11 fevereiro, 2006

As caricaturas de Maomé

Para além deste espaço de escrita sobre assuntos gerais, vou tentando alimentar a discussão entre amigos que fazem parte de uma lista restrita de correio electrónico. Como se imagina, muita discussão temos tido sobre a questão dos "cartoons". Tenho deixado sedimentar as minhas ideias. Creio que só é possível exprimi-las com uma distinção de níveis e aspectos.

1. Do ponto de vista pessoal. O meu sentido de humor é muito largo. Apesar de cientista, nunca me ofendi com a célebre caricatura do macaco Darwin. No meu livro de curso, fizeram-me uma caricatura devastadora, enfatizando vícios meus que cada vez mais reconheço e tento corrigir. Mas ri-me, porque sem riso não há vida que valha a pena viver. Pessoalmente, ri-me às gargalhadas com a célebre caricatura do António com o papa e o preservativo no nariz, embora admitindo que alguns católicos se ofendessem. Não, por exemplo, a minha ultra-religiosa mãe, que sempre diz que é um crime contra os filhos não se usar contracepção e não se ter meios para os sustentar. Tem 90 anos, é profundamente católica.

Mas não abdico de uma maneira sensata de ver as coisas. Imagino-me dinamarquês, quando um jornal publicou as caricaturas e ninguém adivinhava esta guerra. Soube então que as caricaturas não eram iniciativa de um desenhador, mas que tinham sido encomendadas por um pasquim xenófobo e de acordo com os objectivos do jornal. Estou certo de que eu teria escrito violentamente contra isso, e o mesmo faria se se tivesse passado em Portugal. Entretanto, muito se passou, mas creio que não devemos esquecer este ponto de partida.

2. Do ponto de vista de eu na sociedade. O meu pai, "very british", habituou-me a uma regra: nunca discutir, fora do círculo de amigos, política e religião. Há anos, a minha mulher e eu fizemos um cruzeiro no Nilo, com um simpático acompanhante egípcio. Tivemos antes nós dois uma conversa. Quando estávamos os três juntos, com o guia, ela não usava calções nem falava, apesar de toda a vontade que lhe vinha à boca, sobre a execrável situação da mulher nas sociedades muçulmanas. A viagem correu muito bem.

Se eu fosse caricaturista, tinha publicado algumas daquelas caricaturas, deliciosas, por exemplo, a das virgens esgotadas. Mas não teria figurado Maomé com uma bomba, identificando-o com o terrível terrorismo islâmico. Também, se fosse o director do jornal, não teria permitido a publicação dessa caricatura, muito menos encomendá-la. Quem, como eu, manda com frequência artigos para os jornais, sabe que muitos são rejeitados e respeitamos isto. É o direito do jornal. A liberdade de expressão está em foco, mas há algum jornalista que nunca tenha tido essa liberdade coarctada pelo director ou pelo chefe de redacção?

3. Do ponto de vista da nossa civilização. Tudo o que se tem escrito é à volta da liberdade de expressão. Muito bem, mas não é o único valor civilizacional que temos de defender, nesta situação, é também o do laicismo ou laicidade do estado. Bem sei que seria deitar mais achas na fogueira, mas não devemos esquecer isso.

Os meus leitores habituais sabem como eu abomino o politicamente correcto, no pensamento e, mais ridículo, na linguagem. Assim, ninguém me leva a dizer que todas as civilizações são iguais. Elas nem sequer são iguais a si próprias: todas nascem, sobem ao apogeu e degeneram. Se não, ainda vivíamos no império romano. A árabe foi uma grande civilização, hoje, para mim, claramente que já não é. Aceito é que seja muito difícil medir um civilização, mas sempre usámos alguns critérios base: prosperidade, hegemonia, poder (estes os aspectos "criticáveis"); mas também cultura, ciência, artes, pensamento humanista, e, hoje, desenvolvimento humano.

Para mim, a teocracia é uma característica diminuidora do mérito de uma civilização. É certo que a tivemos, mitigada na partilha de poder entre o rei e a igreja. Por alguma razão a revolução francesa impôs como valor fundamental a separação e o laicismo, porque a ligação era um elemento essencial do antigo regime. A dificuldade é que, no caso do Islão, é difícil falarmos apenas de religião. Se assim fosse, a "intocabilidade" dos sentimentos religiosos teria, neste caso, outra dimensão. O problema é que o islão é, indissociavelmente, uma ordem social e uma política e, em boa parte, intrinsecamente agressiva (não, não estou a esquecer as cruzadas!). E hoje, neste mundo globalizado e interdependente, toda a gente tem o direito de discutir a política de qualquer estado, mesmo que, com isto, esteja a discutir uma religião.

