(Nota longa mas que reputo importante. Peço-vos paciência para a leitura)
Vou escrever esta nota com alguma relutância, esperando que, no fim, os meus leitores compreendam porquê: porque a ciência não deve ser chamada para este debate. Como alguns saberão, sou médico de origem e os meus graus académicos são em medicina. No entanto, toda a minha vida profissional foi de investigador em ciências biológicas. Não posso deixar de dizer alguma coisa sobre a segurança "científica" da noção de vida humana de alguns, mas desde já afirmo que, para mim, é questão sem sentido e que não trarei mais para este debate.
Cientificamente, o que é a vida humana? Comecemos por distinguir os termos, vamos a vida, depois a humana. Vida é uma abstracção e é bom que nos entendamos sobre isto, em termos científicos, mais localizadamente na biologia. Nela não há axiomas, nem sequer postulados, e alguns conceitos "abstractos", vida, consciência, mente, etc., não têm qualquer sentido absoluto, são formas operacionais de se lidar com características comuns, objectivas, de variadas entidades. O que há, de facto, são organismos vivos, como entidades objectivas, descritíveis em propriedades a que, no seu conjunto, chamamos vida. Estou a imaginar o leitor a pensar "que preciosismo". Vamos ver o que se passa na zona de fronteira, aquela que desafia sempre as simplificações.
Todos os dias preparava culturas celulares. Num frasco, numa estufa de laboratório, uns milhões de células alimentavam-se e dividiam-se. Mais, tinham controlo dessa divisão, comunicavam entre si, funcionavam como tecido. Não cabe aqui discutir esta hierarquia, tecido, órgão, sistema, organismo, mas anote-se que, apesar de estar no primeiro nível, o de tecido, já estou com um pé na discussão da vida. Quem olhasse para aquele frasco diria que havia ali vida? E se fossem células humanas? Até eram muitas vezes, originárias de pessoas com vida e história pessoal. No entanto, não passa pela cabeça de ninguém chamar de organismo vivo aquela população de células.
Um homem morre, separa-se-lhe do corpo a alma, acaba a vida. No entanto, muitos tecidos permanecem vivos durante mais ou menos tempo. Com vivos quero dizer, têm metabolismo e expressão génica, creio que as duas principais manifestações da "vida". E bem bom que assim é, porque, de outra forma, seriam muito difíceis as transplantações. Então como se caracteriza essa vida que ainda permanece no morto?
Ainda outro exemplo. Creio que ninguém duvida de que o agente causador de qualquer doença infecciosa é um ser vivo. Está na base do conceito de infecção. Descendo até às bactérias, sem dúvida. Mas um vírus é um ser vivo? Para mim, virologista, claro que sim, mas não é discussão arrumada e exigindo a tal flexibilidade da noção de vida. Pior ainda, o caso bem conhecido da doença das vacas loucas, cujo agente infectante, o prião, que se "multiplica" (não é característica essencial da vida?), é uma simples proteína.
Voltemos ao conceito, este prático e objectivo, de organismo vivo. Afinal, não é assim tão simples. Um esporo de um bacilo ou de um fungo, uma semente, um ovo (o que o ovo tem dado de discussão em relação a este referendo!), são organismos (seres, para quem preferir) vivos, embora inertes? Repare-se que não estou a falar de gâmetas, como os óvulos e os espermatozóides, mas de entidades que dispõem da totalidade da informação genética e que estão programadas para se desenvolverem em novos organismos adultos ou maduros. O feto de um mamífero não é mais do que isto, com a diferença que habita o útero feminino. Isto já vai longo, não posso desviar-me, mas creio que já disse o suficiente para perceberem uma coisa essencial. A vida é um contínuo, não tem momentos miraculosos.
Passemos à adjectivação. Creio que não haverá biólogo que não se ria se apanhar uma discussão sobre "vida vegetal" e "vida animal". Há vegetais e animais, mas vida, repito, como abstracção, não é adjectivável, é única, embora com manifestações objectivas variadas (e nem é assim tão claro; lembre-se que, durante muito tempo, os fungos foram considerados vegetais). "Humano" só entra aqui porque somos humanos, como diria La Palisse. E porque, como humanos, inventámos a religião.
