durante um período de transição, vou escrever duplamente e também, com tempo, passando para os blogues os textos anteriores. Leiam abaixo, para exemplo.

23 setembro, 2006

Notas soltas

1. No sábado passado alegrei-me com o sol no meu jardim, mas não com o Sol. Comprei-o, por natural curiosidade, mas creio que pela primeira e pela última vez. Não gosto muito do Expresso, que vou comprando pior hábito masoquista, mas muito menos desta sua versão “light”. Tudo é ligeiro e para leitores pouco exigentes, das notícias às análises e às crónicas. Reparem que é o único jornal que se quer digno deste nome que praticamente não tem artigos de opinião. O equivalente ao Actual do Expresso é passado no Sol para o caderno principal, mas tudo num registo ligeiro. A meu ver, o Sol está para o Expresso como o Correio da Manhã está para o Público.

Talvez a minha apreciação tenha logo ficado condicionado pela incrível entrevista de Filomena Mónica, na segunda página. Uma historiadora que disserta sobre as prováveis aventuras amorosas de Mário Soares e sobre o corpinho bem feito de Sócrates desmerece tudo o que possa ter de qualidade académica. E olhem que eu não sou puritano.

Para o provar, confesso que a minha perversidade sessentona me levou a ir ler logo a crónica de sexo da senhora com nome patenteado. Qual sexo, nem pitada de erotismo. Desiludam-se os que acreditam na sua promessa de ir escrever sobre posições, no jornal de hoje, que não vou comprar.

2. Decididamente, Manuel Alegre não sabe o que fazer com o milhão de votos que teve, incluindo o meu. Se calhar, foi coisa que nunca o preocupou. Displicentemente, declarou que “ainda não decidiu se vai intervir ou optar por ficar calado na próxima reunião magna do partido, marcada para Évora: ‘Depende da avaliação que eu fizer na altura e do meu estado de alma’.”

E a expectativa dos que confiaram nele não passa à frente dos seus estados de alma?

Segundo notícia do Público, Manuel Alegre, “insurgindo-se contra ‘a lógica aparelhística, que continua ser muito intensa dentro do PS’, e sublinhando que uma coisa são ‘as batalhas dentro dos aparelhos e outra são as batalhas na opinião pública’, Alegre recusa falar sobre a necessidade de o partido aproveitar o congresso para discutir a matriz ideológica do PS, com alguns dirigentes reclamam, mas mostra-se convencido de que se a questão da Segurança Social for levada à discussão, então o congresso poderá servir para alguma coisa.”

Creio que a maioria dos votantes em Manuel Alegre sempre pensou que, depois, ele ia voltar ao seu partido de há muitos anos. Não só era legítimo como um dever, porque, não tendo ele outro terreno de intervenção (o MIC é um flop utópico), é no partido que ele pode lutar pelas bandeiras que lhe deram o milhão. Este milhão arrisca-se bem a ver-se defraudado.

P. S. 25.9.2006 – Isto merece acrescento a esta nota, uma passagem de um artigo do inefável Mário Pinto, no Público de hoje:

“Ora, a guerra já aí está, e precisamente como "guerra santa" (não comparável às cruzadas, que não foram uma "guerra santa", nem uma guerra de conquista, mas sim uma guerra de reconquista, como foi aqui na Península a "reconquista cristã").”

De facto, há católicos (estou de fora) a quem o apelo papal para um diálogo pessoal entre a razão e a fé não consegue chegar. As cruzadas não foram guerra de conquista mas sim de reconquista. Havia na Palestina, à data da conquista muçulmana, uns muitos milhares de cristãos que tiveram de se refugiar na França e na Alemanha. Saudosos da pátria, reuniram um exército, para grande desagrado dos seus reis europeus e lá foram restaurar (?) o reino de Jerusalém... A um professor de direito exige-se um pouco mais de cultura histórica.

16 setembro, 2006

O referendo sobre a despenalização do aborto

Finalmente, vamos ser chamados a votar, em Janeiro, no referendo sobre a despenalização do aborto. Desde já declaro que votarei indiscutivelmente sim, que vou fazer campanha e que este “bloco de notas” está aberto a quem quiser contribuir neste sentido.

