Talvez eu seja ingénuo, mas tenho tendência para crer que as grandes revoluções se fazem com pequenos rastilhos no lugar e no momento certos para chegar o fogo à pólvora. Sempre considerei que adivinhar esse momento e esse lugar eram os definidores do génio político.
Tenho o palpite de que o caso Esmeralda vai ser o pequeno rastilho da grande revolução da justiça portuguesa. Depois disto, alguma coisa pode ficar na mesma, sem uma onda funda de indignação? Repito: em todo este caso, em que toda a gente se comove e bem com o destino de uma criança, só há um réu: a justiça portuguesa.
31 janeiro, 2007
Sem rigor estatístico
Entendamo-nos, o título diz tudo. Todos os dias, o Público traz quatro respostas de rua a uma questão, que hoje foi "considera-se esclarecido pela campanha do referendo do aborto?"
Estatisticamente, não significa nada, mas pode dar pistas para reflexão. A resposta hoje foi unânime, sim, e não me surpreende. É assunto que já está bem arreigado na colecçção de valores de cada um, não há campanha que dê grande volta a isto. Pode é dar dinheiro a ganhar a uns chineses que vão vender uns lindos bonequinhos de fetos de dez semanas.
Vou mais longe. Chego a pensar que esta campanha é um acto de violência. Estamos a lidar, no caminho para que nos arrastam os defensores do não, com uma acção prosélita de "evangelização". Uma questão jurídica e política transforma-se num princípio filosófico e religioso, a evocar chamas infernais, como se o meu estimado Sr. José que me vende o jornal tivesse alguma noção da metafísica para além do chocolate que gosta de vender, sempre são uns euritos.
Mas depois da metafísica do chocolate vem a do tabaco (já deixei de fumar), depois a bomba da gasolina, depois o contributo da minha respiração para o aquecimento global, depois a vergonha do meu filho que tem dois quilos de peso a mais, depois eu não gostar de futebol, depois o quê? Orwell?
Vou pelas tais quatro respostas. As pessoas sabem bem em que vão votar, está-lhes no fundo da consciência. O resultado não serei, veremos.
Estatisticamente, não significa nada, mas pode dar pistas para reflexão. A resposta hoje foi unânime, sim, e não me surpreende. É assunto que já está bem arreigado na colecçção de valores de cada um, não há campanha que dê grande volta a isto. Pode é dar dinheiro a ganhar a uns chineses que vão vender uns lindos bonequinhos de fetos de dez semanas.
Vou mais longe. Chego a pensar que esta campanha é um acto de violência. Estamos a lidar, no caminho para que nos arrastam os defensores do não, com uma acção prosélita de "evangelização". Uma questão jurídica e política transforma-se num princípio filosófico e religioso, a evocar chamas infernais, como se o meu estimado Sr. José que me vende o jornal tivesse alguma noção da metafísica para além do chocolate que gosta de vender, sempre são uns euritos.
Mas depois da metafísica do chocolate vem a do tabaco (já deixei de fumar), depois a bomba da gasolina, depois o contributo da minha respiração para o aquecimento global, depois a vergonha do meu filho que tem dois quilos de peso a mais, depois eu não gostar de futebol, depois o quê? Orwell?
Vou pelas tais quatro respostas. As pessoas sabem bem em que vão votar, está-lhes no fundo da consciência. O resultado não serei, veremos.
Ainda a Esmeralda
Não voltei a escrever sobre o caso da Esmeralda, porque me quero distanciar de atitudes exageradamente emocionais e porque não domino os aspectos jurídicos. É por isto que não respondi a alguns comentários de entradas minhas anteriores.
Apesar desta cautela, tenho duas convicções firmes. A primeira, que me parece indiscutível, é que qualquer "direito" de uma parte ou outra se deve subordinar ao direito absoluto de uma criança de cinco anos de fazer a sua vida nas melhores condições de construção afectiva da sua personalidade. A segunda é a minha convicção de que, verdadeira e definitivamente culpada, neste caso, é a justiça portuguesa, perante um caso que, sabemos agora, é desencadeado quando uma criança ainda tem poucos meses e que agora explode quando ela é uma menina com sentimentos e afectos.
Dou um exemplo, o da prova de paternidade. Li que demorou sete meses. Empenho nesta declaração a minha idoneidade profissional: pode-se fazer em dois dias!
Nesta embrulhada, a justiça recorreu ontem à tentativa de negociação. O pai pretendente, o sargento Gomes, vai ser bombo de festa, por ter bloqueado o que, na brandura dos nossos costumes, parecia uma boa solução. Vejamos: a decisão de atribuição do poder paternal ao pai biológico parece sólida; o sargento só beneficiaria de um acordo, em termos da condenação; se sabe que, no fim, vai ter de entregar a criança, certamente desejará que seja nas condições que o acordo propunha.
Mas, eu que não sou jurista, lembro-me de uma coisa que não vejo escrita nos jornais. Daqui a dias, haverá uma decisão do Tribunal Constitucional que pode pôr tudo isto de pantanas. Então alguém faria outra coisa diferentemente do sargento Gomes, recusar um acordo na incerteza do que será essa decisão? Com tudo isto, repito, para mim só há aqui um réu, o nosso sistema de justiça.
Nota lateral – Um colega meu disse-me que um juiz muito prestigiado lhe tinha dito, a propósito deste caso, que não há qualquer dúvida sobre o papel de um juiz: ler o código, enquadrar nele o caso e aplicar a justiça. Não quero crer, o meu colega deve ter percebido mal. Também é fácil ser piloto de avião, é só saber qual é o botão do piloto automático.
P. S. - Eu bem previa, tudo ainda se podia complicar. O Tribunal Constitucional vem hoje baralhar tudo, aceitando o recurso do sargento Gomes. Só há uma coisa incontornável, o relógio, que soma dia a dia à possível tragédia da Esmeralda. Apetece-me dizer: suspenda-se a justiça, para obras de remodelação.
Apesar desta cautela, tenho duas convicções firmes. A primeira, que me parece indiscutível, é que qualquer "direito" de uma parte ou outra se deve subordinar ao direito absoluto de uma criança de cinco anos de fazer a sua vida nas melhores condições de construção afectiva da sua personalidade. A segunda é a minha convicção de que, verdadeira e definitivamente culpada, neste caso, é a justiça portuguesa, perante um caso que, sabemos agora, é desencadeado quando uma criança ainda tem poucos meses e que agora explode quando ela é uma menina com sentimentos e afectos.
Dou um exemplo, o da prova de paternidade. Li que demorou sete meses. Empenho nesta declaração a minha idoneidade profissional: pode-se fazer em dois dias!
Nesta embrulhada, a justiça recorreu ontem à tentativa de negociação. O pai pretendente, o sargento Gomes, vai ser bombo de festa, por ter bloqueado o que, na brandura dos nossos costumes, parecia uma boa solução. Vejamos: a decisão de atribuição do poder paternal ao pai biológico parece sólida; o sargento só beneficiaria de um acordo, em termos da condenação; se sabe que, no fim, vai ter de entregar a criança, certamente desejará que seja nas condições que o acordo propunha.
Mas, eu que não sou jurista, lembro-me de uma coisa que não vejo escrita nos jornais. Daqui a dias, haverá uma decisão do Tribunal Constitucional que pode pôr tudo isto de pantanas. Então alguém faria outra coisa diferentemente do sargento Gomes, recusar um acordo na incerteza do que será essa decisão? Com tudo isto, repito, para mim só há aqui um réu, o nosso sistema de justiça.
