Esta nota sai hoje em horário tardio, em relação ao habitual, por uma razão simples. Não quis basear-me no diz-se ou nas notícias, tive de ler e estudar o discurso do Papa na Universidade de Ratisbona.
É um discurso que dá muito que pensar, mas também despertando muitas dúvidas. Em primeiro lugar, as reacções no mundo islâmico, de esperar, acabam por confirmar o próprio discurso. A mensagem essencial do Papa vai no sentido da rejeição da intolerância religiosa e da violência em nome da fé, bem como da aceitação da racionalidade, em compromisso com as diferentes fés, na vida pública. Talvez simplificando redutoramente, parece-me que o essencial é a recusa das teocracias, coisa não surpreendente num chefe religioso cujos fieis, na sua esmagadora maioria, vivem em sociedades com separação entre o Estado e as igrejas. Parece-me claro que esta mensagem cai fundo em muita gente, crente ou não, especialmente nos tempos de hoje.
Como é hábito nas reacções inflamadas, as reacções contra o discurso encaixam-se na actual lógica mediática dos “sound bites”. De um discurso extenso que poucos leram, extrai-se apenas uma pequena passagem, ainda por cima uma citação de Manuel Paleólogo. Já li que, à margem do texto escrito, o Papa acrescentou duas vezes “eu cito”. Registe-se uma excepção notável, de serenidade e lucidez, a da Comunidade Islâmica de Lisboa (segundo o Público de hoje):
“A Comunidade Islâmica de Lisboa, ficou profundamente surpreendida e triste com os excertos do discurso do Papa Bento XVI divulgados [...]. Tivemos, no entanto o cuidado de não nos precipitar [...]. Conseguimos um exemplar do discurso e, depois da sua leitura, não nos parece que fosse intenção expressa do Papa atacar o islão e os muçulmanos [..]. No entanto, consideramos que, dos muitos diálogos havidos, ao longo dos séculos, entre cristãos e muçulmanos, o Papa foi decerto muito infeliz na sua escolha, sobretudo nos tempos tão conturbados em que vivemos.”
Aqui é que radica a minha dúvida principal. O papa foi infeliz, no sentido de descuidado ou impensado? Não previu estas reacções? Não sabia que as palavras de um papa têm muito maior peso do que os cartoons de um obscuro jornal dinamarquês? Não acredito. A sabedoria romana é imensa e um Papa não diz nada que não seja passado primeiro a pente fino.
Qual foi então o objectivo? Palpita-me que estará próximo daquilo que escreve Renzo Guolo no La Repubblica, que, ao falar do profeta Maomé, o Papa quebrou um tabu. "As religiões podem falar entre elas de ética, de paz, de família ou de secularização", mas "nunca dos dogmas ou dos textos sagrados de outrem, sob pena de provocar um imediato reflexo identitário".
Se é assim, é uma atitude corajosa, que vai contra a hipocrisia de muito “diálogo” que se fica pelo superficial. São assim, muitas vezes, os consensos tão na moda. O mundo nunca avançou por consensos, mas por confrontos dialécticos.
Nota 1 – Declaração de interesses: não sou católico nem muçulmano.
Nota 2 – Ainda no Público, hoje, a notícia do reconhecimento oficial do judaísmo e do islamismo, em Portugal, ao abrigo da lei da liberdade religiosa. Tardou cinco anos, como regulamentação da lei, mas mais vale tarde que nunca. E o protestantismo ou o hinduísmo, com tantos crentes em Portugal?
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