14 maio, 2007

Nota gastronómica (I)

Conselhos bizarros

Há vinhos brancos que desafiam qualquer escanção, quando tem de aconselhar o seu uso com determinado prato. São vinhos com personalidade muito forte, até com sabores mais comuns em vinhos tintos, com risco de abafar (ou se deixarem banalizar) um peixe relativamente vulgar. Como já aqui disse do excelente Donatário, dos Biscoitos, ou como quando, raramente, consigo um Dorin-Dézaley suíço, do Vaud, acabo por preferir bebê-los sozinhos, ao fim da tarde, com queijos.

Outros exemplos, todos de brancos fermentados em madeira, são o Vinha Formal (Luís Pato), o novo Esporão Private Selection 2006 e o extraordinário e único Vindima de 7 de Outubro de 2003 Quinta do Monte d'Oiro, um vinho que talvez José Bento dos Santos nunca mais seja capaz de reproduzir. Bebo-os com peixes especiais, como o salmonete, com o meu consomê muito suave de marisco, a dar-lhe vigor (isto é, ao contrário, é a sopa a acompanhar o vinho), ou com marisco grande cozido ou grelhado, simples.

Refiro estes três brancos porque, hoje (12.5.2007), vi-os aconselhados como acompanhantes de um banalíssimo bacalhau assado com batatas, em azeite temperado com alho. Garanto que era estritamente isto. Ainda por cima, podia falar de preços, mas não me quero desviar do essencial, que é o bom gosto mínimo. Há gente nos jornais a brincar com o pagode.

Isto foi escrito no Sábado 12 e ia ficar por aqui. Para não me julgarem sempre agressivo, até ia omitir a identificação da noticia, mas há quem abuse da nossa paciência. Ontem, no mesmo local do mesmo jornal, lá vem outra receita de grande novidade, com sugestão de vinhos. Ervilhas guisadas com presunto e ovo escalfado, coisa de grande requinte, exactamente à maneira tradicional, mas a merecer um tinto com uns 10 anos "que tenham em casa", seja um Duas Quintas reserva (um vinho mais que premiado), um Quinta do Monte d'Oiro ou um Luís Pato Vinha Barrosa.

Nisto, há uma coisa acertada: "que tenham em casa". De facto, ervilhas guisadas só com o "vinho da casa"! Mas chamar a esses vinhos "os da casa" que vão com ervilhas de tasca é coisa que causará um enfarto a qualquer daqueles grandes enólogos, João Nicolau de Almeida, José Bento dos Santos e Luís Pato. É que há algumas publicidades venenosas.

Prevejo algumas próximas sugestões. Cozido à portuguesa com Barca Velha; pataniscas de bacalhau com um Murganheira Reserva bruto; e, para uma nota internacional, "filete de ternera en su suco" das cafeterias da Gran Via, com Vega Sicilia. Bacalhau com natas, aquele dos "catterings" medíocres, cheira logo a cozinha francesa e chama obviamente um Chateau Lafite!

E, com isto, deixa de se justificar o meu anunciado recato. Estas pérolas aparecem numa secção, Ficar, do caderno P2 do Público e são da lavra de um jornalista e crítico gastronómico que me habituei a respeitar: David Lopes Ramos. O homem passou-se! É a coisa mais caridosa que me ocorre escrever.

P. S. - Não percebi se DLR está a publicar receitas suas se apenas a transcrever coisas do mais banal património gastronómico comum. Era bom que esclarecesse.

À margem - Também sábado, na revista do Expresso, Pedro Marques propõe uma receita de salmonetes recheados com amêijoas, mexilhões e percebes, salteados (ou refogados, já que a receita inclui cebola?), com puré de ervilhas. Pode ser questão de gosto pessoal meu, mas duvido que seja assim que este chefe deva apreciar mesmo e saber valorizar o sabor ímpar do salmonete.

4 comentários:

M.C.R. disse...

ai João esses vinhos são mesmo de fazer crecer água na boca ao mais abstémio.
Tens toda a razão: um bom vinho requer um bom prato.
Um bom cozido requer um vinho que se beba e pronto. Até é uma tolice agarrar num prato destes, e pespegar-lhe em cima um vinho caríssimo tanto mais que, pelo menos eu, as pessoas dão-lhe forte e feio no cozidinho. E se ele for a sério qualquer tinto honrado de supermercado faz a festa.

Anónimo disse...

Não sei se o comentário é agressivo mas será pelo menos desonesto. Manipula o texto de DLR para melhor se adaptar à tese pretendida, sabendo que remeniscências despertam a desgraçada expressão «vinho da casa».
O que DLR escreveu foi: «"Veja se tem esquecida ou seja, bem guardada, uma garrafa de um tinto com uns 10 anos, pode ser um Duas Quintas Reserva de João Nicolau de Almeida, um Quinta do Monte d'Oiro de José Bento dos Santos, um Vinha Barrosa de Luis Pato, decante-a umas duas horas antes da refeição e regale-se".
Um tudo nada diferente, convenhamos.
Já quanto à essência da questão, a harmonização do prato - ervilhas com presunto - e os vinhos, cada um escolhe o que gosta. Não me parece é que o autor do blog queira agora ser um tirano do gosto, definindo o que deve ou não ser harmonizado. Por mim talvez não fosse abrir o Duas Quintas Reserva, mas que o doce das ervilhas e o salgado do presunto é um assunto difícil de conjugar, lá isso é e percebo que a subtileza de um vinho velho possa ser uma solução e um vinho velho tem que ser bom ou .... já era.
Para terminar, considero um disparate essa de dizer que com cozido qualquer tinto marcha: perdoai-lhes Senhor, que eles não sabem o que dizem!

JVC disse...

jgr, não sou nada tirano, acredite, até tenho boa capacidade de negociador. Aqui vai um exemplo de negociação que proponho. Faça um dia destes, como sugeri, uma paella acompanhada com Vega Sicilia. O negócio que proponho é que me convide, ficando V. com toda a paella e eu com toda a garrafa.

JVC disse...

Na resposta anterior, esqueci-me da questão do vinho com o cozido. jgr acusou-me de manipulação de texto, mas fez o mesmo com o comentário do meu amigo mcr. Ele não fala, em relação ao cozido, de um vinho a martelo ou em pacote de plástico, fala de "um tinto honrado de supermercado". É difícil perceber-se o que isto é?

jgr, da próxima vez que abrir um Barca Velha (ou até um Ferreirinha Reserva Especial) para acompanhar o seu cozido, espero que não gaste todo o vinho e me mande o resto da garrafa.