Nota lateral – Um colega meu disse-me que um juiz muito prestigiado lhe tinha dito, a propósito deste caso, que não há qualquer dúvida sobre o papel de um juiz: ler o código, enquadrar nele o caso e aplicar a justiça. Não quero crer, o meu colega deve ter percebido mal. Também é fácil ser piloto de avião, é só saber qual é o botão do piloto automático.
P. S. - Eu bem previa, tudo ainda se podia complicar. O Tribunal Constitucional vem hoje baralhar tudo, aceitando o recurso do sargento Gomes. Só há uma coisa incontornável, o relógio, que soma dia a dia à possível tragédia da Esmeralda. Apetece-me dizer: suspenda-se a justiça, para obras de remodelação.
Eu e os judeus
Há dias, falei do que julgo ser algum reducionismo de defensismo judeu, num artigo de Esther Mucznik. Hoje vou falar da minha relação especial com o judaísmo, ou melhor, para isto não ter conotação religiosa, com a sociedade judaica. Começo por enquadrar tudo na minha relação habitual de amizade, porque desde já digo que sou amigo dos judeus. Tenho excelentes amigos e já vi que eles se tornam grandes amigos quando, entre outras coisas, compreendem a minha exigência para com os amigos. Aos bons amigos perdoo, mas critico-os lealmente. Se me virem ser condescendente com fraquezas, já sabem que é em relação a pessoas mais ou menos distantes. É esta a minha posição em relação aos judeus e, mais concretamente, Israel.
Tudo começa por eu próprio ter uma longínqua costela judaica. Tive um trisavô sefardita, José Bensabat, que foi de Marrocos estabelecer-se na Terceira, na época da laranja, fazendo negócios de exportação para o norte da Europa. Como morreu muito novo, não deixou na família nada de herança cultural e religiosa hebraica, mas ficou algum sentimento de identidade.
Desde criança, por coisas ensinadas pelo meu pai, outras aprendidas por mim, fui solidificando a minha admiração pelo povo judeu. Foi um povo disperso em diáspora já há 2000 anos, depois de Tito, mas que conseguiu manter secularmente a sua identidade. Impedido de se inserir na base agrícola da economia medieval, descobriu as finanças e antecipou em séculos o capitalismo moderno, goste-se ou não dele. Com isto, cultivou a vida intelectual e basta lembrar, entre centenas, os nomes de Espinosa, Marx e Einstein.
E quem não se solidariza com os oprimidos, a começar pelos portugueses, país da Inquisição? E quem não se verga humildemente, em nome da humanidade, ao visitar Yad Vashem, em Jerusalém (mas também sentir orgulho ao ver a árvore em homenagem a Aristides Sousa Mendes)?
Também a história recente. Quando eu era criança, o meu pai, simpatizante com uma vaga ideia de socialismo, falava-me dos kibutz como exemplo do socialismo. Lembro-me vagamente da resolução da ONU da partilha da Palestina, que o meu pai sempre dizia só ter sido possível pelo apoio forte da URSS. Li depois que, no dia seguinte, foi o novo estado israelita que foi atacado pelos países árabes (embora tirando proveito para escorraçar milhares de palestinianos árabes). Reconheço que, nas guerras seguintes, Israel aproveitou para conquistas territoriais, mas sei que as guerras de 1967 e de 1973 foram provocadas pelos países árabes vizinhos. E já houve alguma guerra em toda a história em que o vencedor não tenha tirado vantagens territoriais?
Se alguém teve paciência para me ler até agora, espero que não me chame um sionista inveterado, por que vou chegar à conclusão. Julgo que, como em relação aos meus amigos, estou na melhor posição para dizer não aos meus amigos judeus.
Amigos judeus, acreditem que isto, por muito que discordem, é escrito por um amigo. Um verdadeiro amigo é assim.
Tudo começa por eu próprio ter uma longínqua costela judaica. Tive um trisavô sefardita, José Bensabat, que foi de Marrocos estabelecer-se na Terceira, na época da laranja, fazendo negócios de exportação para o norte da Europa. Como morreu muito novo, não deixou na família nada de herança cultural e religiosa hebraica, mas ficou algum sentimento de identidade.
Desde criança, por coisas ensinadas pelo meu pai, outras aprendidas por mim, fui solidificando a minha admiração pelo povo judeu. Foi um povo disperso em diáspora já há 2000 anos, depois de Tito, mas que conseguiu manter secularmente a sua identidade. Impedido de se inserir na base agrícola da economia medieval, descobriu as finanças e antecipou em séculos o capitalismo moderno, goste-se ou não dele. Com isto, cultivou a vida intelectual e basta lembrar, entre centenas, os nomes de Espinosa, Marx e Einstein.
E quem não se solidariza com os oprimidos, a começar pelos portugueses, país da Inquisição? E quem não se verga humildemente, em nome da humanidade, ao visitar Yad Vashem, em Jerusalém (mas também sentir orgulho ao ver a árvore em homenagem a Aristides Sousa Mendes)?
Também a história recente. Quando eu era criança, o meu pai, simpatizante com uma vaga ideia de socialismo, falava-me dos kibutz como exemplo do socialismo. Lembro-me vagamente da resolução da ONU da partilha da Palestina, que o meu pai sempre dizia só ter sido possível pelo apoio forte da URSS. Li depois que, no dia seguinte, foi o novo estado israelita que foi atacado pelos países árabes (embora tirando proveito para escorraçar milhares de palestinianos árabes). Reconheço que, nas guerras seguintes, Israel aproveitou para conquistas territoriais, mas sei que as guerras de 1967 e de 1973 foram provocadas pelos países árabes vizinhos. E já houve alguma guerra em toda a história em que o vencedor não tenha tirado vantagens territoriais?
Se alguém teve paciência para me ler até agora, espero que não me chame um sionista inveterado, por que vou chegar à conclusão. Julgo que, como em relação aos meus amigos, estou na melhor posição para dizer não aos meus amigos judeus.
Não a um estado definido por "raça"/religião em que eu, se lá viver toda a vida, e apesar da tal costela judaica, nunca poderei ser cidadão.Etc.
Não a colonatos em zonas que a partilha e resoluções posteriores da ONU atribuíram aos palestinianos.
Não a um muro físico a definir a fronteira.
Não à apropriação de Jerusalém, cidade sagrada de três civilizações, internacionalizada na resolução inicial da ONU.
Não ao terrorismo de estado e aos assassínios dirigidos dos inimigos.
Não à possibilidade de raptar e prender dirigentes de uma entidade política hoje reconhecida, a Autoridade Palestiniana.
Não à destruição de comunidades civis, como recentemente no Líbano.
Amigos judeus, acreditem que isto, por muito que discordem, é escrito por um amigo. Um verdadeiro amigo é assim.
30 janeiro, 2007
Citações, sobre o referendo
1. "Maria de Belém Roseira distinguiu as posições dos que são contra e a favor da despenalização do aborto até às dez semanas, realçando que o "sim" não obriga ninguém a interromper a gravidez, enquanto o "não" não impede os abortos clandestinos. "O "sim" é tolerante e o "não" é intolerante", frisou.
"Não se trata de liberalizar, mas sim de despenalizar", repetiu a antiga ministra da Saúde e da Igualdade, definindo o que vai "estar em causa" no referendo dia 11 de Fevereiro."