4. Do ponto de vista dos estados europeus. Há dias, o nosso MNE alinhou na onda europeia das meias tintas e da "realpolitik". Defendeu vagamente a liberdade de imprensa mas manifestou a sua simpatia pela indignação dos que se sentiram ofendidos, criticando a irresponsabilidade do jornal dinamarquês, chegando mesmo a usar palavras de clara condenação. Para mim, é uma atitude à Munique de 1939. Eu bem sei que há petróleo e o medo generalizado dos ataques terroristas. Mas lembremo-nos de Churchill. Ceder ao medo e à chantagem é logo a perda da primeira batalha. Um governo não tem nada que fazer declarações valorativas sobre actividades privadas. Que a publicação das caricaturas foi infeliz, estou de acordo, mas é tema da vida privada e nenhum ministro, em nome do estado, tem de se pronunciar.

Dos comunicados europeus que li, o do nosso MNE é o mais lamentável. Para além da parolice da referência a "Cristo e a sua Mãe, a Virgem Maria" (sic; só faltava ter-se benzido ao dizer isto) e da "lição" de história sobre a raiz comum das religiões monoteístas em Abraão, nem uma palavra a condenar os desmandos que esta questão está a provocar nos países islâmicos.

5. Do ponto de vista do confronto de civilizações. Tendo a alinhar com os que escrevem que, com a geopolítica, o petróleo, a mundialização das novas ameaças (ie, terrorismo internacional), estamos a entrar numa "guerra de civilizações", ocidental e islâmica (enquanto não aparece a oriental).

Esta guerra tem dois terrenos: o primeiro é mundial, o segundo é a nível de cada pais com comunidades islâmicas relevantes. Não vou falar agora sobre isto, embora seja um problema indissociável do problema internacional.

Claro que não tenho receitas, porque o problema não é apenas cultural; as tensões culturais acabam sempre por se resolver. Veja-se o exemplo paradigmático da excelente síntese cultural feita pelo Japão após a 2ª Guerra. Agora, o problema é muito mais fundo, porque a religião, sendo elemento também da cultura civilizacional, é muito mais funda.

Desde o 11 de Setembro que toda a gente se interroga: como dar relevo ao mundo islâmico que, como entre nós, segue as instruções de ulemas inteligentes, modernos e mundividentes? Confronto-me com alguns problemas. Em primeiro lugar, eu que até não vou muito com hierarquias, reconheço que as figuras máximas das igrejas desempenham um papel regulador muito importante. O Islão não tem uma autoridade máxima.

Li há tempos um relato pouco difundido de uma reunião com Bento XVI (e bem bom, senão a guarda suíça teria de ser reforçada). Segundo o papa, há uma diferença essencial entre os textos revelados. No judaísmo (Moisés e os profetas) e no cristianismo (os evangelistas), Deus transmite uma revelação a homens para as escreverem para o seu tempo, mas sem prejuízo da reinterpretação ao longo dos tempos. Pelo contrário, o arcanjo Gabriel ditou, textualmente, o Corão a Maomé. É a palavra de Deus infalível. Há margem para interpretação? Pode assim essa religião actualizar-se e reformar-se?

Lembro-me de uma excursão estragada quando visitei Israel. O guia, israelita de esquerda e muito inteligente, foi massacrado por uma turista malaia. Quando ela o defrontava com uma tese, ele respondia que aquilo era velha história bíblica e que precisava de ser reactualizada. Ela abria o Corão, lia uma passagem e dizia, a terminar a conversa, "isto é a palavra de Deus único, que também tem de ser o seu".

6. Do ponto de vista do direito internacional. Incendiar embaixadas, com óbvia complacência das policias? Quem pode pactuar com isto, sem renegar os princípios mínimos da ordem internacional? Muitos protestam contra as intervenções bushianas à margem da ordem internacional, eu próprio. Mas como é que temos autoridade para afirmar essa ordem se contemporizamos, "politically correct", com este populismo obviamente fomentado por estados?

Finalmente, uma nota cínica. Li hoje (dia em que escrevo) uma notícia importante que talvez passe despercebida. Desde há muito tempo que parece haver na Dinamarca uma rivalidade pessoal feroz entre dois candidatos à supremacia da influência na comunidade islâmica. Um deles foi descobrir estas caricaturas já de há alguns meses e lançou uma hábil campanha político-religiosa junto dos países árabes. Coisa pequenina e mesquinha, a rivalidade entre dois pequenos líderes locais, mas é o efeito borboleta.

PS – Isto já vai longe. Peço desculpa, mas não me parece assunto para tratar em duas linhas. Acrescento ainda uma nota. Estou a escrever numa espécie de blogue e ninguém duvida da influência da blogosfera. Nestas semanas, tenho feito pesquisas intensas acerca de sítios ou blogues que expressem o ponto de vista de muçulmanos "modernos". Alguém já os encontrou? Eu não.

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