Como isto já vai longo, vou saltar por cima de coisas que só têm a ver com animal (leia-se mamífero): o que é "o" momento da fertilização, um processo obviamente não instantâneo? Há vida antes da reorganização do oócito, processo essencial para que ele dê origem a um embrião? Pode haver vida em condições de total inviabilidade, se um embrião não faz a nidação no útero? Há "uma" vida humana, soprada na fertilização, quando um único ovo pode dar origem a dois gémeos univitelinos? Ou cada um deles tem só meia alma?...
Mas vou entrar no jogo do "humano", presumindo que a definição tem a ver com a mente e a consciência. Julgam que é coisa linear? O chimpanzé tem inteligência prática e tem a noção de si, a consciência, gosta de se ver ao espelho. E o Homo erectus não era homem? No entanto, o que é que sabemos das suas capacidades psíquicas? Mas vou ontinuar a dar de barato que têm razão, que vida humana se define a partir do momento mínimo da possibilidade de desenvolvimento de um cérebro humano. Afinal, é simétrico à morte, hoje indiscutivelmente definida por critério cerebral. Mas julgam que isto facilita? Afinal, todos os mamíferos têm cérebro. Assim, vou tentar dar o máximo benefício da dúvida (violando todavia o meu rigor científico) e dizer que aceito um "cérebro humano" quando se estabelece (mas, repito, como em todos os vertebrados) a diferenciação entre o córtex cerebral e o mesencéfalo, O QUE ESTÁ LONGE DE DIFERENCIADO ÀS 10 SEMANAS DE GRAVIDEZ.
Termino como comecei. Espero não ter de voltar a falar em termos científicos, porque a ciência não tem nada a ver com este referendo. Vou continuar neste debate como cidadão, mas não como cientista. Defensores do não, respeito as vossas convicções, a certeza religiosa que têm de que a vida começa num momento mítico só definível entre vós e a vossa divindade, respeito a fé, mas também respeito ainda mais a ciência, pilar da minha vida. Por isto, em contrapartida, peço aos defensores do não que andam a esgrimir argumentos "científicos" em que são incompetentes ("a ciência prova que...") ou a dar a ouvir batimentos de uma coisa a que chamam coração (desonestidade, porque não é mais do que um primeiro aglomerado de células de músculo cardíaco, obviamente já dotadas do poder elementar de contracção automática, os tais batimentos), repito, volto a pedir-lhes que respeitem a ciência dos outros como eu respeito a religião dos outros.
Duvido da eficácia deste apelo. Um cientista só pode ser um bom cientista se mantiver a mente aberta, tolerante e sempre duvidosa. Um fanático só pode ser um bom fanático e merecer o paraiso na espiral autoalimentadora da intolerância, das certezas absolutas e do terrorismo intelectual.
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3 comentários:
Tenho para mim que a "argumentação científica" do NÃO não visa debater uma ideia. Visa manter nebuloso um espaço. É um truque, uma manobra, uma desonestidade. Eles não o ouvem porque a função das sus palavras não é compatível com ouvir a ciência e pensar no que ela efectivamente diz.
Como diz, não voltará a este argumento. Acho que a campanha do SIM não devia voltar a este argumento, porque ficará a falar sozinha num assunto de difícil compreensão, e é isso que pretendem os partidários do NÃO.
Tem razão, Henrique, mas eu estava em situação difícil, como cientista, se ficasse calado. Por isto, comecei por esta qustão, para arrumar. A seguir irei ao que é sério.
E acho que começou muito bem, João.
Eu não tenho os seus conhecimentos científicos, não passo de um "amador" (no sentido daquele que ama) da ciência, mas estas coisas são claras como a água cristalina. Sob a perspectiva filosófica aconselho, se ainda não o fez, a visitar a série de 6 postas que afixei sob o título "Desmistificar fantasias".
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