O Zé das camionetas
O Zé é verídico, mas alguma da história é ficcionada, em nomes e lugares, em um ou outro pormenor pitoresco, porque ele ainda deve andar por aí. Não tira nada à caracterização de um caso de gente típica. Eles ficam ainda mais típicos quando acentuamos as pinceladas do retrato.
O Zé das camionetas também era miúdo da minha R. do Saco de infância, mas “capitão da areia”. Não se sabia onde vivia, arribava à minha rua vindo talvez de uma noite mal dormida num bidão da doca. Ele não o dizia, mas sempre pensei que a sua vida passava muito por rei da doca, porque nos contava que era ajudante de guardas fiscais contrabandistas. A sua escola foi sempre a da malandragem, com histórias que me deliciavam e aos meus amigos, histórias de vivência impossível para nós, meninos burgueses e educados religiosamente.
Aos cinco anos, o Zé começou a sua carreira rodoviária, com uma velha cega, minúscula, desdentada e trôpega, que acho que não lhe era nada, apenas sócia no negócio. Entravam na camioneta da Lagoa e o Zé cantava o fado da ceguinha, com a sócia de olhos bem fechados, mas a adivinhar-se que olhavam para o vazio, talvez o triste vazio interior. Boné cheio de moedas, descia no Rosário e tomava a camioneta para a Vila Franca, repetindo-se o trabalho. Chegava a dar, num dia, toda a volta à ilha. Há quem garanta que, no fim, a velha finalmente abria os olhos e não se deixava perder nas contas da divisão de proventos que o Zé fazia.
O Zé foi crescendo e o tamanho já não despertava a vontade da esmola. Espírito empreendedor, virou-se para outra actividade, tirando partido dos seus conhecimentos de transportes públicos. Entrava nos cafés e fazia apostas. “Qual é a paragem que fica a seguir à do Cabouco?”. Ganhava sempre e, com isto, lá ia para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
Um dia, jovem estudante em Lisboa, passeando-me na Feira da Ladra, parei a ver um dos habilidosos da vermelhinha, em grande discurso de distrair os jogadores. Entrou-me logo no ouvido a toada micaelense, reparei bem e era o Zé. Tinha assentado praça no 18 mas não durou lá muito, indo logo como corrécio para Penamacor. Tudo porque numa noite de sentinela, mais do que entediado, se entreteve a usar a Mauser para uns tirinhos aos pardais do Campo de S. Francisco. Isto contou-me ele, mas não acreditei, porque degradação a corrécio exigia muito mais, ou política ou grande malandragem de ciganos. Segredos lá dele, inconfessáveis até a velho companheiro, mas fiquei sempre a suspeitar de que ali devia haver história de saias com mulher de oficial. A vermelhinha ia-lhe dando algum proveito, mas a ambição era poupar todos os cobres para o regresso à ilha.
Interrogando os meus velhos companheiros, ninguém sabe do Zé. Com o seu jeito para o negócio, mesmo que pouco ortodoxo, não será hoje empresário bem sucedido, a ganhar muito mais do que eu?
(Adaptado de "O Mastro das Alminhas")
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