2. Os valores, mesmo aqueles que parecem absolutos, são sempre relativos, nota: pode matar-se em legítima defesa e legitimar-se como justas certas guerras; a pena de morte ainda hoje é adoptada "em duas grandes civilizações". Revê-se na posição que tomou há 22 anos, num artigo no Expresso: mesmo alguém que, em sua consciência, seja contra o aborto, pode votar a favor da lei. "É errado este deslizar do problema para a zona da consciência. Tem a ver mais com o direito penal e a saúde pública. Não há, na sociedade portuguesa, um consenso ético em relação a este direito. O importante é que a lei não obrigue ninguém a violentar a sua consciência. Nem imponha à sociedade a perspectiva ética de alguns." (Luís Moita, ex-sacerdote católico, professor universitário)
3. Creio que é compatível o voto na despenalização e ser - por pensamentos, palavras e obras - pela cultura da vida em todas as circunstâncias e contra o aborto. O "sim" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, da cultura do aborto, embora haja sempre doidos e doidas para tudo. (Frei Bento Domingues, dominicano)
Nota – Provavelmente, estas citações terão continuidade. Estas são do Público de 28.1.2007. Para não ser repetitivo, entenda-se que as próximas são sempre do Público.
2. Os valores, mesmo aqueles que parecem absolutos, são sempre relativos, nota: pode matar-se em legítima defesa e legitimar-se como justas certas guerras; a pena de morte ainda hoje é adoptada "em duas grandes civilizações". Revê-se na posição que tomou há 22 anos, num artigo no Expresso: mesmo alguém que, em sua consciência, seja contra o aborto, pode votar a favor da lei. "É errado este deslizar do problema para a zona da consciência. Tem a ver mais com o direito penal e a saúde pública. Não há, na sociedade portuguesa, um consenso ético em relação a este direito. O importante é que a lei não obrigue ninguém a violentar a sua consciência. Nem imponha à sociedade a perspectiva ética de alguns." (Luís Moita, ex-sacerdote católico, professor universitário)
3. Creio que é compatível o voto na despenalização e ser - por pensamentos, palavras e obras - pela cultura da vida em todas as circunstâncias e contra o aborto. O "sim" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, da cultura do aborto, embora haja sempre doidos e doidas para tudo. (Frei Bento Domingues, dominicano)
Nota – Provavelmente, estas citações terão continuidade. Estas são do Público de 28.1.2007. Para não ser repetitivo, entenda-se que as próximas são sempre do Público.
29 janeiro, 2007
Dúvida terrível
As notícias da viagem de Sócrates à China despertaram-me uma dúvida angustiante. Ajudem-me lá: a China ainda é um país comunista?
28 janeiro, 2007
A base da nossa civilização (?)
O último Expresso traz um artigo interessante, "Manuais com erros e preconceitos", sobre alusões imprecisas ou mesmo erróneas a religiões em manuais do ensino básico e secundário. O artigo destaca algumas pérolas de rigor e de abertura intelectual. "Exercício. Actualizar a figura do judeu de Gil Vicente sob a forma de um israelita fanático que participa em acções terroristas contra palestinianos". Sem comentários!
A propósito disto, escreve Esther Mucznik que a cultura judaico-cristã é a base da nossa civilização. Não me parece correcto. A nossa civilização (nossa, de quem?) fez-se também ao longo de milénio e meio (estou a datá-la, esquematicamente, no fim do império romano), de múltiplas influências extra-europeias, melhor dito extra-mediterrânicas, com destaque para a cultura islâmica dos tempos de ouro e para os contributos orientais que em boa parte fomos nós, portugueses, que transportámos.
Claro que isto é acessório e pensemos no essencial, ainda contra a afirmação da articulista. A nossa civilização não tem só uma base, a cultura judaico-cristã. Tem duas, porque essa liga-se estreitamente à cultura (melhor, civilização) greco-romana. Aliás é difícil, por isto, definir exactamente o que é a cultura judaico-cristã. A do Talmud e dos Evangelhos sinópticos? A do helenismo de João, o evangelista do logos? A da síntese de Paulo, na mensagem para judeus e "gentios"?
Esther Mucznik, por razões compreensíveis, parece-me incorrer no vício da sobrevalorização da religião, embora eu aceite que dela decorre, em grande parte, o código moral. Uma civilização é muito mais do que isso. É a filosofia, os mitos literários, a organização política, a ciência, a tecnologia. Nestes domínios, creio que a nossa civilização deve muito pouco à herança judaica, mas essencialmente à greco-romana.
Pessoalmente, a voltar ao passado, gostaria muito mais de reaparecer na Ágora ou no Forum do que no templo de Jerusalém.
A propósito disto, escreve Esther Mucznik que a cultura judaico-cristã é a base da nossa civilização. Não me parece correcto. A nossa civilização (nossa, de quem?) fez-se também ao longo de milénio e meio (estou a datá-la, esquematicamente, no fim do império romano), de múltiplas influências extra-europeias, melhor dito extra-mediterrânicas, com destaque para a cultura islâmica dos tempos de ouro e para os contributos orientais que em boa parte fomos nós, portugueses, que transportámos.
Claro que isto é acessório e pensemos no essencial, ainda contra a afirmação da articulista. A nossa civilização não tem só uma base, a cultura judaico-cristã. Tem duas, porque essa liga-se estreitamente à cultura (melhor, civilização) greco-romana. Aliás é difícil, por isto, definir exactamente o que é a cultura judaico-cristã. A do Talmud e dos Evangelhos sinópticos? A do helenismo de João, o evangelista do logos? A da síntese de Paulo, na mensagem para judeus e "gentios"?
Esther Mucznik, por razões compreensíveis, parece-me incorrer no vício da sobrevalorização da religião, embora eu aceite que dela decorre, em grande parte, o código moral. Uma civilização é muito mais do que isso. É a filosofia, os mitos literários, a organização política, a ciência, a tecnologia. Nestes domínios, creio que a nossa civilização deve muito pouco à herança judaica, mas essencialmente à greco-romana.
Pessoalmente, a voltar ao passado, gostaria muito mais de reaparecer na Ágora ou no Forum do que no templo de Jerusalém.
27 janeiro, 2007
Ateu, agnóstico ou não crente?
Numa nota recente, declarei-me não crente. Mais genuinamente, ao falar arcaico das minhas ilhas, talvez passe a escrever incréu. Mas porque não escrevi ateu ou agnóstico, coisas mais correntes e a dispensar duas palavras? Na minha mistura de formação científica e de gosto humanístico, lido com as palavras com alguma complexidade. Do lado científico, o rigor, do lado humanístico, a carga afectiva.
Ateu é bom exemplo. Cientificamente, com o significado óbvio de (a =) sem um (theos =) deus, é-me perfeitamente aceitável como caracterização pessoal, o "sem" é neutro, não é nem pró nem contra. No entanto, eu literato não gosto, porque o termo está muito conotado com proselitismo de sentido contrário, que não perfilho. Ateu, em muitos casos, melhor seria dito antiteu, coisa que não sou. Vivo perfeitamente sem a necessidade da existência de um deus, vivo até melhor, porque toda a minha filosofia e ética não têm a desculpa de qualquer misericórdia ou perdão divino, o que me torna muito mais exigente comigo mesmo mas também, quando o consigo, muito mais feliz do que se estivesse a responder a um deus, como menino de escola. Mas como posso ser ateu, no sentido vulgar de quem sabe sem margem para dúvidas de que não há um deus? Não posso provar isso, muito menos combater quem crê.
Neste sentido, devia declarar-me agnóstico. Cientificamente, indiscutível. Tudo o que fica para além da minha capacidade de conhecimento racional entra na bruma da incerteza agnóstica. Sou agnóstico em relação a uma eventual crença num outro universo, paralelo ao nosso. Sou agnóstico em relação a uma civilização que habita uma bolha no interior da Lua. Sou agnóstico em relação à consciência do "eu" do meu gato. Mas vem o humanista dizer-me a mim próprio que não gosta do termo porque, apesar de perfeitamente entendível por quem tem formação científica e mentalidade racional, a sua conotação é um pouco pejorativa, a de uma pessoa que não tem coragem para se declarar ateu.
