Nota prévia: sou virologista e creio honestamente que sei do que vou falar.
Estou atónito com o caso que hoje faz destaque no Público. Pela segunda vez, primeiro num tribunal de trabalho agora na Relação, um homem vê negada a sua razão. Portador de HIV, cozinheiro de profissão, foi despedido por representar um perigo para a saúde pública. O caso tem aspectos graves que mereciam discussão, como seja a inconfidência de um médico de trabalho ou a arrogância de declarações em tribunal de um médico generalista, sem conhecimentos científicos mínimos sobre esta situação. Mas vou ficar-me pelos juízes.
Fala-se da debilidade do nosso sistema judiciário. Más condições, excesso de trabalho, instalações degradadas, burocracia exagerada, demoras, tudo é verdade, mas nada se compara ao medo que eu sinto, como cidadão, perante a possibilidade de um dia vir a ser julgado por pessoas destas.
Um juiz não é um enciclopédico. Por isto há peritos, pareceres, documentos científicos. Mas o que o juiz obrigatoriamente tem de ter é o rigor intelectual e a mentalidade científica mínima que lhe permitam passar da opinião técnica para a decisão jurídica. Este caso é a demonstração mais eloquente de que isto pode não acontecer.
Um documento científico diz, com objectividade, que o HIV pode estar presente na saliva ou no suor. Os juízes valorizaram isto, juntamente com o tal depoimento, para decidirem que o cozinheiro podia chorar, cuspir ou suar sobre a alface e que qualquer pessoa com uma ferida na boca poderia ficar contaminada. É verdade. Mas tão verdade como eu dizer que um dos juízes podia estar sentado na retrete no momento em que houvesse um terramoto que abrisse uma brecha na sua casa de banho e o fizesse sumir-se pelo esgoto. Teoricamente, era possível. E merecia!
O que é grave, intelectualmente e como questão de confiança na justiça, é que esses juízes se arvoraram o direito de aproveitar apenas um dado científico factual mas sem significado prático, valorizando-o em absoluto contra tudo o que logo vem a seguir nesse relatório (do CDC dos EUA, provavelmente a maior autoridade mundial em doenças infecciosas): a concentração do vírus nesses fluidos orgânicos é diminuta e certamente incapaz de permitir a transmissão, que, nestas circunstâncias, nunca se verificou em extensos estudos científicos. Já agora, se algum desses senhores gosta de beijar (para não ir mais longe...), desaconselho-o...
Estes juízes são ignorantes sobre HIV. É natural. Pior é que fazem gala de continuar a ser ignorantes mesmo quanto lhes propiciam documentação elucidativa.
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2 comentários:
são juízes, senhor...
metem medo não tanto pelo que ignoram mas pelo que sabendo podem julgar...
João, lamento mas não conheces os dados todos. Julgaste apenas pela imprensa, o que não me parece nada ajuízado...
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