Com uma ressalva, e por isto escrevi a “bold” despenalização. É só isto que está em discussão, não as concepções morais de quem reprova o aborto. Os “pró-vida” vão tentar levar a discussão para um referendo tipo “concorda com o aborto?”. Claro que eu também não concordo, no sentido de o aceitar como forma banal e facilitada de contracepção (mas mesmo isto é complicado, se nos lembrarmos do DIU ou da pílula do dia seguinte).

Os que rejeitam moralmente o aborto estão no seu pleno direito, mas é matéria individual. A despenalização é questão social, em nada violenta a sua consciência individual. O que exijo é que essa moral individual seja coerente. Quantas mulheres “pró-vida” já terão feito um aborto, recatadamente e em boas condições sanitárias, para lá do Caia?

O discurso do Papa

Esta nota sai hoje em horário tardio, em relação ao habitual, por uma razão simples. Não quis basear-me no diz-se ou nas notícias, tive de ler e estudar o discurso do Papa na Universidade de Ratisbona.

É um discurso que dá muito que pensar, mas também despertando muitas dúvidas. Em primeiro lugar, as reacções no mundo islâmico, de esperar, acabam por confirmar o próprio discurso. A mensagem essencial do Papa vai no sentido da rejeição da intolerância religiosa e da violência em nome da fé, bem como da aceitação da racionalidade, em compromisso com as diferentes fés, na vida pública. Talvez simplificando redutoramente, parece-me que o essencial é a recusa das teocracias, coisa não surpreendente num chefe religioso cujos fieis, na sua esmagadora maioria, vivem em sociedades com separação entre o Estado e as igrejas. Parece-me claro que esta mensagem cai fundo em muita gente, crente ou não, especialmente nos tempos de hoje.

Como é hábito nas reacções inflamadas, as reacções contra o discurso encaixam-se na actual lógica mediática dos “sound bites”. De um discurso extenso que poucos leram, extrai-se apenas uma pequena passagem, ainda por cima uma citação de Manuel Paleólogo. Já li que, à margem do texto escrito, o Papa acrescentou duas vezes “eu cito”. Registe-se uma excepção notável, de serenidade e lucidez, a da Comunidade Islâmica de Lisboa (segundo o Público de hoje):

“A Comunidade Islâmica de Lisboa, ficou profundamente surpreendida e triste com os excertos do discurso do Papa Bento XVI divulgados [...]. Tivemos, no entanto o cuidado de não nos precipitar [...]. Conseguimos um exemplar do discurso e, depois da sua leitura, não nos parece que fosse intenção expressa do Papa atacar o islão e os muçulmanos [..]. No entanto, consideramos que, dos muitos diálogos havidos, ao longo dos séculos, entre cristãos e muçulmanos, o Papa foi decerto muito infeliz na sua escolha, sobretudo nos tempos tão conturbados em que vivemos.”

Aqui é que radica a minha dúvida principal. O papa foi infeliz, no sentido de descuidado ou impensado? Não previu estas reacções? Não sabia que as palavras de um papa têm muito maior peso do que os cartoons de um obscuro jornal dinamarquês? Não acredito. A sabedoria romana é imensa e um Papa não diz nada que não seja passado primeiro a pente fino.

Qual foi então o objectivo? Palpita-me que estará próximo daquilo que escreve Renzo Guolo no La Repubblica, que, ao falar do profeta Maomé, o Papa quebrou um tabu. "As religiões podem falar entre elas de ética, de paz, de família ou de secularização", mas "nunca dos dogmas ou dos textos sagrados de outrem, sob pena de provocar um imediato reflexo identitário".

Se é assim, é uma atitude corajosa, que vai contra a hipocrisia de muito “diálogo” que se fica pelo superficial. São assim, muitas vezes, os consensos tão na moda. O mundo nunca avançou por consensos, mas por confrontos dialécticos.

Nota 1 – Declaração de interesses: não sou católico nem muçulmano.
Nota 2 – Ainda no Público, hoje, a notícia do reconhecimento oficial do judaísmo e do islamismo, em Portugal, ao abrigo da lei da liberdade religiosa. Tardou cinco anos, como regulamentação da lei, mas mais vale tarde que nunca. E o protestantismo ou o hinduísmo, com tantos crentes em Portugal?