Por tudo isto, tratem-me de incréu (ou "não crente", como escrevi). Mesmo assim, com alguma nuance, porque, de certa forma, existe um deus. Existem as línguas, existem as culturas, existem as morais, existem os amores e os ódios, existem paixões e compaixões, existem grandezas e misérias humanas. Então não existe também, na mente, na afectividade, na humanidade individual de milhões de pessoas, o seu deus, embora com variados retratos? Nada do que é humano nos pode ser estranho. Todos os homens são nossos irmãos. Se os meus irmãos têm um pai deus, eu não sou obrigado a aceitar que também seja meu pai, mas, digamos, tenho de admitir que é meu tio.
Ateu é bom exemplo. Cientificamente, com o significado óbvio de (a =) sem um (theos =) deus, é-me perfeitamente aceitável como caracterização pessoal, o "sem" é neutro, não é nem pró nem contra. No entanto, eu literato não gosto, porque o termo está muito conotado com proselitismo de sentido contrário, que não perfilho. Ateu, em muitos casos, melhor seria dito antiteu, coisa que não sou. Vivo perfeitamente sem a necessidade da existência de um deus, vivo até melhor, porque toda a minha filosofia e ética não têm a desculpa de qualquer misericórdia ou perdão divino, o que me torna muito mais exigente comigo mesmo mas também, quando o consigo, muito mais feliz do que se estivesse a responder a um deus, como menino de escola. Mas como posso ser ateu, no sentido vulgar de quem sabe sem margem para dúvidas de que não há um deus? Não posso provar isso, muito menos combater quem crê.
Neste sentido, devia declarar-me agnóstico. Cientificamente, indiscutível. Tudo o que fica para além da minha capacidade de conhecimento racional entra na bruma da incerteza agnóstica. Sou agnóstico em relação a uma eventual crença num outro universo, paralelo ao nosso. Sou agnóstico em relação a uma civilização que habita uma bolha no interior da Lua. Sou agnóstico em relação à consciência do "eu" do meu gato. Mas vem o humanista dizer-me a mim próprio que não gosta do termo porque, apesar de perfeitamente entendível por quem tem formação científica e mentalidade racional, a sua conotação é um pouco pejorativa, a de uma pessoa que não tem coragem para se declarar ateu.
Por tudo isto, tratem-me de incréu (ou "não crente", como escrevi). Mesmo assim, com alguma nuance, porque, de certa forma, existe um deus. Existem as línguas, existem as culturas, existem as morais, existem os amores e os ódios, existem paixões e compaixões, existem grandezas e misérias humanas. Então não existe também, na mente, na afectividade, na humanidade individual de milhões de pessoas, o seu deus, embora com variados retratos? Nada do que é humano nos pode ser estranho. Todos os homens são nossos irmãos. Se os meus irmãos têm um pai deus, eu não sou obrigado a aceitar que também seja meu pai, mas, digamos, tenho de admitir que é meu tio.
25 janeiro, 2007
Vencidos da vida
Há alguém que se preze, na minha geração, que não se amargue de vez em quando, que não repita coisa já dita, que tudo isto é uma choldra, que os nossos talentos estão desperdiçado, que não é justo que quase toda a influência no devir deste país está nas mãos de medianos ou mesmo medíocres, videirinhos, gente que gosta dos concertos para violino de Chopin?
Afinal, somos outra geração de "vencidos da vida"? Mas com muita razão de queixa, em termos práticos? Descontada a diferença da moda do aperaltamento, não estaremos com tantos sinais de boa instalação na vida como os primeiros vencidos?
24 janeiro, 2007
Objecção de consciência
Creio não merecer dúvida que o reduzido número de abortos legais em Portugal tem muito a ver com a alta taxa de objecção de consciência por parte dos médicos. Não considero a objecção de consciência como um direito absoluto. Por exemplo, um médico testemunha de Jeová deve ir para a prisão se deixar morrer um doente por não lhe fazer uma transfusão. Mas devo respeitá-la em questões sensíveis que ultrapassam visões sectárias reduzidas. É o caso do aborto ou da eutanásia.
Parece-me é que o direito à objecção de consciência deve ser regulamentado, como, afinal, todos os direitos. Para já, três notas.
1. É um direito que entra em conflito com o direito da mulher que quer abortar (se a futura legislação pós-referendo o permitir). A compatibilização parece-me passar pela obrigação de o objector fornecer à mulher informação eficaz sobre colegas que não objectem.
2. É um direito individual e não institucional ou hierárquico. Nenhum objector que seja director de uma unidade de saúde pode influenciar os médicos que lhe estejam subordinados.
3. Obviamente, é um direito que tem de abranger todas as actividades do médico. Não pode ser invocado pelo mesmo médico numa unidade do SNS e esquecido numa clínica privada.
Parece-me é que o direito à objecção de consciência deve ser regulamentado, como, afinal, todos os direitos. Para já, três notas.
1. É um direito que entra em conflito com o direito da mulher que quer abortar (se a futura legislação pós-referendo o permitir). A compatibilização parece-me passar pela obrigação de o objector fornecer à mulher informação eficaz sobre colegas que não objectem.
2. É um direito individual e não institucional ou hierárquico. Nenhum objector que seja director de uma unidade de saúde pode influenciar os médicos que lhe estejam subordinados.
3. Obviamente, é um direito que tem de abranger todas as actividades do médico. Não pode ser invocado pelo mesmo médico numa unidade do SNS e esquecido numa clínica privada.
O aborto em números
Ainda não vi ninguém negar uma estimativa, claro que imprecisa. Em Portugal, fazem-se cerca de 20.000 abortos por ano. Os legais são uma gota de água, apenas umas centenas, em grande parte por obstrução da objecção de consciência dos médicos. Na Espanha, com IGV limitada mas relativamente liberal, os abortos legais são em número de cerca de 92.000 por ano, donde cerca de 1 por 474 habitantes. Na França, com despenalização, cerca de 211.000 abortos, 1 por 288 habitantes. Em Portugal, 1 por 500 habitantes!
E isto em situação de clandestinidade e de criminalização. Alguém pode negar que é um drama a exigir, por um lado, é certo (e todos os apoiantes do "sim" estão de acordo) uma acção de planeamento familiar muito mais eficaz, mas também, obviamente, a eliminação de tão elevada taxa de ilegalidade com importantes reflexos na saúde das mulheres?
Já adivinho a critica. "Mas ainda vão ser mais com a despenalização". Onde estão as estatísticas que o provam? Pelo contrário, há a experiência internacional de dois factores importantes. Em primeiro lugar, como espero que aconteça em Portugal, a mulher que pretende fazer um aborto legal é primeiro aconselhada psicologicamente, do que muitas vezes resulta o recuo na decisão. Depois, passa a ser referenciada para maior acompanhamento em consultas de controlo da natalidade.
E isto em situação de clandestinidade e de criminalização. Alguém pode negar que é um drama a exigir, por um lado, é certo (e todos os apoiantes do "sim" estão de acordo) uma acção de planeamento familiar muito mais eficaz, mas também, obviamente, a eliminação de tão elevada taxa de ilegalidade com importantes reflexos na saúde das mulheres?
Já adivinho a critica. "Mas ainda vão ser mais com a despenalização". Onde estão as estatísticas que o provam? Pelo contrário, há a experiência internacional de dois factores importantes. Em primeiro lugar, como espero que aconteça em Portugal, a mulher que pretende fazer um aborto legal é primeiro aconselhada psicologicamente, do que muitas vezes resulta o recuo na decisão. Depois, passa a ser referenciada para maior acompanhamento em consultas de controlo da natalidade.
