28 janeiro, 2007

A base da nossa civilização (?)

O último Expresso traz um artigo interessante, "Manuais com erros e preconceitos", sobre alusões imprecisas ou mesmo erróneas a religiões em manuais do ensino básico e secundário. O artigo destaca algumas pérolas de rigor e de abertura intelectual. "Exercício. Actualizar a figura do judeu de Gil Vicente sob a forma de um israelita fanático que participa em acções terroristas contra palestinianos". Sem comentários!

A propósito disto, escreve Esther Mucznik que a cultura judaico-cristã é a base da nossa civilização. Não me parece correcto. A nossa civilização (nossa, de quem?) fez-se também ao longo de milénio e meio (estou a datá-la, esquematicamente, no fim do império romano), de múltiplas influências extra-europeias, melhor dito extra-mediterrânicas, com destaque para a cultura islâmica dos tempos de ouro e para os contributos orientais que em boa parte fomos nós, portugueses, que transportámos.

Claro que isto é acessório e pensemos no essencial, ainda contra a afirmação da articulista. A nossa civilização não tem só uma base, a cultura judaico-cristã. Tem duas, porque essa liga-se estreitamente à cultura (melhor, civilização) greco-romana. Aliás é difícil, por isto, definir exactamente o que é a cultura judaico-cristã. A do Talmud e dos Evangelhos sinópticos? A do helenismo de João, o evangelista do logos? A da síntese de Paulo, na mensagem para judeus e "gentios"?

Esther Mucznik, por razões compreensíveis, parece-me incorrer no vício da sobrevalorização da religião, embora eu aceite que dela decorre, em grande parte, o código moral. Uma civilização é muito mais do que isso. É a filosofia, os mitos literários, a organização política, a ciência, a tecnologia. Nestes domínios, creio que a nossa civilização deve muito pouco à herança judaica, mas essencialmente à greco-romana.

Pessoalmente, a voltar ao passado, gostaria muito mais de reaparecer na Ágora ou no Forum do que no templo de Jerusalém.

2 comentários:

J.P. Cravino disse...

Como gostava de ter sido eu a escrever este apontamento! Totalmente de acordo, principalmente no que respeita à sobrevalorização da religião na discussão das heranças culturais.

Aliás, é um problema essencial também quando se tenta explorar as raízes da (duma?) cultura europeia.

Sem dúvida, a Grécia ou Roma antigas...

M.C.R. disse...

A drª Esther Muznick é incansável! Deveria porém lembrar-se de alguns pontos intranscendentes: a cultura judaica foi difundida em grego (biblia incluída) e não em hebaico ou aramaico. Daí talvez poder pensar-se que ela seria apenas uma das componentes do complexo grego da altura. A cultura judaica só teve eco no Ocidente (via grego) por causa das seitas cristãs que tendo origem judaica são claramente a sua negação religiosa, política e moral. O cristianismo é uma religião de missionarios ao contrário do judaísmo que nunca saiu do povo eleito e não queria espandir-se.
Todavia mesmo concedendo ao cristianismo um firte cunho judaico ninguém pode impunebtemente negar o fortíssimo elo romano e grego na cultura europeia. Foram os romanos que criaram a europa mesmo que, como é verdade, se alimentassem muito da tradição grega.
convenhamos que também o apport muçulmano me deixa muitas dúvidas. É verdade que andaram por cá, que traduziram muitos gregos que só assim chegaram ao nosso conhecimento mas de facto penso que invocar uma herança muçulmana é capaz de ser perigoso. O Islão foi firmemente combatido pelos europeus que começaram por ter de se defender deles (Carlos Martel Poitiers) e que depois com as cruzadas trsansformou os dois blocos em inimigos que mesmo comerciando nunca se entrenderam e pouco se influenciaram.
Mas se aceitarmos que houve influencia muçulmana no Ocidente quue dizer da influencia europeia no Oriente muçulmano nomeadamente a partir do seculo XIX? E não é por isso que se afirma que o Ocidente influenciou a covilização árabe...
Claro que há gente para tudo mesmo para jurar a pés juntos que temos um forte legado islâmico. Não temos como também não temos coisa que se veja de outras culturas com que nos cruzámos (China, Japão ou Índia)
Outra coisa será falar de uma velha e comum herança mediterrânica de que o vinho e o azeite seriam dois enormes produtos Mas isso é recuar pmais uns milhares de anos, não?