O último "sound bite" sobre o referendo da despenalização do aborto (não alinho na denominação politicamente correcta de IVG) vem de D. José Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa. "Não é um problema religioso, não é um direito da mulher e o Estado não consegue fixar o momento em que um indivíduo é cidadão com direitos, liberdades e garantias. O aborto é um problema real mas, para o resolver, criamos outro." [todas as citações são de o Público de 28.9.2006].
O texto é de grande ambiguidade, tão ao gosto da escolástica de seminário. Não admira que tenha tido reacções paradoxalmente desencontradas. Para o PS, "é uma declaração doutrinariamente muito relevante porque coloca a questão no terreno do debate político". O CDS considera haver antes um apelo implícito aos não-católicos para se envolverem no debate. E, pasme-se, para o BE as palavras do cardeal "permitem admitir uma posição da Igreja de libertar o debate sobre o aborto do preconceito religioso, deixando que os cidadãos católicos se informem, discutam e decidam sem o peso da Igreja". Parece-me um bom exemplo de "wishful thinking".
Para mim, mais do que esta comprovada ambiguidade, as declarações do cardeal contêm principalmente muita hipocrisia. Em primeiro lugar, coloca fora do debate a igreja institucional, a hierarquia, mas não os católicos, a quem apela para se envolverem no debate. Com liberdade de consciência individual? Duvido. Nisto estou acompanhado por um deputado católico do PSD, Emídio Guerreiro (que vota sim à despenalização): "não é tão claro como isso que D. José Policarpo tenha pretendido dar liberdade de consciência aos católicos. Não sei se é uma evolução ou uma forma táctica diferente de abordar o problema".
A segunda hipocrisia vem do que julgo ser a primeira vez em que uma alta autoridade católica não se refere ao "início da vida" como questão religiosa, remetendo-a para a ciência: "Porquê as dez semanas ou as doze ou as dezasseis, quando a ciência diz que há um novo ser desde o primeiro momento?". Nem se trata só de hipocrisia, é também desonestidade intelectual, porque o cardeal não é nenhum ignorante. Aposto tudo o que tenho em como o cardeal não consegue apresentar um único escrito científico defendendo essa posição. A menos que esteja a falar da "ciência" teológica ou filosófica, mas nessa brincadeira não alinho, eu, cientista.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Olá ainda que mudo tenho visto o site suas transformações e agora este regresso à blogosfera pura e dura ainda que sob controlo (Sábados e Domungos!)Um abraço e muita política e filosofices.
Pessoalmente acho que a discussão em torno do aborto (se é vida, se não é, se o é só às 10 semanas) é a forma mais errática de o abordar. Há muito que penso que se trata de um problema moral e afectivo. Abortar é, moralmente, tirar uma vida. A questão é que só a conhecemos por imagem ecográficas algo vagas, algo "distantes". E custa menos que matar uma criança à nascença.
Mas é precisamente porque nos regemos por padrões morais e afectivos que, mesmo que não seja de cabeça, mesmo que não incondicionalmente, sou a favor do alargamento do prazo e dos motivos que legalmente permitem o aborto. Acho (achei sempre) que será um mal menor
Enviar um comentário