Numa nota recente, declarei-me não crente. Mais genuinamente, ao falar arcaico das minhas ilhas, talvez passe a escrever incréu. Mas porque não escrevi ateu ou agnóstico, coisas mais correntes e a dispensar duas palavras? Na minha mistura de formação científica e de gosto humanístico, lido com as palavras com alguma complexidade. Do lado científico, o rigor, do lado humanístico, a carga afectiva.
Ateu é bom exemplo. Cientificamente, com o significado óbvio de (a =) sem um (theos =) deus, é-me perfeitamente aceitável como caracterização pessoal, o "sem" é neutro, não é nem pró nem contra. No entanto, eu literato não gosto, porque o termo está muito conotado com proselitismo de sentido contrário, que não perfilho. Ateu, em muitos casos, melhor seria dito antiteu, coisa que não sou. Vivo perfeitamente sem a necessidade da existência de um deus, vivo até melhor, porque toda a minha filosofia e ética não têm a desculpa de qualquer misericórdia ou perdão divino, o que me torna muito mais exigente comigo mesmo mas também, quando o consigo, muito mais feliz do que se estivesse a responder a um deus, como menino de escola. Mas como posso ser ateu, no sentido vulgar de quem sabe sem margem para dúvidas de que não há um deus? Não posso provar isso, muito menos combater quem crê.
Neste sentido, devia declarar-me agnóstico. Cientificamente, indiscutível. Tudo o que fica para além da minha capacidade de conhecimento racional entra na bruma da incerteza agnóstica. Sou agnóstico em relação a uma eventual crença num outro universo, paralelo ao nosso. Sou agnóstico em relação a uma civilização que habita uma bolha no interior da Lua. Sou agnóstico em relação à consciência do "eu" do meu gato. Mas vem o humanista dizer-me a mim próprio que não gosta do termo porque, apesar de perfeitamente entendível por quem tem formação científica e mentalidade racional, a sua conotação é um pouco pejorativa, a de uma pessoa que não tem coragem para se declarar ateu.
Por tudo isto, tratem-me de incréu (ou "não crente", como escrevi). Mesmo assim, com alguma nuance, porque, de certa forma, existe um deus. Existem as línguas, existem as culturas, existem as morais, existem os amores e os ódios, existem paixões e compaixões, existem grandezas e misérias humanas. Então não existe também, na mente, na afectividade, na humanidade individual de milhões de pessoas, o seu deus, embora com variados retratos? Nada do que é humano nos pode ser estranho. Todos os homens são nossos irmãos. Se os meus irmãos têm um pai deus, eu não sou obrigado a aceitar que também seja meu pai, mas, digamos, tenho de admitir que é meu tio.
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2 comentários:
Cheguei aqui através do João Tunes, (Água Lisa)
Gostei deste texto.
Há tempos citei um autor espanhol que escreveu sobre O Deus/não-Deus dos Ateus
Acho que vai gostar de ler (se calhar já conhece...)
Excelente posta, "primo" João.
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