Arrumada, para mim, a discussão do aborto com recurso argumentativo à ciência, avanço para o nível seguinte, o jurídico. Com isto, passo a falar como leigo, apenas como alguém que pretende exercer o senso comum com inteligência. A minha primeira confusão é entre descriminalização e despenalização. Acho que a pergunta referendária devia ter usado o primeiro termo, para evitar a desonestidade intelectual com que os defensores do não se estão a apresentar como estranhos apoiantes da despenalização. Por isto, até à próxima, ponho-me ao escrever este texto na posição dura. O aborto, nas condições do referendo, deve ser crime ou não, independentemente do que acontece aos "criminosos"?
Imagino que haja milhares de páginas de teoria jurídica sobre a noção de crime. Coitado de mim, vou apenas pelo meu bom senso de Sancho Pança. Crime é tudo aquilo em que eu leso os outros, no respeito mútuo pelas liberdades individuais sobre as quais se constrói a sociedade. Crime é também, num plano superior, tudo o que lesa a segurança dessa sociedade, o golpe de estado, a traição, o abuso de poder. Depois, um campo difícil, o do atentado contra os valores civilizacionais, muitas vezes consagrados em documentos que configuram o património civilizacional comum de toda a humanidade.
Creio que o problema da valorização ética e jurídica do aborto cai nesta complicada terceira classe. É zona sedimentar muito dinâmica, em que só devemos ter por adquiridos os estratos bem consolidados. Não é só o aborto, é também o casamento de homossexuais, o seu direito à adopção, a legalização de drogas leves, a prostituição, a luta antitabágica.
Se há uma conquista indiscutível da mente humana é a sua abertura e flexibilidade. Perante problemas deste tipo, creio que a atitude obrigatória de cada homem é a de distinguir entre os que estão no debate de mente aberta e os que apenas exprimem uma visão estreita e dogmática. Não me interessa quem é que tem razão, mas creio que é minimamente exigível a quem quer entrar em qualquer discussão ter um atitude de bom senso e, essencialmente, de rigor intelectual. Neste jogo de futebol, uma equipa é de tipos que saltitam alegremente e a sorrir desportivamente, a outra é de uns pobres limitados em cadeiras de rodas. Vou poder fazer uma crítica racional ao jogo?
A vida humana é um valor indiscutível, nada pode ir contra ela (pena de morte, guerra?!). No entanto, não é um conceito que passe da religião ou da filosofia para o consenso. E a lei, os costumes, as regras da vida colectiva, esta coisa essencialmente humana que é o direito, mostram que o aborto não faz parte ainda do núcleo duro dos valores civilizacionais indiscutíveis. O infanticídio sim, são entre nós uns poucos casos aberrantes por ano. Mas o aborto é, provavelmente, praticado anualmente por cerca de 20.000 mulheres. Há vinte dezenas de milhar de portuguesas, mais os seus companheiros, que são, por natureza, criminosos?
A percepção de um crime está longe do nível em que ela significa uma condenação social forte. Segundo o que há dias escreveu Alexandre Quintanilha, no Público, "em Itália 74% é a favor do recurso à pílula do dia seguinte (RU-486) que impede a implantação do embrião e simula um aborto "natural". No México, dois terços da população urbana considera que o aborto deve ser permitido a pedido da mulher. Estas e muitas outras sondagens ajudam a perceber que no caso da IVG estamos numa área cinzenta em que para a grande maioria a vida do embrião tem um estatuto legal diferente e menos abrangente do que o da mãe.
Mas são precisamente estas áreas cinzentas que atraem os bioeticistas e que requerem a intervenção política. Sabendo que nos Estados Unidos, uma em cada três mulheres fez um aborto antes da idade dos 45 anos, mesmo que essa incidência em Portugal fosse muito inferior, provavelmente ainda teríamos centenas de milhares de portuguesas nas mesmas condições. Para muitas destas, principalmente as de menores recursos, a única solução é o aborto clandestino com tudo o que de inaceitável o acompanha." Onde é que há aqui um mínimo consenso ético, também noutros países?
Vale a pena também recordar um excerto de um artigo de André Freire (Público, 5.2.2007). "E o que é que explica as diferenças entre os países Europeus? Usei as percentagens de pessoas que vão regularmente à missa (isto é, pelo menos uma vez por mês) em cada país, segundo os dados do Estudo Europeu de Valores, e correlacionei-as com o tipo de legislação em cada país (codificada de 1, "a pedido da mulher", até 4, "só em caso de risco de vida da mulher"). Resultado: uma correlação positiva (isto é, quanto maior a integração no universo religioso enquadrado pela Igreja mais restritiva é a legislação) e muito forte (+0,785) (o valor mínimo é 0,0, o máximo é 1,0). Ou seja, as restrições em matéria de IVG traduzem fundamentalmente a influência de uma determinada cosmovisão de base religiosa veiculada pela Igreja, pois há hoje vários católicos (autónomos face à hierarquia) pela escolha. Tal visão tem que ser respeitada, claro! Mas, como argumentam os seus defensores, o "sim" é tolerante: quem não concordar com a despenalização nunca será obrigado a abortar. Pelo contrário, se ganhar o "não", mesmo os que não concordam com tal mundivisão de base religiosa serão obrigados a vergar-se aos seus ditames."
Fica aqui a minha questão fundamental. O direito é coisa metafísica, sumo da alma humana, ou é uma construção social, feita dia-a-dia? A minha conclusão parece-me simples: não está sedimentada na nossa cultura e na nossa civilização a ideia de que o aborto é um crime. Não é para dezenas de milhares de pessoas directamente envolvidas, fora as que as apoiam. Parece que é para outros tantos, os fanáticos do "não". Eu até, democrata, vou pelos votos, mas não em coisas desta seriedade, que não podem ser decididas em referendos torcedores da racionalidade. Tempo ao tempo, há coisas tão fundamentais na nossa vida social que têm de sedimentar com a sabedoria das camadas geológicas do planeta, esta Gea que também é viva.
Assim sendo, porque o aborto não se enquadra nas minhas outras categorias de crime (agressão ao outro ou à sociedade) e porque me é muito duvidoso que se enquadre na minha terceira categoria de crimes (contra os valores civilizacionais), não posso aceitar a ideia de que é crime, o que não impede que o discuta em outros planos, como virá a seguir.
Concluindo. Neste terreno ideologicamente indefinido do aborto, a imposição dogmática dos convictos do "não" é antidemocrática, intolerante, arrogante. O sim deixa inteira liberdade de consciência aos não. O não proíbe o sim. É total assimetria de atitude mental. Não aceito isto nos meus amigos. Por extensão, apesar de ter de os considerar como concidadãos, repugna-me que muitos portugueses pensem assim. Assim continuaremos em apagada e vil tristeza. Assim, os nossos entardeceres serão de uma tal soturnidade. Assim, merecemos a decadência dos povos peninsulares (que surpresa teria Antero ao ver hoje a Espanha). Assim, não há vontade nenhuma que nos ate ao leme.
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1 comentário:
E a mim, também me repugna que tantos seguidores de uma crença igual à minha não se coíbam de violentar fraudulentamente as consciências dos mais simples.
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