09 setembro, 2006

O museu de Ponta Delgada

museu1O Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, instalado no magnífico convento de S. André, é uma das minhas memórias de infância. Depois de o meu pai me ter ensinado a apreciá-lo, o museu preencheu-me tardes e tardes de domingo, muitas vezes apenas uma sala de cada vez. Muitos poderão achá-lo um museu generalista, com demasiada diversidade, das artes à etnografia e às ciências naturais. Para mim, é boa razão para o seu encanto especial.

Nestas férias, também por imposição da minha mulher que sempre se encantou com aquele museu, lá fui, para algumas gratas surpresas. O museu quase deserto a que estava habituado estava cheio de grupos de turistas, com guia. Todas as salas tinham um tipo especial de vigilantes: jovens estudantes em férias, com bom domínio de inglês e bem informados sobre o que diziam aos visitantes, sem esperarem por eventuais perguntas, eram eles que se dirigiam aos visitantes. Um ficou encantado por tudo o que lhe contei das minhas recordações pessoais de Canto da Maia, pessoa extravagantemente inesquecível.

A secção de etnografia está exactamente como a conheci em miúdo, e muito bem. Não há nada a acrescentar à etnografia, com os anos. A agricultura, com as típicas alfaias micaelenses e o seu arado, com o carro de bois, o sacho de cabo curto, mais adequado à dureza vulcânica do solo mas a exigir força acrescida. A pesca, em que nos comove uma excelente figura em manequim de um pescador no seu barco e em que percebemos o que era, e ainda é, a aventura do pescador solitário, num barco minúsculo. O ambiente doméstico, a refeição familiar, os trajes. Só merece alguma reserva a cama rica que a fotografia mostra. É um exemplo do magnífico mobiliário açoriano (leiam um livro sobre isto, editado pela DR da Cultura). Na generalidade das casas populares, era uma modesta cama de ferro forjado.

Surpresa foi também a secção de artes. O museu sempre viveu de três colecções principais, Canto da Maia, Domingos Rebelo e um pintor micaelense mais antigo, oitocentista, formado em Itália, Marciano Henriques. Com menor representação, dois escultores micaelenses, Xavier Costa e Numídico Bessone, bem como alguns notáveis pintores amadores, como Viçoso May e Duarte Faria e Maia .

Agora, também uma pequena mas significativa colecção de arte moderna portuguesa: Eduardo Nery (um pouco açoriano, por ex-afinidade), Noronha da Costa, João Hogan, Menez, Paula Rego, Cruzeiro Seixas, Cesariny, Nikias, se não estou a esquecer algum. Claro que não podiam faltar os açorianos: António Dacosta, Carlos Carreiro, José Nuno Monteiro, Tomás Vieira, bem merecedores da atenção dos visitantes. Felizmente, Dacosta já é caso à parte de reconhecimento do grande mérito, os outros também merecem. Faltam uma instalação de Ana Vieira e uma maquete de arquitectura de João Rebelo ou de Bernardo Rodrigues. Fiquei com uma curiosidade insatisfeita. Quem terá comprado todos esses quadros, uma fortuna? Da iniciativa, tenho a certeza adivinhada: Nestor de Sousa. Gente de Coimbra da minha geração: alguma vez esquecerão o Nestor como magnífico e comovente Job no “Breve Sumário da História de Deus”?

Não podia faltar o registo da secção de história natural, criada por Carlos Machado. Mal e bem, está na mesma. Mal, porque é coisa indigestível, centenas de bichos empalhados amontoados em armários, com as etiquetas originais do fundador. Mas bem, para este velhadas, porque é a memória exacta das milhentas horas de observação, com o compêndio de ciências naturais na mão.

Com tudo isto, não há bela sem senão, três desgostos. Primeiro, terem removido da secção de história natural os monstros, vitelos com duas cabeças, um feto cíclope, um porco sem olhos, outras coisa que, perfidamente, me deliciavam. Também tiraram do coro alto do convento uma coisa indispensável à curiosidade de um miúdo, a mão esquelética de uma freira setecentista. Finalmente, mas é lei da vida e não culpa do museu, já não há o Chico, macaco ordinário que se masturbava para deleite enrubescido das sopeiras, enquanto os magalas as apalpavam.

PS – Para os micaelenses que me lerem, a lembrança de alguns nomes ligados ao museu: Carlos Machado, Luís Bernardo Ataíde, José Maria Álvares Cabral, Luísa Costa Gomes, António Frias Martins, Nestor de Sousa.

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