01 maio, 2007

Já nem tudo é uma choldra

Quando se poderia esperar que a nota inaugural fosse coisa séria, fará rir um pouco, mas riso significativamente positivo, a fazer-nos pensar que o nosso hábito, tão frequente, de ainda invocar o Eça (tudo isto continua uma choldra) deve ser moderado.

É verdade que me lembrei disto ao reler um apontamento de há algum tempo e que não dá nenhuma boa ideia da educação superior. É uma notícia da Lusa, de 12.10.2006:
«A redução do tempo dos cursos do ensino superior devido à sua adequação ao processo de Bolonha poderá pôr em causa a sobrevivência de muitas tunas académicas do país, alertou hoje um membro da Infantuna, de Viseu. João Paulo Sousa, que está responsável pela organização do IV Encontro Nacional de Tunos - a realizar em Viseu, disse à Agência Lusa que este é "um dos problemas mais graves" que vivem actualmente as tunas. "As pessoas vão passar menos tempo nas universidades, há a pressão do mercado de trabalho e aquilo que vão prejudicar são as actividades extracurriculares", lamentou. A proximidade que as tunas têm com o público é considerado um dos principais factores para a grande receptividade que tiveram e ainda têm, bem como o seu tipo de música que, "embora tendencialmente mais elaborada que os congéneres grupos de expressão popular, ainda assim é facilmente perceptível", refere uma nota da organização. "Ainda por cima quando embrulhada com algumas brincadeiras juvenis de cariz cómico, sarcástico e burlesco, provocando serões de descontracção e alegria comummente bem aceites, contactos directos com uma pedinchice inteligente e bem tolerada, ou surpresa de folgazã e romântica serenata a horas e em locais inesperados, normalmente para gáudio de vizinhos e transeuntes e preocupação dos progenitores da(s) visada(s)", acrescenta.»
É claro que isto é coisa aberrante na nossa educação superior de hoje. Ela tem muita coisa de má, mas não tanto. E, muito menos nem tanto como, voltando ao Eça, a descrição memorável do conselheiro Acácio.
Escolheu então, «como mais própria para dar ideia da importância do trabalho», a página relativa a Coimbra. Assoou-se, colocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
- «Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés. segredando-lhe de amor, o saudoso Mondego. E em seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canoras soltam. seus melancólicos trilos. Quando vos aproximais pela estrada de Lisboa, onde outrora uma bem organizada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou à fumegante locomotiva, vêde-la branquejando, coroada do edifício imponente da Universidade, asilo da sabedoria. Lá campeia a torre com o sino, que em sua folgazã linguagem a mocidade estudiosa chama a cabra. Para além logo uma copada árvore vos atrai as vistas: é a celebrada árvore dos Dórias. que dilata seus seculares ramos no jardim de um dos membros desta respeitável família. E avistais logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte, em seus inocentes recreios, os briosos moços, esperança da pátria, ou requebrando galanteios com as ternas camponesas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo em suas mentes os problemas mais árduos de seus bem elaborados compêndios».
Esta nota faz-me pensar numa crítica de um prezado amigo a um diapositivo que uso com frequência nas minhas apresentações:
Em Portugal?
Os jovens diplomados:
- formação cultural fraca
- dificuldades de elaboração mental e de espírito crítico
- dificuldades de comunicação
- reduzida capacidade de iniciativa e inovação
- falta de ética do estudo e do esforço
- falta de empreendedorismo (objectivo emprego)
É verdade em muitos casos, diz o meu amigo, não em muitos outros. O que é necessário é definir uma tendência geral, uma dominante, e é discutível, admito, que ainda seja a que mostro no diapositivo. Aqui fica o que julgo ser um bom tema para discussão.

P. S., 2.5.2007 - Nem de propósito. Marçal Grilo escreve hoje no Público um artigo de opinião só disponível online a assinantes), "Apetece-me dizer bem", com a qualidade que é sua imagem de marca. São 31 parágrafos, sempre a começar por "apetece-me dizer bem" e abordando os mais diversos aspectos do Portugal de hoje.

Vale a pena atentar numa espécie de conclusão: "Por tudo isto e por muitas outras coisas que podia igualmente enumerar, apetece-me dizer bem! E isto apesar de eu saber que há corrupção, incompetência, desleixo, falta de planeamento, gente sem qualificações em lugares onde não devia estar e muitos outros "pecados" que nos afectam e nos penalizam. Penso, no entanto, que chegou o tempo de dar esperança às pessoas e de dizer que é "possível" fazer avançar e fazer progredir o país porque os exemplos estão aí a mostrar que tudo é possível desde que nos convençamos de que é preciso estudo e trabalho e fazer muito esforço e por vezes muitos sacrifícios para atingir os objectivos desejados."

1 comentário:

Anónimo disse...

Agradeço-lhe a deferência da resposta, dando também pela minha parte o assunto por encerrado.
Porém, e telegraficamente, uma vez ser o tempo um factor a ambos precioso, permito-me adendar os seguintes pontos:
1- Tenho 41 anos tendo-me licenciado pela FDUC ao 23, exercendo a actividade de Advogado na cidade de Viseu;
2- Tal facto não me impediu ter ter sido um membro activo da AAC enquanto elemento da Estudantina Universitária de Coimbra e de um grupo de fados ainda em actividade e que acaba de lançar um disco de originais e que, conjuntamente com o resto da vida académica vivida me formou tanto ou mais que o "canudo".
3- Quanto à questão das Tunas e de Bolonha, apenas o seguinte, no contexto em que fui ouvido pela Lusa: uma das críticas que este tipo de grupos têm com maior frequência tem a ver precisamente com os desmandos comportamentais (que em boa verdade até são algumas vezes verdadeiros) causando má imagem do estudante e do universitário, em particular. Ora, as declarações que questiona tinham precisamente a ver com o seguinte facto: A Tuna é um fenómeno com centenas de anos de existência (há quem retrotraia o fenómeno aos Séc. XIII ou XIV). E, ao contrário do que é comunmente pensado, tem um protocolo muito próprio e, também aí, um processo de aprendizagem (e consequente ascensão dentro da escala hierárquica existente) que não pode ser comprimido sob pena de má formação das pessoas para o "mester" em causa. E é essa compressão forçada, somada a alguma ignorância da história do fenómeno, que provoca a esmagadora maioria desses desmandos.
4- Longe de mim, pois, questionar Bolonha por causa das Tunas. Nem questiono uma nem as outras. Apenas quis transmitir que em função da reforma de Bolonha e no caso da maioria das pessoas não prosseguir pelo menos até aos cinco anos de frequência na Universidade não só as tunas não conseguirão proceder ao recrutamento de elementos que permitam o prosseguimento da sua actividade de forma conveniente, como, não sendo possível a estabilização mínima desses elementos no seu seio, correm um sério risco de extinção.
5- Ah, e estamos a falar dum universo que rondará actualmente cerca de 10.000 actuais e antigos estudantes. Entre masculinas, femininas e mistas rondarão os 300 os grupos actualmente em actividade.
5- E quer se queira quer não, também essa formação complementar é essencial à boa formação de homens e mulheres, pois acho que deve concordar que se existir uma boa formação técnica dos quadros que se pretendem superiores não acompanhada por igual formação humana, estamos conversados quanto aos resultados que daí resultarão...

E é tudo, acho, por agora.
Perdoe o incómodo e o tempo perdido comigo
Os meus melhores cumprimentos
João Paulo Sousa
25.07.2007