09 setembro, 2006

O museu de Ponta Delgada

museu1O Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, instalado no magnífico convento de S. André, é uma das minhas memórias de infância. Depois de o meu pai me ter ensinado a apreciá-lo, o museu preencheu-me tardes e tardes de domingo, muitas vezes apenas uma sala de cada vez. Muitos poderão achá-lo um museu generalista, com demasiada diversidade, das artes à etnografia e às ciências naturais. Para mim, é boa razão para o seu encanto especial.

Nestas férias, também por imposição da minha mulher que sempre se encantou com aquele museu, lá fui, para algumas gratas surpresas. O museu quase deserto a que estava habituado estava cheio de grupos de turistas, com guia. Todas as salas tinham um tipo especial de vigilantes: jovens estudantes em férias, com bom domínio de inglês e bem informados sobre o que diziam aos visitantes, sem esperarem por eventuais perguntas, eram eles que se dirigiam aos visitantes. Um ficou encantado por tudo o que lhe contei das minhas recordações pessoais de Canto da Maia, pessoa extravagantemente inesquecível.

A secção de etnografia está exactamente como a conheci em miúdo, e muito bem. Não há nada a acrescentar à etnografia, com os anos. A agricultura, com as típicas alfaias micaelenses e o seu arado, com o carro de bois, o sacho de cabo curto, mais adequado à dureza vulcânica do solo mas a exigir força acrescida. A pesca, em que nos comove uma excelente figura em manequim de um pescador no seu barco e em que percebemos o que era, e ainda é, a aventura do pescador solitário, num barco minúsculo. O ambiente doméstico, a refeição familiar, os trajes. Só merece alguma reserva a cama rica que a fotografia mostra. É um exemplo do magnífico mobiliário açoriano (leiam um livro sobre isto, editado pela DR da Cultura). Na generalidade das casas populares, era uma modesta cama de ferro forjado.

Surpresa foi também a secção de artes. O museu sempre viveu de três colecções principais, Canto da Maia, Domingos Rebelo e um pintor micaelense mais antigo, oitocentista, formado em Itália, Marciano Henriques. Com menor representação, dois escultores micaelenses, Xavier Costa e Numídico Bessone, bem como alguns notáveis pintores amadores, como Viçoso May e Duarte Faria e Maia .

Agora, também uma pequena mas significativa colecção de arte moderna portuguesa: Eduardo Nery (um pouco açoriano, por ex-afinidade), Noronha da Costa, João Hogan, Menez, Paula Rego, Cruzeiro Seixas, Cesariny, Nikias, se não estou a esquecer algum. Claro que não podiam faltar os açorianos: António Dacosta, Carlos Carreiro, José Nuno Monteiro, Tomás Vieira, bem merecedores da atenção dos visitantes. Felizmente, Dacosta já é caso à parte de reconhecimento do grande mérito, os outros também merecem. Faltam uma instalação de Ana Vieira e uma maquete de arquitectura de João Rebelo ou de Bernardo Rodrigues. Fiquei com uma curiosidade insatisfeita. Quem terá comprado todos esses quadros, uma fortuna? Da iniciativa, tenho a certeza adivinhada: Nestor de Sousa. Gente de Coimbra da minha geração: alguma vez esquecerão o Nestor como magnífico e comovente Job no “Breve Sumário da História de Deus”?

Não podia faltar o registo da secção de história natural, criada por Carlos Machado. Mal e bem, está na mesma. Mal, porque é coisa indigestível, centenas de bichos empalhados amontoados em armários, com as etiquetas originais do fundador. Mas bem, para este velhadas, porque é a memória exacta das milhentas horas de observação, com o compêndio de ciências naturais na mão.

Com tudo isto, não há bela sem senão, três desgostos. Primeiro, terem removido da secção de história natural os monstros, vitelos com duas cabeças, um feto cíclope, um porco sem olhos, outras coisa que, perfidamente, me deliciavam. Também tiraram do coro alto do convento uma coisa indispensável à curiosidade de um miúdo, a mão esquelética de uma freira setecentista. Finalmente, mas é lei da vida e não culpa do museu, já não há o Chico, macaco ordinário que se masturbava para deleite enrubescido das sopeiras, enquanto os magalas as apalpavam.