23 janeiro, 2007
Técnica bloguística
A blogosfera pode desempenhar um papel muito importante no próximo referendo. O problema é a sua dispersão, que contraria o bem conhecido efeito de potencialização, em que 2+2 é maior do que 4. Proponho que todos os blogues apoiantes do "sim" façam sempre referências cruzadas a tudo o que se vai publicando. Por mim, vou fazê-lo, mas peço que me alertem para os vossos "posts".
Bom senso e bom gosto
Ainda hoje, no Público, a notícia de que Saramago é candidato a um prémio de literatura, do Independent. Dando o benefício da dúvida sobre se é ou não da sua iniciativa, pelo menos tem de se desmarcar. Depois de um Nobel (Nobél!) tudo o mais são amendoins, mas amendoins comem-se como aperitivo, não como sobremesa.
De luto
Morreu o "abbé Pierre". Chirac disse que a França está de luto. Estes franceses, sempre presos do seu nacionalismo. Não é a França, é todo o mundo dos justos e da gente de boa vontade. Procuremos este noite, no céu, uma nova estrela, aquela que nasce sempre que morre um grande homem.
(Declaração de interesses: isto é escrito por um não crente).
(Declaração de interesses: isto é escrito por um não crente).
Despedimentos na função pública
Notícia de hoje no Público: a Líbia vai despedir 400.000 funcionários públicos. A população é de cerca de 6 milhões de habitantes. Proporcionalmente à nossa e admitindo um exceso de funcionários públicos, atiro, por alto, com o número de cerca de 600.000 funcionários públicos. Redução de 2/3, num país de "referência" anticapitalista? Ou a notícia tem um zero a mais ou Sócrates tem muito a aprender.
Esclarecimento médico
Li há dias uma coisa surpreendente escrita por um defensor do "não" (lamento já não o poder identifiacr, como seria de boa regra): que não há razão para o aborto quando hoje, mesmo quem falhe nos anticoncepcionais, tem à sua disposição a "pílula do dia seguinte". Presumo que quem escreve isto não está muito centrado na questão da vida desde a concepção, ou é mal informado. A pílula do dia seguinte é abortiva, se referirmos abortivo ao sentido de impedimento do desenvolvimento de um ovo já fecundado.
Já agora, quantas mulheres do movimento "não" usam o dispositivo intrauterino (DIU)? Sabem que estão a abortar todos os meses?
Não quero enveredar demasiadamente por questões científicas, porque creio que nos desviam do essencial, mas não posso deixar de transcrever uma coisa notável, para que uma nota de Vital Moreira me chamou a atenção. E é escrita por um padre católico, Anselmo Borges!
Já agora, quantas mulheres do movimento "não" usam o dispositivo intrauterino (DIU)? Sabem que estão a abortar todos os meses?
Não quero enveredar demasiadamente por questões científicas, porque creio que nos desviam do essencial, mas não posso deixar de transcrever uma coisa notável, para que uma nota de Vital Moreira me chamou a atenção. E é escrita por um padre católico, Anselmo Borges!
Para o aparecimento de um novo ser humano, não há "o instante" da fecundação, que é processual e demora várias horas.
A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marcos" que não devem ser ignorados. É precisamente o seu conhecimento que leva à distinção entre vida, vida humana e pessoa humana. O blastocisto, por exemplo, é humano, vida e vida humana, mas não um indivíduo humano e, muito menos, uma pessoa humana.
Se entre a fecundação e o início da nidação (sete dias), pode haver a possibilidade de gémeos monozigóticos (verdadeiros), é porque não temos ainda um indivíduo constituído.
Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído. De qualquer modo, não se pode chamar homicídio, sem mais, à interrupção da gravidez levada a cabo nesse período.
22 janeiro, 2007
Em homenagem ao Peúgas
Para variar, hoje vai uma nota ligeira. Não há blogue que se preze que não publique uma poesia, de vez em quando. Vou seguir a tradição, aproveitando para homenagear um grande amigo. É orgulhoso, independente, não me obedece mas, de vez em quando, dá-lhe para uns arroubos de ternura comigo. Esperto, sabe que o seu lugar preferido no sofá da sala também é o meu e abandona-o logo que me vê entrar, não vá haver sapatada. Preguiçoso que só visto, não se digna abrir a porta de mola da cozinha, coisa que bem sabe, até que o mando ir chatear outro e acabar com os miados. Então, ele sabe. Hedonista máximo, também é o relógio de sol cá em casa, subindo um degrau da escada a cada hora da sua sesta, a aproveitar o melhor ângulo da luz quente, à medida que o sol vai descendo. Também amigo a gostar de o mostrar, oferecendo-nos ufanamente um passareco morto ou uma lagartixa. Por tudo isto, sou mais de gatos do que de cães.
Esta entrada apatetada também tem em conta o meu benjamim, perdido num estágio Erasmus e que diz que, das suas grandes três saudades, a da família é a mais suportável, graças ao chat e à webcam. Pior é a cama e o gato. Aqui vai o gato, no seu poiso preferido, a cama do dono. Parece que adivinhou. E, para o Peúgas, a Oda al gato, de Pablo Neruda.
Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola, tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares, gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente terminado,
camina solo y sabe lo que quiere.
El hombre quiere ser pescado y pájaro,
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.
No hay unidad
como él,
no tienen
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el topacio,
y la elástica línea en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las monedas de la noche.
Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin patria,
mínimo tigre de salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado pie del gato.
Oh fiera independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres misterio,
todo el mundo te sabe y perteneces
al habitante menos misterioso,
tal vez todos lo creen,
todos se creen dueños,
propietarios, tíos
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.
Yo no.
Yo no suscribo.
Yo no conozco al gato.
Todo lo sé, la vida y su archipiélago,
el mar y la ciudad incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus extravíos,
el por y el menos de la matemática,
los embudos volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del cocodrilo,
la bondad ignorada del bombero,
el atavismo azul del sacerdote,
pero no puedo descifrar un gato.
Mi razón resbaló en su indiferencia,
sus ojos tienen números de oro.
(com agradecimentos à DK por me ter feito recordar este poema)
21 janeiro, 2007
A interditar?
"Se o 'sim' vencer, o aborto vai tornar-se uma coisa normal, é como ter um telemóvel". Isto foi dito por João César das Neves e já está reproduzido, com espanto, em muitos blogues.
Pouco adianta também eu reproduzir esta alarvidade, mas, escrevendo tanto sobre a educação superior, tenho de ver o caso também por este prisma. JCN é professor universitário, co-responsável pela formação da mente de muitos jovens. Mas quem diz coisas dessas (não são os valores pessoais que estou a discutir) não pode ser professor. Ou as diz convictamente e então não tem condições intelectuais, ou as diz por oportunismo e então não tem condições éticas. Ambas as coisas são essencialmente definidoras da missão de se ser professor.
Os meus leitores aceitam viajar num avião comandado por um cego? Ir ver um ballet com uma prima ballerina sem uma perna? Isto não tem nada de pejorativo, é simples bom senso. Mas então aceitam entregar os vossos filhos à docência magistral de JCN?
Pouco adianta também eu reproduzir esta alarvidade, mas, escrevendo tanto sobre a educação superior, tenho de ver o caso também por este prisma. JCN é professor universitário, co-responsável pela formação da mente de muitos jovens. Mas quem diz coisas dessas (não são os valores pessoais que estou a discutir) não pode ser professor. Ou as diz convictamente e então não tem condições intelectuais, ou as diz por oportunismo e então não tem condições éticas. Ambas as coisas são essencialmente definidoras da missão de se ser professor.
Os meus leitores aceitam viajar num avião comandado por um cego? Ir ver um ballet com uma prima ballerina sem uma perna? Isto não tem nada de pejorativo, é simples bom senso. Mas então aceitam entregar os vossos filhos à docência magistral de JCN?
