07 fevereiro, 2007

Recordando os meus pais

Em homenagem aos meus pais, falecidos mas que estou certo de que votariam sim, católicos convictos mas com uma busca incessante de respostas aos desafios quotidianos à sua fé, sempre na vanguarda dos movimentos de abertura religiosa, transcrevo, sem comentários, um artigo de Ana Vicente, do movimento "Nós somos Igreja". Os meus pais também entendiam que igreja eram eles e muitos milhões de irmãos seus na fé, não uma nomenclatura de sacristia.

O primado da consciência

Aproxima-se a data em que poderemos cumprir um dever e um direito cívico que nos é facultado pelo nosso sistema político. Este é desde logo um aspecto positivo, pelo que a minha primeira grande esperança será que o número de votantes seja expressivo e que atinja, pelo menos, as percentagens de votantes das eleições legislativas ou presidenciais. A minha segunda grande esperança é sermos capazes de debater a pergunta que nos é colocada de forma serena, tal como nos foi sugerido quer pelo cardeal-patriarca de Lisboa, quer pelo Presidente da República, em pleno respeito pela opinião contrária.

O que me perguntam é se eu sou a favor da alteração da lei actualmente em vigor, segundo a qual uma mulher que faz um aborto, nas primeiras dez semanas de gravidez, pode ser condenada a uma pena na prisão. Neste caso, até três anos.

Acompanho há muitos anos a evolução da situação das mulheres e dos homens no nosso país e noutras zonas do mundo e sei que, de acordo com todos os estudos nacionais e internacionais, o desenvolvimento humano (que engloba obviamente o social, económico e político) de qualquer comunidade está estreitamente ligado ao respectivo estatuto das mulheres e dos homens, aos equilíbrios e desequilíbrios de poder entre os dois sexos, nas várias esferas da vida. Reside também aí a persistência dos nossos baixos índices de desenvolvimento, em comparação com os restantes países da União Europeia.

Trabalhei na então Comissão da Condição Feminina num projecto de informação sobre planeamento familiar, em finais da década de 70, do século XX, quando, em boa hora, o dr. Albino Aroso fez publicar a portaria que instituiu serviços de planeamento familiar no sistema público de saúde. A frase forte de todo o nosso trabalho era: "Ser responsável pelo nascimento dos nossos filhos." Era uma época em que as mulheres portuguesas recorriam ao aborto, clandestino evidentemente, como método contraceptivo habitual, por não terem tido, até então, qualquer outra escolha. As consequências deste e muitos outros factores interligados implicavam altíssimos níveis de mortalidade infantil e materna. Recordo as muitas cartas que recebemos, manifestando alegria face à possibilidade de viver uma sexualidade realizada e não temerosa de gravidezes inesperadas e indesejadas.

Apesar de a lei que criminalizava o acto de abortar em qualquer circunstância ter sido, finalmente, alterada em 1984, suspendendo a ilicitude em determinadas condições e ter sofrido algumas subsequentes modificações, é notório que um número elevado de mulheres continuam a recorrer ao aborto clandestino. É igualmente reconhecido que um número significativo das mulheres que fazem abortos são a tal forçadas pelos respectivos maridos, companheiros ou progenitores. Penso firmemente que a melhor forma de apoiar estas mulheres é eliminar deste quadro degradante, em termos de dignidade humana, a clandestinidade em que tem estado envolvido.

Noto, por outro lado, que a instituição-Igreja Católica está muito activa na campanha do "não", mas creio que em nada dignifica essa instituição a emissão de mensagens ameaçadoras das consciências individuais dos seus fiéis. Essas atitudes são até contraditórias com a folha de serviços à comunidade que essa mesma instituição presta, nomeadamente no acolhimento residencial a idosos, pessoas portadoras de deficiência e crianças e jovens sem família efectiva (tarefa essa que desenvolve, é de justiça lembrar, em grande parte com o apoio económico da segurança social, ou seja, com o dinheiro dos nossos impostos).

Interrogo-me, por vezes, sobre o que estará na base desta inusitada energia por parte da instituição-Igreja Católica, procurando manter uma lei civil que penaliza as mulheres que, em consciência, decidem fazer um aborto nas primeiras dez semanas de gravidez. Deseja, portanto, que o Estado investigue, julgue e eventualmente condene a penas de prisão mulheres que fazem estes abortos, sejam elas católicas ou não. Não entende que o acto de abortar é suficiente pena para aquelas que o praticam. Não precisam de uma pena suplementar.

Convenhamos ainda que, sendo essa instituição dirigida exclusivamente por homens celibatários, que consideram que as mulheres não têm dignidade suficiente para aceder aos ministérios ordenados, há qualquer coisa de profundamente inquietante nesta atitude. Não perceberão que um grupo de homens que, no seu pleno direito, rejeitou constituir família, não possui autoridade efectiva para se pronunciar sobre os comportamentos reprodutores das mulheres?

É bom poder afirmar existirem milhares de fiéis, entre os quais me incluo, que, em consciência, na procura da fidelidade à mensagem evangélica de amor pelo próximo, e ainda na assunção plena de uma cidadania responsável, vão votar "sim" no próximo referendo.

(Público, 2.2.2007)

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