08 julho, 2006

Para quê chamar a ciência à discussão do aborto?

Revogando uma decisão judicial anterior, no chamado caso de Aveiro, algumas mulheres acabaram por ser condenadas pelo crime de aborto. Parece-me sobeja razão para reflexão de todos aqueles que têm a consciência tranquila porque, "na prática, ninguém é penalizado por este crime". Ele lá está no código penal e ao alcance de algum juiz mais "escrupuloso". Também reflexão para mim, atento ao que me rodeia e solidário por natureza e ideologia. É uma reflexão desafiante, porque pode suscitar duas ordens de questões, em que a minha situação é oposta: uma discussão jurídica e social, em que só falo como cidadão e pensante; outra científica, em que me sinto no dever de ser muito cuidadoso em relação a alguma influência pública.

Não sei nada de filosofia do direito, mas tenho algumas ideias de senso comum. Para mim, talvez um pouco esquematicamente, há três tipos de crimes. O primeiro é o que atenta contra os direitos, a liberdade, a segurança e a propriedade do outro. É o que chamo um crime absoluto, que não é afectado por nenhuma circunstância sociológica. Se o roubo ou a agressão física começarem a ser prática corrente, isto não justifica nenhuma desculpa social para a despenalização. A realidade social não faz lei, neste caso.

O segundo caso é o de crimes que configuram atentados gerais à ordem sócio-política. Também entendo que se baseiam na valorização abstracta de coisas essenciais da nossa vida civilizada: a incitação à violência ou ao racismo, a ofensa à identidade nacional, o desrespeito aos tribunais, a desobediência, a espionagem, a evasão fiscal, etc.

Caso muito diferente, em que insiro exemplarmente o do aborto, é o dos crimes que reflectem uma visão transitória dos valores éticos e sociais, muitas vezes até dependentes de ideologias sectoriais. São casos em que, claramente, não está em causa a defesa dos interesses de outrem: por exemplo, o consumo de drogas (não o tráfico), a prostituição (não o proxenetismo), a homossexualidade (já foi crime e não há tanto tempo como se possa julgar), o adultério (questão privada, mas não no tempo de Camilo), etc. Nestes casos, considero que a penalização é frágil e contingente, muito determinada pelo nível de aceitação social e de prática, sempre a evoluir. Se milhares de mulheres praticam o aborto, quem tem uma escala de medida para avaliar se é condenável (juridicamente) ou não? Não é como o assassínio, em que, mesmo que não houvesse nenhum caso, nunca deixaria de ser crime.

Uma nota sobre a participação indirecta: distingui consumo e tráfico, prostituição e proxenetismo. Devo distinguir, no caso do aborto, a mulher e o abortador? Tenho muitas dúvidas. Considerem este caso: um médico é a favor do aborto, quer ajudar as mulheres a fazerem-no nas melhores condições (já que, de qualquer forma, o farão, no vão da escada) e, para se situar bem e marcar posição, não leva um tostão por essa operação. Se eu fosse obstreta, é o que faria. Podiam depois acusar-me de tudo, mas nunca de interesse de negócio.

Quero deixar algum espaço para um tema que me interessa muito, cientificamente, o da vida humana. O tema foi suscitado, ainda há dias, pelo bastonário da Ordem dos Médicos: "Os códigos de ética dos médicos proíbem a eliminação de uma vida humana. (…) Deve-se centrar o debate no diagnóstico do início da vida. (…) A sociedade portuguesa deveria ter a coragem de definir a fronteira a partir da qual não será possível eliminar a vida humana." Desculpe a brutalidade, estimado colega, mas tudo isto é tolice e falta de bagagem científica.

A ciência não sabe lidar com definições de "senso comum". Lembro-me, tantos anos depois, de uma aula do meu inesquecível Ilídio Sardoeira (aula de biologia!) em que nos desafiou a definir força. É a qualidade de se ser forte (definição circular), é o que vence a inércia, é o que faz mexer, etc. No fim, a conclusão aceite foi a de que força é "apenas" o produto da massa pela aceleração. E se, depois, ele nos tivesse perguntado o que era a massa? Para os meus amigos físicos, talvez eu esteja a dizer grande asneira. Desculpem-me.