20 janeiro, 2007
Ainda o caso do sargento Gomes
Estou perplexo, confuso, talvez devesse deixar assentar a poeira, mas tenho obrigações de rigor intelectual. A comunicação social, com todo o seu poder, fez a história do caso do sargento Gomes e da sua quase filha. História comovente, aqui me manifestei sobre ela. Mas sem qualquer possibilidade de contradição por factos? Talvez não, segundo informação fornecida por quem sabe ler processos, autos e acórdãos, um juiz conselheiro do Supremo. Aqui vai a outra versão.
Posta assim a dúvida, a minha atitude ainda fica mais difícil. Se foi assim e se a justiça tivesse decidido há quatro anos a favor do pai biológico de um bebé ainda quase inconsciente, seria provavelmente coisa a passar-me ao lado. Agora, é diferente, a miúda tem cinco anos. Parece-me haver um doloroso conflito de direitos. Vou admitir que o pai biológico deseja muito educá-la e amá-la. Mas será a miúda capaz de corresponder a isto, agora que, anos depois, tem outros "pais"? Honestamente, não sei, mas sei que nenhum direito se deve sobrepor ao da criança, decida lá quem souber qual é esse direito. E por isto digo que há uma coisa que eu nunca teria querido ser na vida, juiz. É nisto que insisto, a lei nunca pode ser mais do que um instrumento imperfeito de gestão dos mais inimagináveis conflitos humanos, porque o homem também é "inimaginável".
Outro motivo de reflexão é o do poder da comunicação social. Ele baseia-se muito na capacidade de ir ao encontro da nossa boa fé, coisa tão importante para uma vida intelectual e sentimentalmente bem vivida, se não queremos estar sempre a pensar que afinal vivemos na selva. Se sim, é imperiosa uma discussão muito séria sobre os riscos da boa fé. Mas horroriza-me: vou passar a ter de ser sistematicamente céptico, talvez cínico, aos 62?
Nota: vou seguir este assunto, com atenção, em In Verbis.
"O pai biológico da criança tentou desde os 9 meses desta tomar conta dela. Pior: pode ter-se dado o caso de ter sido o sargento quem convenceu a mãe a declarar a criança como filha de pai incógnito para mais facilmente a subtrair ao pai biológico. Nestes casos, há sempre obrigatoriedade de fazer um inquérito judicial. Feito este, e mesmo antes de o pai biológico saber que o era, logo ele declarara - está nos autos - que assumiria integralmente os seus deveres. Isto quando a criança ainda só tinha 9 meses e estava há seis com os pretensos adoptantes, que curiosamente ainda não tinham dado um passo para legalizarem a situação: pedido de adopção. O que só veio a acontecer depois da criança estar perfilhada pelo pai biológico."A ser assim, há aqui, a meu ver, dois novos factos muito relevantes. Em primeiro lugar, o pai biológico assume a paternidade logo que tem a certeza dela. Não o fez antes? É compreensível, o sentido da paternidade biológica é muito forte e não é fácil, na nossa cultura, aceitar-se que um homem assuma uma paternidade, em circunstâncias porventura duvidosas, sem ter a certeza. Segundo, se foi assim, parece ter havido negligência grave por parte dos "adoptantes". Mas negligência ou ignorância jurídica? Parece que, entretanto, a criança (recorde-se que nessa altura apenas um bebé) já estava perfilhada. Creio ser indiscutível que uma criança perfilhada não pode ser adoptada contra vontade do perfilhador.
Posta assim a dúvida, a minha atitude ainda fica mais difícil. Se foi assim e se a justiça tivesse decidido há quatro anos a favor do pai biológico de um bebé ainda quase inconsciente, seria provavelmente coisa a passar-me ao lado. Agora, é diferente, a miúda tem cinco anos. Parece-me haver um doloroso conflito de direitos. Vou admitir que o pai biológico deseja muito educá-la e amá-la. Mas será a miúda capaz de corresponder a isto, agora que, anos depois, tem outros "pais"? Honestamente, não sei, mas sei que nenhum direito se deve sobrepor ao da criança, decida lá quem souber qual é esse direito. E por isto digo que há uma coisa que eu nunca teria querido ser na vida, juiz. É nisto que insisto, a lei nunca pode ser mais do que um instrumento imperfeito de gestão dos mais inimagináveis conflitos humanos, porque o homem também é "inimaginável".
Outro motivo de reflexão é o do poder da comunicação social. Ele baseia-se muito na capacidade de ir ao encontro da nossa boa fé, coisa tão importante para uma vida intelectual e sentimentalmente bem vivida, se não queremos estar sempre a pensar que afinal vivemos na selva. Se sim, é imperiosa uma discussão muito séria sobre os riscos da boa fé. Mas horroriza-me: vou passar a ter de ser sistematicamente céptico, talvez cínico, aos 62?
Nota: vou seguir este assunto, com atenção, em In Verbis.
Aborto: qual é o código que vale mais?
Tinha escrito com antecedência uma nota (vou sempre acumulando, mais do que depois consigo publicar) sobre a opinião do Provedor de Justiça, no sentido de que a restrição deontológica do código da Ordem dos Médicos pode ir para além da lei. Isto é, um médico pode ser punido em justiça privada por um acto que a lei permite!
O que é que vale mais, o código deontológico da Ordem dos Médicos ou o código penal?
Apaguei todo o meu texto, porque muito mais autorizado é o artigo de Vital Moreira, no Público de 16.1.2007. Não perco nada com esse apagar, porque estou em total concordância com Vital Moreira, porque não escrevi uma coisa a mais e porque ele é que tem autoridade jurídica. Segue-se a sua opinião, expressa no artigo "Quando o erro conforta o erro" (selecção de excertos, da minha responsabilidade).
O que é que vale mais, o código deontológico da Ordem dos Médicos ou o código penal?
Apaguei todo o meu texto, porque muito mais autorizado é o artigo de Vital Moreira, no Público de 16.1.2007. Não perco nada com esse apagar, porque estou em total concordância com Vital Moreira, porque não escrevi uma coisa a mais e porque ele é que tem autoridade jurídica. Segue-se a sua opinião, expressa no artigo "Quando o erro conforta o erro" (selecção de excertos, da minha responsabilidade).
Segundo informava há dias o PÚBLICO, o provedor de Justiça emitiu um parecer em que defende que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não suscita nenhum problema, ao considerar como "falta deontológica grave" a prática de aborto pelos médicos, mesmo nos casos em que tal não é legalmente ilícito. Segundo o relato deste jornal, o parecer considera que a referida norma deontológica é uma simples "orientação ética", sem assumir relevância disciplinar. Embora sem conhecer os argumentos do referido parecer (que não foi disponibilizado nem no site do provedor nem no da Ordem), discordo inteiramente de tal conclusão.
(...)
Poderia supor-se que não existe contradição, visto que uma coisa é a proibição penal, que releva de um juízo de censura social assumida pelo Estado, e outra coisa é a condenação deontológica, que se fundamenta em factores de ética profissional. Ou seja, o aborto pode não ser punido penalmente e ainda assim pode ser condenável segundo outras pautas valorativas, nomeadamente religiosas ou morais, incluindo a ética profissional. Conforme o parecer do provedor, há que fazer uma "distinção entre normas deontológicas e normas jurídicas, [dado] o papel indubitavelmente diverso que têm a lei penal e o acervo deontológico elaborado por determinada classe profissional". Mas este argumento, abstractamente defensável, não procede de modo algum na situação concreta. Por um lado, a referida condenação deontológica, como infracção grave, não se fica pelo foro ético ou moral, antes se traduz numa infracção disciplinar, como tal punida com as penas disciplinares que a gravidade da infracção justifica. Como reza explicitamente o art. 2.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos, "comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do (...) do Código Deontológico (...)".
