02 julho, 2007

Escorregadelas de uma jornalista

Os jornalistas são especialistas em tudo. Há um domínio em que isto é inegável, porque é aquele em que todos nós temos de ser especialistas, o da política, da vida comunitária, da cidadania. Neste, é normalmente com muito agrado que leio as crónicas políticas semanais de São José Almeida (SJA), no Público. No último Sábado, escreve "Que modelo de universidade?" e aventura-se, sem dominar bem a matéria, por assunto que, sendo obviamente politico, é também muito mais. Claro que a escrita e a qualidade do raciocínio se ressentem.

Comecemos pela epígrafe. "A universidade deve estar sujeita ao critério da verdade na procura do conhecimento e não da sua utilização utilitarista". Muito bem, mas há alguém que discorde, salvo os gurus do "economicismo" primário? E nem tudo, ou mesmo muito pouco, do que SJA escreve a seguir é a única visão possível da concretização desse princípio.
"Muita da contestação que tem sido feita é contra a fragmentação da universidade que passa a ser possível, ou seja, as faculdades passam a poder autonomizar-se das respectivas universidades. Uma solução que adopta a lógica anglo-saxónica e entra em contradição com o modelo de universidade europeia a que obedece a concepção de universidade portuguesa."
Já critiquei esta possibilidade de autonomização tão descontrolada, mas não consigo perceber em que é que ela adopta a lógica anglo-saxónica. Gostava que SJA me desse um exemplo de um departamento ou escola de Harvard ou Cambridge que se tenha autonomizado da sua universidade. Desconfio que está a pensar no MIT, apenas por causa do nome, quetalvez lhe ecoque o nosso IST, mas desconhecendo que sempre foi o MIT e que é uma verdadeira universidade, muito para além das engenharias. Também não vale vir-me com o exemplo recente do Imperial College, porque a chamada Universidade de Londres é uma manta de retalhos, com fraca coesão institucional.
"(...) pela criação de um conselho geral, que passa a concentrar também um enorme poder e se substitui ao poder de decisão da assembleia e do senado universitários."
Grande confusão. É verdade que o novo CG passa a ter os poderes essenciais da actual assembleia: aprovar os estatutos e eleger o reitor. Começo por lembrar que a eleição para a assembleia é a coisa menos motivadora nas universidades, que muitas vezes é necessário ir pescar à linha os candidatos e que, quanto aos estudantes e funcionários, é exemplo frequente de jogos partidários ou sindicais. Com tudo isto, tanto pode haver excelentes reitores como fracos eleitos, comprometidos com os interesses dos seus eleitores. Quanto à qualidade normativa e formal da mioria dos estatutos, é melhor nem falar. Anote-se ainda que muitos defensores da eleição do reitor pretendem é a eleição universal, não pela assembleia. Olhem só para os efeitos que isto teve aqui ao lado, na Espanha.

No que respeita ao senado, SJA escreve uma total invenção sua ou bebida não sei onde: não há uma única competência actual do senado que tenha passado para o CG. Para o reitor sim, e isto também eu critico, concordando com SJA, como poder desmesurado do reitor. No entanto, é curioso que eu ainda não tenha lido uma única critica de dentro da universidade, muito menos do CRUP, sobre este exagerado poder dos reitores. É que os académicos (e eu também) sabem bem como dar a volta a isso e transformar esta proposta de lei em presente envenenado aos reitores. Porque é que os reitores querem ser "legitimados" por uma eleição? Não se pense que é para terem força externa, é muito mais para efeitos internos, a meu ver.
"É que este conselho geral passará a eleger um reitor através de uma espécie de concurso público, a que podem concorrer personalidades que não integram o corpo docente da universidade em causa. Esta medida aponta para mais uma introdução de um factor exógeno à escola na sua gestão, o qual tem por detrás uma clara concepção ideológica neoliberal. Reafirme-se que é bom a interacção com o meio, mas a ideia é surpreendente pelo que ela mostra do modelo de universidade que se pretende. E um concurso público para reitor só tem como referência a forma como as empresas escolhem os seus gestores."
Novo equívoco de SJA (e de muita gente, até os reitores). O processo de "search and select" não tem nada a ver com um concurso de carreira. Começa por haver uma procura muito activa de bons candidatos. Depois, é essencial a apresentação e discussão aprofundada de dois documentos clássicos, a carta de motivação e o programa. Finalmente, a entrevista é baseada essencialmente na visão estratégica dos candidatos. Eu já passei por isto, cá e no estrangeiro, e sei o que é de exigente.

Depois, embora este processo seja vulgar nas empresas, mas não há tanto tempo como isto, a "corporate governance" tem regras que são comuns a qualquer organização. Neste caso, para não falar nas universidades americanas, são todas as universidades do norte e centro da Europa, excluindo-se - ainda, masaté quando? - as do sul da Europa. E o que é que isto tem a ver com "uma clara concepção ideológica neoliberal"? Ler isto é coisa que lamento, porque não estou habituado a ver SJA usar chavões tão demagógicos e irracionais.
"Os efeitos de Bolonha na universidade portuguesa já se notam - o número e a diversidade dos cursos e mestrados já diminuíram."
SJA, como é que pode escrever coisa tão disparatada? Efeito de Bolonha?! Explique lá, se faz o favor.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tudo quanto tenha ocorrido na Universidade, nos últimos dois anos, na voz corrente, é um efeito de Bolonha.

Família Araújo disse...

Concordo com os seus reparos a SJA. Ela devia fazer mais como eu. Falo mais consigo antes de escrever alguns artigos. Mas acredite que a exigência que impende sobre o jornalista é grande. Somos candidatos a especialista em várias áreas. A solução é ter empenho na aprendizagem das matérias e humildade de escutar quem é verdadeiramente especialista.

Pedro A.