07 janeiro, 2006

Necrofilia cultural

Na sua crónica habitual no Público de hoje, Vasco Pulido Valente (VPV) escreve, a propósito da candidatura de Mário Soares:
Mas nem por tudo isso Mário Soares deixou de ser parte e parcela de uma cultura burguesa que morreu [JVC, itálico meu]. Uma cultura em que a arte, a história, a filosofia, a política, a conversa, o conforto e a cozinha contavam. Uma cultura cosmopolita, que lhe permitia estar em casa em Itália ou em França, em Inglaterra ou em Espanha, na Alemanha ou até na América "liberal" da costa leste. Um homem destes não podia perceber (e não percebeu), nem se podia adaptar (e não se adaptou) a uma civilização de "massa". Principalmente, um homem destes não podia ter a mais remota empatia pelo "novo homem", reduzido a uma educação técnica, com ideias sumárias sobre a sociedade e a vida, imitativo, grosseiro e dedicado a uma ambição primária e pessoal.
O que motiva esta minha nota não é a campanha mas a referência a uma cultura burguesa que morreu. Como, em grande parte, é a minha, isto dá-me que pensar. Serei, como muitos outros, VPV incluído, um dinossauro cultural em extinção?

Quando muito, posso interrogar-me sobre a tendência para extinção, por perda de hegemonia (leia-se Gramsci). Que tenha já morrido essa cultura, é mais uma "boutade" a que VPV já nos habituou. Não creio que alguma vez na história uma cultura tenha morrido, em termos absolutos, de desaparecimento. Cada nova formação cultural vai apagando os aspectos em que a cultura antes dominante entra em contradição com novas configurações sociais, mas, ao mesmo tempo, mantém delas valores essenciais, a que, talvez pomposamente, chamamos o património cultural da humanidade. A revolução francesa decapitou Luís XIV mas não destruiu o palácio de Versalhes.

Creio mesmo que a tendência actual é para a vitalização em coexistência de várias formas de cultura. É certo que hoje, principalmente graças às variadas formas de informação e de comunicação social, há grande pressão para uma certa homogeneização cultural. No entanto, vejamos o caso dos EUA. A sua globalização interna não impede que haja a cultura de bota e chapéu de cowboy, de budweisser e de mau gosto, mas também, ao mesmo tempo, principalmente em ambas as costas, os melhores museus, os melhores concertos, as grandes exposições, tudo a abarrotar de gente. E são todos da velha burguesia os milhões de turistas que hoje nos impedem de ver bem a Gioconda ou a Capela Sixtina?

Pelo contrário, a massificação da educação o que está causar é o acesso de cada vez mais pessoas à tal cultura "morta". O que admito é que ela não reflecte, ao ritmo da vida, as mudanças sociais e a enorme mudança da "outra cultura", que não quero adjectivar. Claro que esta dicotomia cultural sempre existiu. Os metecos conheciam Homero? O padeiro de Paris era capaz de ler Diderot?

Mesmo isto se tem atenuado. Os intelectuais snobs de hoje acham-se cada vez mais um grupo restrito de elite, perante uma massa de jovens (vou servir-me deles como exemplo) incultos. É certo que isto pode causar um desequilíbrio na relação-sobreposição entre elite intelectual e elite social e económica (prefiro não falar da "elite" politica...). A ascensão à elite social foi explosiva, e bem bom. Muitos destes não estão preparados para ter igual nível em termos de elite cultural, provieram de meios menos propícios, fizeram-se por si, formaram-se numa educação superior massificada, fábrica de profissionais. Terem ascendido é o seu grande mérito e não se pode continuar a vê-los por um padrão ultrapassado.

Por outro lado, também há nisto um equívoco, na comparação dos tempos. Nos meus tempos de estudante universitário, em que a selecção social era muito maior, mesmo assim quantos dos meus colegas nunca liam nada de qualidade, nunca conheceram S. Carlos, não tinham a mínima ideia de quem tinha sido Demócrito, de jornais só liam a Bola. E até nunca tinham lido os Lusíadas, do primeiro ao último verso.

O que não nos apercebemos, muitas vezes, é como essa "outra cultura" tem evoluído. Nesse meu tempo, ouvia-se o António Calvário, hoje, entre muita coisa, há excelente "música ligeira". Hoje, há quem se delicie com a Margarida Rebelo Pinto, mas havia colegas minhas que liam Corin Tellado, creio que muito pior. E, depois, a net, nem vale a pena dizer mais nada.

Com tudo isto, o que me repugna é a atitude arrogante dos que se fecham cada vez mais no seu umbiguismo "cultural", ao ponto de, como nesta declaração de VPV, se assumirem como mortos vivos. Volto a lembrar o mestre Bento de Jesus Caraça, quando escrevia que um dever das elites era o de lutar pela cultura como património da comunidade inteira, de lutar pela tarefa essencial de "despertar a alma colectiva das massas".

VPV, Filomena Mónica, muitos outros, são exemplo do oposto. Criticam, ou até ridicularizam, do alto do pedestal, a "canalha" de mau gosto, que, no fundo, se calhar, invejam pelo seu sucesso na vida de hoje. Não produzem uma ideia nova, não ensinam ninguém. Julgam-se novos Eças ou Ramalhos, mas estes só ridicularizavam como instrumento de pedagogia cívica e cultural, nunca como forma de narcisismo. Infelizmente, há uma coisa muito nossa, a decadência. Pior, a decadência auto-satisfeita.

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