Não podem portanto restar quaisquer dúvidas de que, segundo as normas em causa, os médicos que praticarem abortos candidatam-se a pesadas penas disciplinares, mesmo na generalidade dos casos de abortos lícitos. (...)
Por outro lado, no caso dos médicos, não pode haver nenhuma discrepância entre licitude penal e licitude deontológica. A partir do momento em que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) deixa de ser penalmente punida, as mulheres interessadas passam a ter um direito ao respectivo acto médico, o qual não pode ser recusado senão a título de objecção de consciência, nos termos previstos na Constituição e na lei. Portanto, um médico que não tenha motivos para invocar objecção de consciência, por razões religiosas ou outras, tem o dever deontológico de praticar o correspondente acto médico, não podendo este ser considerado como infracção deontológica (e logo, disciplinar), ainda por cima "grave". Mas uma coisa é os médicos terem direito à objecção de consciência - o que só pode ser considerado a nível individual -, outra coisa é os médicos estarem impedidos pela Ordem de praticar certo acto médico legalmente lícito, mesmo que não tenham nenhuma objecção pessoal. Deve, aliás, sublinhar-se que a objecção de consciência só pode ser regulada por lei e não por um código de deontologia profissional, que não é uma lei.
Se a Ordem dos Médicos (OM) fosse uma associação médica privada, de inscrição voluntária e de inspiração religiosa ou filosófica, nada haveria a objectar quanto às suas posições em matéria deontológica. Sucede, porém, que a OM é uma entidade oficial, exercendo poderes públicos outorgados pelo Estado, incluindo o poder (e o dever) de definir e de fazer cumprir as normas deontológicas para todos os médicos (e não somente para os médicos que compartilhem de uma certa visão quanto à censurabilidade do aborto). Como entidades públicas que são, as ordens profissionais são necessariamente aconfessionais. Por esse motivo, elas nunca podem considerar como deontologicamente ilícito e disciplinarmente punível aquilo que o Estado, ele mesmo, não considera punível. Como parte do Estado (lato sensu) que é, a Ordem dos Médicos não pode punir aquilo que o Estado não quer que seja punido.
(...)
Tal como quaisquer outros cidadãos, os médicos podem ter e tomar posição na questão da despenalização do aborto, a favor ou contra. A Ordem, não. Primeiro, porque é uma entidade pública, com poderes oficiais, obrigada a uma posição neutral; segundo, porque representa todos os médicos, não podendo assumir como sua a posição de uma parte deles. Ora, não existe modo mais rotundo de tomar posição nesta questão do que condenar deontológica (mesmo se não disciplinarmente, como se alega) todos os casos de aborto, incluindo os que são lícitos e que os médicos estão obrigados a praticar (salvo objecção de consciência individual).
19 janeiro, 2007
A devida vénia, com admiração
A minha vénia, com o maior respeito, ao Senhor sargento Luís Matos Gomes. O tratamento de sr. vai propositadamente por extenso e com maiúscula e também me parece relevante mencionar a sua qualidade de militar, qualidade que desejaria ver sempre acompanhada por esse seu grande sentido ético responsável. E este sargento, com a dignidade do seu uniforme, numa fotografia impressionante do jornal, aparece com um ar quase cândido, obviamente que com expressão de dor, mas vê-se que suavizada pela tranquilidade da consciência.
Um militar quer-se corajoso, mas não só sob risco de fogo. Que coragem é necessária para um homem saber que vai ser condenado a uma pena pesada, porque o seu dever de consciência está acima da secura da lei, e mesmo assim não se vergar? Reparo que me limitei ao referir-me apenas à consciência. Também, obviamente, muito amor por uma criança que, em crescida, espero que tenha muito orgulho neste seu pai, para mim o seu verdadeiro pai.
Também cabe nesta nota outra vénia, agora para o juiz António Santos Carvalho, desembargador da Relação do Porto, pela carta que escreveu ao sargento Gomes.
PS - O juiz refere um endereço do sargento Luís Matos Gomes, presumo que de e-mail. Se alguém mo fornecer, fico agradecido. Mas não será para mensagens a publicar aqui. Há coisas que só ditas olhos nos olhos, mesmo que na imaginação da net.
PS, 20.1.2007 - Leio hoje no jornal que o PGR chamou a conferência o delegado do ministério público na Sertã. Bom sinal, vamos ver. Ao menos, que o sargento Luís Gomes aguarde em liberdade o resulçtdo do recurso. E, já agora, que fique em condições para, com algum cuidado (os militares sabem), ir ver a sua filha, onde quer que ela esteja.
Um militar quer-se corajoso, mas não só sob risco de fogo. Que coragem é necessária para um homem saber que vai ser condenado a uma pena pesada, porque o seu dever de consciência está acima da secura da lei, e mesmo assim não se vergar? Reparo que me limitei ao referir-me apenas à consciência. Também, obviamente, muito amor por uma criança que, em crescida, espero que tenha muito orgulho neste seu pai, para mim o seu verdadeiro pai.
Também cabe nesta nota outra vénia, agora para o juiz António Santos Carvalho, desembargador da Relação do Porto, pela carta que escreveu ao sargento Gomes.
"Ex.mo Senhor Luís Matos Gomes, muito ilustre Sargento do ExércitoTambém é preciso muita coragem para publicar carta tão oposta ao que julgo ser a opinião dominante da "classe". Em contraponto a alguma relutância intelectual que tenho para com o habitual formalismo do pensamento jurídico, registo esta carta, para mim, como um documento notável. "O direito é a vida dos comuns, não as abstracções dos juristas". O que é que posso dizer mais? Talvez uma coisa merecida e sincera: "Senhor Desembargador, nesta época de crise da justiça, o senhor anima-me. Muito obrigado."
Conheço o silêncio terrível das leituras das penas: escrevo-lhe com conhecimento de causa e só agora, porque só agora me disseram este endereço. Mas teria querido estar aí, contra essa mudez, para a romper de imediato, para lhe dizer que as sentenças são para se lutar com elas até ao fim dos recursos. Vai fazer vencimento: a vida, a justiça da vida são inapeláveis e o direito é a vida dos comuns, não as abstracções dos juristas, sejam ou não juízes.
"Não lhe digo se fez bem ou mal: é assunto exclusivo da sua consciência. Mas digo-lhe que os tribunais têm de reconhecer o inocente onde ele está, de convicção. Toda a complexidade e sofisticação jurídica se têm construído, passo a passo da história, por cima das prisões dos resistentes, afinal pelo viver bem de uns com os outros, contra as biologias forçosas, contra as medidas disciplinares primitivas.
"A posição que é a sua é de defesa da vida civilizada, de tudo isso que é acrescentado pela convivência humana (e humanitária) ao puro dado da existência. Reconforta-me. Agradeço-lha.
"Com toda a minha estima: António Santos Carvalho, juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto."
PS - O juiz refere um endereço do sargento Luís Matos Gomes, presumo que de e-mail. Se alguém mo fornecer, fico agradecido. Mas não será para mensagens a publicar aqui. Há coisas que só ditas olhos nos olhos, mesmo que na imaginação da net.
PS, 20.1.2007 - Leio hoje no jornal que o PGR chamou a conferência o delegado do ministério público na Sertã. Bom sinal, vamos ver. Ao menos, que o sargento Luís Gomes aguarde em liberdade o resulçtdo do recurso. E, já agora, que fique em condições para, com algum cuidado (os militares sabem), ir ver a sua filha, onde quer que ela esteja.
