Concluo esta série de notas sobre "porque voto SIM", agora tentando ir directamente ao centro da questão, o problema prático e real. No entanto, antes, quero rejeitar inteiramente qualquer interpretação abusiva do meu voto.
Ao votar SIM, não vou votar pela "liberalização" do aborto. Neste jogo de palavras em que o debate tem sido fértil, entendo liberalização como situação análoga à da pesca amadora, acto indiferente, socialmente nem aprovável nem reprovável, porque não é questão da sociedade. Pelo contrário, a pergunta que vou apoiar mantém o aborto como crime, apenas acrescenta mais uma situação de descriminalização específica às que já vigoram hoje.
Ao votar SIM, não vou votar pela banalização do aborto, nem acredito que a esmagadora maioria das mulheres confrontadas com esse drama permitissem essa banalização. Elas vão reservar para bem fundo do seu esquecimento essa experiência necessária, nunca ouvirei alguma a gabar-se publicamente de ter abortado.
Ao votar SIM, não vou votar pela utilização do aborto como método anticoncepcional de primeira linha e, mais uma vez, duvido de que alguém em seu perfeito juízo o considere como tal.
Nada disto está em causa. Se for chamado a um referendo (espero bem que não) sobre a legalização das drogas leves ou sobre a regulamentação pela positiva da prostituição, é óbvio que não estou a desejar que um filho meu se drogue ou que uma filha se prostitua. Votaria como cidadão, considerando apenas o que é que a realidade social implica em termos de ordenamento jurídico, e reservando para a esfera pessoal as minhas próprias opções, no concreto, obviamente estas condicionadas pelos meus valores éticos.
Por isto, embora seja afirmação surrealista, mas que alguns fanáticos merecem, ao votar SIM não vou votar pela obrigatoriedade do aborto, vou votar pela liberdade de escolha, contra a ditadura moral de parte da minha sociedade.
Ao votar SIM, vou votar, essencialmente, é contra o aborto clandestino, convencido de que esta proposta contribui decisivamente para o combate ao aborto clandestino. Entenda-se que não estou a pensar, como clandestinos, nos abortos das mulheres com posses que o vão fazer ao estrangeiro, em boas condições, antes na mulher carente que não tem recurso seno à "clínica" da cozinha de parteira dos subúrbios. É que também o aborto é matéria de discussão (e correcção) de desigualdades sociais.
O combate ao aborto clandestino tem dois aspectos relativamente distintos. Um é de natureza sócio-jurídico, outro é de ordem de saúde. Com a primeira referência, estou a pensar na atitude, que partilho, de repúdio pela humilhação e eventual condenação das mulheres que vão a tribunal (anote-se que nunca as que vão a Badajoz, bem protegidas pelo anonimato). No entanto, em termos objectivos e práticos, parece-me que foi demasiadamente salientado pelo "sim". Primeiro porque vai contra a enorme desproporção entre o problema médico (duas dezenas de milhar de mulheres, das quais talvez um quarto a necessitar de intervenção médica posterior) e o jurídico (uma dúzia). Depois, porque permitiu esta enorme confusão hipócrita de defensores do "não" que também não querem ver as mulheres no banco dos réus.
Ao falar de um problema de saúde, convém salientar que estou a entender saúde no seu sentido abrangente hoje consensual: um estado harmónico de bem-estar físico e psíquico (e até social). Se pensasse em saúde em termos convencionais, até poderia admitir que a lei actual é razoável embora muito deficientemente aplicada (admito que é factor que também venha a influenciar a lei agora a referendar).
O aborto é sempre agressivo, mas mais uma razão para que se minimize essa agressão, permitindo a sua prática em ambiente médico adequado, inclusive em termos de aconselhamento e posterior acompanhamento psicológico. No debate, tem sido muito mais discutida a questão das dez semanas do que a outra restrição: "em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
Este é um ponto crítico. Se não for nestas condições, se continuar a ser em "clínicas" infectas, se continuar a ser feito por "técnicas" que não arriscam anestesia que não sabem fazer e que o deixam incompleto para depois as mulheres terem de ir ao hospital desfeitas em hemorragia, continuará a ser crime e muito bem que continuará. Sem esta restrição à pergunta, certamente que eu votaria "não".
Pensar que o "sim" vai limitar o aborto clandestino é utópico? Claro que não. Haverá mulheres suficientemente estúpidas para preferirem as barbaridades de muitas abortadeiras ao aborto em unidades de saúde, ainda por cima, na maior parte dos casos por meios medicamentosos e não cirúrgicos? No entanto, admito uma limitação, para a qual tenho chamado repetidmente a atenção
À margem – sabem o que me ocorre ao ler muita coisa do lado do "não", no caso, largamente maioritário, de escritas masculinas? As mulheres portuguesas não mereciam os homens que tristemente têm. Homem, com rejeição total do machismo, é o que se maravilha com a especificidade feminina e disso dá o maior sinal, o respeito pela mulher. "Profumo di duonna!" Se calhar, neste referendo só deviam poder votar mulheres...
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