21 junho, 2007

Nota gastronómica (XI)

Dos Açores: peixe recheado

Pediu-me Luís Vaz (o leitor deste blogue, não o outro) que publique a receita da garoupa recheada de que falei. É uma forma açoriana de preparar peixe, em peça, que não conheço em nenhuma outra cozinha tradicional. No entanto, não é a mais vulgar, na grande variedade de receitas açorianas de peixes assados, a maioria das quais muito diferentes da do peixe assado mais comum no continente. Usa-se muito a cavala e também um peixe semelhante mas maior, a serra, bem como a bicuda (uma espécie de barracuda muito mais pequena e saborosa) e até o pargo ou qualquer outro peixe rijo.

As receitas têm variantes, de ilha para ilha e de família para família, com maior ou menor complexidade e riqueza de confecção. Esta, não propriamente popular, é a da garoupa, tal como fui habituado a comer em miúdo, segundo receita de origem materna, do meu lado terceirense. Infelizmente, não tenho registo escrito dela. Esta versão resulta de lembranças comuns entre irmãos e de indicações da minha mãe, embora a grande senhora da cozinha familiar fosse a minha avó, com segredos às vezes de recuperação difícil.
Para 4 pessoas. 1 garoupa de cerca de 2 Kg, arranjada e escamada mas reservando o fígado, 2 dentes de alho, 1/2 copo de vinho branco, sal, pimenta branca e sumo de meio limão. Para o recheio, uma cabeça de peixe, 4 cs de azeite, 1 cs de banha, uma cebola, 2 dentes de alho, vinagre ou sumo de limão, um pão grande, 4 ovos, um ramo de salsa, sal, pimenta branca e 15-20 azeitonas pretas.
Abrir o peixe pelo lado ventral e remover a espinha, separando os lombos até quase ao rabo, mas mantendo-os ligados pela barbatana dorsal. Dar uns golpes ao peixe e esfregar por dentro e por fora com sal, alho picado, pimenta branca e sumo de limão. Às vezes, mais à pressa e no dia-a-dia, limitava-se a manter o peixe em peça e rechear só o bucho.
Preparar o recheio refogando ligeiramente, no azeite com a banha, a cebola e o alho picados miúdo e, ao começar a alourar, juntar o fígado do peixe e um bom gole de vinagre ou sumo de limão. Entretanto, ter já cozido só com sal e pimenta a cabeça do outro peixe. Voltear no refogado a carne bem desfiada desta cabeça. Fora do lume, juntar uma mistura de miolo esfarelado de um pão grande, só ligeiramente humedecido algum tempo antes em caldo do peixe e depois bem espremido, os ovos mexidos, a salsa picada, sal e pimenta branca e as azeitonas pretas descaroçadas e cortadas em rodelas grossas. Mexer muito bem e voltar a aquecer, a lume médio-alto, mexendo sempre, até a mistura estar muito grossa e quase seca, a deixar uma película tostada no fundo do tacho. Rechear o peixe, atá-lo para se manter fechado e levar a assar ao forno, com o peixe coberto com manteiga e regado com o vinho branco.

Notas – 1. Em S. Miguel, como não podia deixar de ser, a receita mais vulgar deste recheio, e mais simples (sem a carne da cabeça de peixe e sem o requinte do arranjar os lombos do peixe), leva massa de malagueta. Também há quem use pão de milho em vez do de trigo. Também conheço uma receita micaelense em que o peixe é deixado a marinar numa vinha d'alhos.

2. À boa maneira açoriana, não conheço nenhum uso vulgar de acompanhamento, a não ser o próprio recheio. Na minha casa, antes de servir, cortava-se às fatias, de forma a ver-se, em conjunto, peixe e recheio. Regava-se com um molho apurado, feito de caldo e de molho de assar, ligeiramente engrossado. Mas isto também tem a ver com a tradição familiar de ser apenas um entremês, em dia de festa, assim dispensando acompanhamento. Como enfeite, apenas um mini-raminho de salsa. Dizem-me, mas já não me lembro, que também se usava às vezes lá em casa um molho de tomate.

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