Ainda não vi reflexos na nossa imprensa de uma polémica que anda a agitar os meios académicos britânicos, com grande impacto nos jornais, a proposta de boicote académico a Israel. Começou por uma iniciativa sem muito significado, do sindicato de professores universitários, mas agora está acesa. A ideia é a de suspender qualquer contacto ou colaboração com as universidades israelitas e os seus professores, como protesto contra um seu alegado silêncio, objectivamente cumplicidade, em relação à ocupação dos territórios palestinianos. Como razão mais imediata, a crescente dificuldade de estudantes palestinianos da faixa de Gaza em passarem para o lado israelita para frequentarem as universidades.
Começo por dizer, categoricamente, que tenho a maior simpatia pela causa palestiniana, mas esta proposta de boicote suscita-me muitas dúvidas.
Começa, muito pragmaticamente, por eu ter grandes reservas em relação à eficácia dos boicotes. Misturando coisas muito diferentes, mas para alargar o exemplo, o boicote aos jogos olímpicos de Moscovo impediu que eles tivessem sido coisa grandiosa? Foi o boicote ao regime do apartheid que libertou Mandela? O que é que os EUA já conseguiram com o boicote a Cuba?
Também não esqueço que não estou a falar de qualquer boicote. Não é um boicote a relações comerciais, à instalação de empresas, claro que não à venda de armas. É um boicote a qualquer coisa que, seja eu ingénuo, devia estar imune a qualquer divisão entre os homens: a cultura, a ciência, as raízes do pensamento, "que não há machado que corte", nem mesmo o mais bem intencionado dos boicotes.
Mais ainda, um boicote pode ser mais nocivo do que benéfico. É um efeito perverso, aceitando-se as suas boas intenções. Neste aspecto, eu e muitos colegas temos razão para falar, vítimas que fomos também de variados boicotes, durante o fascismo. Quando precisávamos de todas as possibilidades de contacto com o estrangeiro que a nossa profissão privilegiada permitia, eram os outros a fecharem as portas. A PIDE até se ria. E todos nos lembramos de como os poucos contactos que lá estabelecíamos eram importantes para levarmos informação sobre o que se passava cá e para angariarmos apoios. Pouco antes do 25 de Abril, houve um caso de repressão em que eu consegui que muitos cientistas estrangeiros mandassem cartas de protesto. Como é que eu teria conseguido isto (e muitos casos semelhantes podem contar colegas meus) se um boicote me tivesse impedido de estabelecer durante anos essas relações de solidariedade?
Isto leva-me à última questão, que está a ser levantada por alguns académicos árabes, a de que se aceita o argumento que apresentei, mas que não é relevante porque são casos raros e não representativos da situação geral das universidades israelitas, o que acabaria por ser uma absolvição da maioria silenciosa. Destrói-se a capacidade de acção dos extraordinários só porque são minoritários? Veja-se, por exemplo, que, há algumas semanas, foi publicado em Israel um manifesto contra as restrições aos estudantes palestinianos que era assinado, à cabeça, pelos reitores das universidades Hebraica de Jerusalém, Ben Gurion, de Haifa e Technion, para além de intelectuais destacados como Amos Oz, Ab Yehoshua e David Grossman. Gente desta, que dá a cara corajosamente, merece não ser convidada para uma reunião científica em Inglaterra?
E, já agora, são maioritários os académicos árabes ou iranianos que lutam (e há os que lutam) contra coisas igualmente graves que se passam nos seus países, inclusive no plano académico, como a intolerância e o irracionalismo fanático, a discriminação de sexos, a censura, as ameaças de condenação por espionagem em virtude das colaborações internacionais?
Nota – Tudo isto é tristemente irónico, se nos lembramos que o motivo imediato foi a situação da faixa de Gaza, que agora foi palco da mais estúpida actuação suicida que os palestinianos podiam ter, para grande gozo de Israel. Não há coisa mais parva do que o "tiro no pé".
18 junho, 2007
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3 comentários:
"Foi o boicote ao regime do apartheid que libertou Mandela?"
Não, mas ajudou. Tanto quanto sei a asfixia económica que a África do Sul enfrenteu, em particular no decurso da década de 80 e início dos anos 90, fez com no regime sul-africano começassem a surgir vozes dissidentes que advogavam uma mudança de política. É neste contexto que surgem os primeiros contactos com Nelson Mandela, ainda no tempo de Pieter Botha. Quando Frederik de Klerk assumiu o poder a situação económica era muito frágil e a queda do muro de Berlim precipitou os acontecimentos.
Isto não invalida que considere o boicote que refere como um perfeito disparate, ainda por cima numa altura em que, mais do que nunca, é necessário preservar os laços com os palestianos à beira de uma guerra civil.
Caro João:
Totalmente de acordo.
A inspiração mais funda do chamado espírito de Bolonha é a teia das Universidades do final da Idade Média, quando os lentes se correspondiam em latim e mantinham relações cordiais, indiferentes ao facto dos seus respectivos países/soberanos estarem em guerra.
Não estou perfeitamente dentro deste assunto de Israel, mas lembro quanto a comunidade científica internacional ajudou à sobrevivência de cientistas (e não só)portugueses que ousaram afrontar o regime.
Mas admito que estas coisas são complexas. Imaginemos quee xiste por parte do mundo universitário israelita um boicote de acesso a correspondentes palestinianos!... Nestas condições, justificar-se-ia mostrar-lhes que os boicotes também lhes podiam chegar à porta?... Forçá-los a não marginalizar o mundo palestiniano, sob pena de virem a ser, eles próprios, marginalizados?...
Eu, pessoalmente, para definir uma posição com convicção teria de saber mais pormenores sobre o que se passa.
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