Vida humana. Eu, biólogo, não sei o que isso é! Nem a ciência deve ser chamada a alicerçar decisões que são apenas do plano social e, admito, ético (mas ético de cada um, não de toda uma sociedade). Até vou ser provocador: considero menos grave "matar" um embrião do que matar um chimpanzé. Justificarei adiante.

Vida humana. Começa por ser necessário discutir separadamente o substantivo e o adjectivo. Comecemos por vida. É um conceito abstracto. O que há é seres vivos e mesmo isto abre grandes discussões. Os vírus são seres vivos? Organismos não são, mas entendo que são seres vivos, embora haja quem os coloque na fronteira. É um desafio que coloco sempre aos meus alunos, para um trabalho de duas páginas, e de que recebo opiniões muito interessantes. Posso dar muitas definições caracterizadoras de ser vivo, nem todas compatíveis entre si: a velha descrição fenomenológica, desactualizada, a definição termodinâmica, até mesmo uma definição "informática". A ciência pode facilitar mas não determina conceitos filosóficos e éticos.

Depois o adjectivo humano, e aqui é que vêm todas as discussões. A atitude mais fácil é a de alguns católicos, com maior formação científica, que se vêem obrigados a enfatizar a ligação ao adjectivo "potencial". Não consigo entrar nesta discussão, que não é científica. A ciência lida com factos, não com potencialidades. Aliás, essa discussão parece-me perigosa, em termos jurídicos, apesar de leigo. Um potencial assassino deve ser condenado à prisão? Não falo de esquizofrénicos violentos, legalmente internáveis, mas de personalidades psicopáticas imputáveis. O potencial permite tudo. Porque é que um espermatozóide não é um elemento potencial de um futuro ser humano? Afinal, é isto que justifica a condenação católica da masturbação, se não erro. Um embrião in vitro é um ser humano potencial? Queria vê-lo crescer e diferenciar-se no laboratório! Mesmo um ovo fertilizado in vivo é real, em capacidade de concretização, antes da nidação? Fico à espera das respostas do bastonário.

Voltando ao humano, o que o define? Ou, para começar, qual é o momento em que isso se define? A embriogénese é um contínuo e creio que ninguém sabe exactamente qual o momento em que ficam definitivamente adquiridos os traços humanos. A activação dos primeiros genes exclusivos do homem? Quem sabe quais eles são, "uma dúzia"? O estabelecimento das primeiras sinapses? Também todos os animais as têm e, no homem, essa rede só é verdadeiramente construída pela experiência, não geneticamente. As relações in utero com a mãe? Idem. A consciência, a mente e a linguagem? Então o aborto podia ir até aos dois anos de idade!

Seguindo a provocação que referi, vou falar de primatas, que todos somos, nós e os nossos primos chimpanzés. Imaginemos que é agora descoberta uma tribo de paleolíticos remotos, que só usam instrumentos rudimentares, umas pedras lascadas, e uma linguagem de sons primitivos. Alguém negará que são humanos? Mas os chimpanzés, nosso divertimento de zoo? Partilhamos com eles a quase totalidade do nosso genoma. Em relação a algumas marcas genéticas, há por vezes maior proximidade entre grupos humanos e chimpanzés do que entre grupos humanos diferentes. Estes primos têm consciência, noção do "self", reconhecem-se ao espelho. Usam instrumentos, também as pedras e mesmo outros por vezes mais elaborados do que os do homem paleolítico, comunicam, têm afectividade, são solidários, resolvem problemas com a nossa inteligência. No limite, podemos definir uma característica exclusivamente humana, a fala. Isto só depende de duas coisas, que só se processam depois do nascimento, a descida da laringe e do osso hióide (um dos nossos mais pequenos e mais importantes ossos, na língua). Ora os chimpanzés também fazem a descida da laringe, só lhes faltando a do hióide. Afinal, talvez seja esta coisa banal a definição científica do homem!

Toda esta história de primatas pode parecer parvoíce de fim de semana mas tem um fim provocatório. Os nossos "defensores da vida" não se ficam pelo seu direito legítimo de condenarem o aborto. A única conclusão será a de que não o devem praticar (nunca o praticam?). Invocam argumentos científicos, até imagens horrorosas como as que eu, fumador, vou ter de ver nas minhas cigarrilhas. A minha provocação é a de que sejam coerentes: defendam a libertação de todos os chimpanzés!

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