PS – Para os micaelenses que me lerem, a lembrança de alguns nomes ligados ao museu: Carlos Machado, Luís Bernardo Ataíde, José Maria Álvares Cabral, Luísa Costa Gomes, António Frias Martins, Nestor de Sousa.

02 setembro, 2006

Geração de 60

Muito se tem escrito sobre a geração de/dos 60 (de, anos do calendário; dos, anos de idade actual). Coisas interessantes e também enojantes "pulido-valentadas", de rejeição da coisa elementar que foi a indissociabilidade do espírito de 60 e do sonho da festa de Abril. Um artigo a merecer discussão é o de Vítor Dias, no Público. O autor, homem dessa também minha geração, aborda uma questão importante: esta discussão não fará esquecer que a força histórica principal que resultou no 25 de Abril foi a luta popular (operária e camponesa, entenda-se)? É óbvio que não enjeito o papel histórico da luta popular, mas creio que há, pelo menos, dois factores adicionais importantes e que têm a ver com os anos 60.

Em primeiro lugar, o descontentamento de uma nova pequena burguesia, principalmente de empregados de serviços. Nos finais dos 60, houve um "boom" económico, só perturbado pela crise do petróleo. Nunca se venderam tantos automóveis ou televisões, especulou-se na bolsa, fez-se dinheiro. Foi toda uma nova camada social muito característica, humoristicamente bem escalpelizada nas saudosas redacções da Guidinha-Sttau, na Mosca – lembram-se dos jaquinzinhos com nata e do Toyota com a almofada bordada pela sogra? Os bancos recrutavam diariamente dezenas de funcionários, abriam-se boas perspectivas de emprego. Os jovens desse grupo eram os mais prejudicados pela guerra, na oportunidade de usufruírem dessas condições favoráveis. É muita desta gente que sai à rua no 25 de Abril. Não fizeram a revolução, mas deram-lhe o indispensável alimento de rua.

Deixei para segundo lugar, por modéstia, o segundo factor, este directamente ligado ao movimento associativo dos anos 60. Trata-se do papel dos oficiais milicianos, não propriamente no movimento militar de Abril (embora muitos tenham participado), mas sim nas suas origens mais remotas. Até quase ao fim da década, é inegável que o PCP teve uma influência determinante no movimento associativo. Com excepção de alguns casos especiais, a palavra de ordem era a de se ir para a guerra colonial, mas como forma de trabalho politico.

Com todo o respeito pelos que escolheram o exílio, creio que foi uma política de enorme alcance. Pela minha experiência, julgo que não teve muito sucesso no que, provavelmente, era a preocupação do PCP, a consciencialização dos soldados e marinheiros. No entanto, estou convencido de que teve efeitos muito mais directamente relacionados com o 25 de Abril. A situação típica era a de um pequeno quartel de mato, com um jovem capitão e três oficiais milicianos, muitas vezes também um médico miliciano. Sei o que eram as conversas intermináveis, noite dentro. Quantos dos capitães de Abril não terão sido acordados politicamente por essas conversas? Alguns dos actuais nefelibatas, que não participaram nessa experiência dolorosa mas, finalmente e por este motivo gratificante, entenderão que eram as suas conversas de tertúlia que eram transmitidas por telepatia aos capitães do mato, futuros capitães de Abril. Não me importo, é preciso que toda a gente seja feliz, mesmo nas suas ilusões.

O título desta nota é um desafio. Para os jovens de hoje, somos uns "kotas". Temos ainda alguma coisa a dizer, principalmente quando os mais novos, para sua e nossa felicidade, não viveram os tempos que desafiaram ao máximo o que tínhamos para dar? É difícil identificarmo-nos só em relação à nossa geração. Os percursos posteriores são variados, mas há um grupo de amigos que, mesmo com posições actuais diversificadas, têm uma memória de resistência sempre presente e que os identifica num padrão comum de ética politica e de valores essenciais de esquerda. Cada um de nós cometeu erros políticos no passado e confessamo-lo sem subterfúgios. Mais importante é que, por vias divergentes, acabámos por nos encontrar hoje num espaço comum, de gente livre mas com forte identidade de valores, lutadores por uma esquerda de hoje. Teremos alguma coisa a transmitir? Pensamos que sim.