10 janeiro, 2007

Aborto: viver nas nuvens?

Em artigo recente, no Público ("Liberdade para não abortar", 4.1.2007), Eurico Figueiredo defende a tese de que não há necessidade de despenalizar o aborto, porque a actual lei é uma boa lei, como se prova, por analogia, com o êxito da lei espanhola, muito semelhante. Dito assim, ninguém o levaria a sério, mas é preciso acentuar que EF propõe uma coisa bem importante, ao que julgo entendimento corrente na Espanha: que passem a ser considerados como riscos para a saúde psíquica da mulher (previstos na nossa actual lei) os motivos sociais e económicos que estão na origem da generalidade dos abortos clandestinos e ilegais.

Escreve EF que "Ou na Espanha não há esquerda nem agnósticos e ateus, ou então esta verdade revela até que ponto, em vinte e tantos anos, os activistas do direito da mulher, as mulheres interessadas e o Estado não procuraram aproveitar todas as possibilidades que a mesma proporciona. O que revela a duplicidade (ou o desleixo) do estado e a pobreza dos movimentos cívicos (do civismo...) no nosso país. É mais fácil fazer demagogia e agitação política do que resolver os problemas enquadráveis em leis existentes!".

A meu ver, esquece uma outra diferença, fundamental para esta questão: a atitude geral da classe médica. Em Portugal, já é difícil encontrar médicos que não invoquem a objecção de consciência ou que não levem ao extremo de rigor a verificação das condições legais. Flexibilizar mais estas condições, como EF defende, em vez da liberalização, parece-me solução totalmente inconsequente na prática.

Pela mesma ordem de razões, fico espantado com outro argumento de EF. Segundo ele, a aplicação da actual lei flexibilizada seria um grande benefício para a mulher. Exigindo que a decisão fique, em última instância, a cargo de peritos, desoneraria a mulher das consequências psicológicas da decisão de abortar. É mesmo viver nas nuvens.

4 comentários:

Anónimo disse...

Há uma questão para a qual não tenho resposta. Porque é que nos últimos anos nenhuma clínica espanhola abriu instalações em Portugal?

JVC disse...

Sérgio: Artº 140º, nº 1 do CP, segundo a lei 6/84 (itálico meu) - Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento
de saúde oficial ou oficialmente reconhecido
(...)

Qual tem sido, até agora, a probabilidade de uma clínica privada ser reconhecida, contra a Igreja e a classe médica? E arrisca-se ao labéu de "clínica de aborto", talvez mesmo a um atentado bombista?

Mas continuo a perguntar: e qual vai ser no futuro, se a resposta ao referendo for sim?

Insisto em que reside aqui muita ingenuidade, como a do Eurico. Comparar Espanha e Portugal? Comece-se logo por pensar na legalização espanhola do casamento homossexual.

Anónimo disse...

Creio que o Ministro Correia de Campos já informou que, independentemente do resultado do referendo, clínicas estrangeiras irão ser reconhecidas.

JVC disse...

Por alguma razão o meu velho amigo António Correia de Campos se tem fartado de apanhar porrada. tem é costas largas, passou por muito, é da minha geração da resistência estudantil. Concorde-se ou não com as medidas no concreto de sócrates (e eu não concordo com algumas), parece-me inegável que nunca tivemos governo com tantos "tomates" como este.

Com uma excepção, Mariano Gago. Sobre isto, leiam os meus Apontamentos.