Atribulações de um português na China
A viagem à China do primeiro ministro, com luzidia companhia, deve custar um balúrdio. Valeria a pena? Não sei. O que me parece certo é que de pouco valerá a pena, nas actuais circunstâncias.
Com evidente desprezo pela diplomacia lusa, o presidente chinês ausenta-se nesses dias para uma viagem a África, obviamente a actual prioridade estratégica da China. Apesar disto, Sócrates manteve a viagem, com o argumento de que se encontraria com o primeiro ministro chinês, como se o primeiro ministro valesse alguma coisa na China, em termos de poder politico.
Atendendo ao que julgo serem os motivos da viagem, do lado português, adivinho que Sócrates se faça acompanhar pelos ministros dos Negócios Estrangeiros e da economia. O problema é que os seus homólogos chineses estarão em África, com o seu presidente.
Com evidente desprezo pela diplomacia lusa, o presidente chinês ausenta-se nesses dias para uma viagem a África, obviamente a actual prioridade estratégica da China. Apesar disto, Sócrates manteve a viagem, com o argumento de que se encontraria com o primeiro ministro chinês, como se o primeiro ministro valesse alguma coisa na China, em termos de poder politico.
Atendendo ao que julgo serem os motivos da viagem, do lado português, adivinho que Sócrates se faça acompanhar pelos ministros dos Negócios Estrangeiros e da economia. O problema é que os seus homólogos chineses estarão em África, com o seu presidente.
Opiniões à portuguesa
Nunca perco, no suplemento Local do Público, a pequena secção Vox populi, uma pergunta posta a quatro "pessoas da rua". Costuma ser muito ilustrativo, embora sem significado estatístico. Há dias, a pergunta era: "acha que a vacina contra o cancro do útero devia ser comparticipada pelo Estado?"
Antes do mais, uma pequena precisão. Só indirectamente é que a vacina é contra o cancro do útero e muito menos contra todos os tipos de cancro do útero, apenas contra o do colo do útero. A vacina é contra quatro tipos de vírus de papiloma, que se sabe estarem envolvidos na origem de cerca de 75% desses cancros. Já não é nada mau.
Voltando ao inquérito, a voz discordante foi a de um engenheiro (!) de 50 anos. "Acho que não, provavelmente essa vacina não é eficaz". Espantosa, a segurança de opiniões do "portuga" típico. Ao menos, vá lá, este ainda admite um "provavelmente". Será que a aliança Novartis/Merck já contratou este perito, para corrigir os erros e fazer com que a vacina "provavelmente" seja eficaz?
Antes do mais, uma pequena precisão. Só indirectamente é que a vacina é contra o cancro do útero e muito menos contra todos os tipos de cancro do útero, apenas contra o do colo do útero. A vacina é contra quatro tipos de vírus de papiloma, que se sabe estarem envolvidos na origem de cerca de 75% desses cancros. Já não é nada mau.
Voltando ao inquérito, a voz discordante foi a de um engenheiro (!) de 50 anos. "Acho que não, provavelmente essa vacina não é eficaz". Espantosa, a segurança de opiniões do "portuga" típico. Ao menos, vá lá, este ainda admite um "provavelmente". Será que a aliança Novartis/Merck já contratou este perito, para corrigir os erros e fazer com que a vacina "provavelmente" seja eficaz?
18 janeiro, 2007
Demagogia
Não me lembro de alguma vez, graças fundamentalmente ao actual governo, se ter apontado tão corajosamente o dedo a privilégios inadmissíveis e, muitas vezes, herança do corporativismo salazarista. Problema é o dos grandes privilégios. Mas também é problema o risco considerável da manipulação demagógica com base na desinformação.
Um caso que me parece flagrante, depois do que li ontem no Público, é o do acordo de trabalho do Metro. Tem saltado logo à vista uma afirmação repetida da administração: os trabalhadores querem manter a cláusula abusiva que lhes permite ter até 36 dias úteis de férias por ano. Ao ler isto, a minha reacção foi a da grande maioria dos leitores, é de facto um abuso. Mas parece que estamos a ser aldrabados pela administração. Leia-se o que escreveu ontem o Público.
Na função pública, por exemplo, começa-se com 20 dias úteis mas, com a bonificação por antiguidade, 24 dias úteis não é nada de extraordinário. E a compensação de 6 dias por férias fora da época é assim coisa tão disparatada? Quantos trabalhadores desejam ter férias quando os filhos estão na escola? E não há muitas empresas que bonificam a assiduidade? E misturar alhos com bugalhos, férias com tolerâncias de ponto, é coisa honesta? São os trabalhadores que decidem sobre as tolerâncias de ponto?
Um caso que me parece flagrante, depois do que li ontem no Público, é o do acordo de trabalho do Metro. Tem saltado logo à vista uma afirmação repetida da administração: os trabalhadores querem manter a cláusula abusiva que lhes permite ter até 36 dias úteis de férias por ano. Ao ler isto, a minha reacção foi a da grande maioria dos leitores, é de facto um abuso. Mas parece que estamos a ser aldrabados pela administração. Leia-se o que escreveu ontem o Público.
"Os trabalhadores têm direito a 24 dias úteis de férias por ano, que podem ser acrescidos de seis dias, se gozarem "a totalidade do período de férias fora da época normal de férias". Se no ano a que as férias se reportam o trabalhador tiver o máximo de um dia de falta ou dois meios dias, desde que justificados, há um acréscimo de três dias de férias. Juntando o dia do aniversário do trabalhador e as tolerâncias de ponto, os dias de férias podem, segundo as contas da empresa, ascender a 36 dias."Podem, diz a empresa. O que eu quero saber é quantos por cento dos trabalhadores, nos últimos anos, gozaram efectivamente de 36 dias úteis de férias. E vamos por partes.
Na função pública, por exemplo, começa-se com 20 dias úteis mas, com a bonificação por antiguidade, 24 dias úteis não é nada de extraordinário. E a compensação de 6 dias por férias fora da época é assim coisa tão disparatada? Quantos trabalhadores desejam ter férias quando os filhos estão na escola? E não há muitas empresas que bonificam a assiduidade? E misturar alhos com bugalhos, férias com tolerâncias de ponto, é coisa honesta? São os trabalhadores que decidem sobre as tolerâncias de ponto?
Adversária a temer
O movimento pelo "não" Acção Família distribuiu um folheto com a sua nova militante. Admito que é adversária de respeito.
À margem. No "não" há muita coisa pequenina, paroquial. O "Não obrigada" é outra coisa, de profissionais, "oudoors" por toda a parte. Quem está a pagar? Eu apostaria que, em boa parte, um banco português com conhecidas ligações ao Opus Dei.
(Com a devida vénia ao Público pelo uso da imagem)
17 janeiro, 2007
Podem-me explicar, se não custar muito?
Anuncia-se que o Ministério da Educação quer reduzir a um único o número de professores de cada aluno do 2º ciclo do ensino básico, nas disciplinas nucleares. Um mesmo professor para português, matemática, ciências naturais, língua estrangeira e história. Felizmente, não sou técnico de educação e falo apenas com base no senso comum e na memória ainda não perdida de um filho tardio, a estudar no 2º ciclo ainda há menos de uma dúzia de anos.
A exigência de conhecimentos/conceitos específicos em cada disciplina, no ensino deste ciclo, já é notória. Como é que os futuros professores os vão adquirir? Pela rama, nas escolas superiores de educação? Saltando de faculdade em faculdade? Durante quanto tempo? Ou terão formação específica numa disciplina mas serão chamados a leccionar as restantes?
Vou falar do que me é mais próximo, as ciências da natureza e apenas das ciências da vida. No 5º e 6º ano, a meu ver, o aluno tem que compreender os fundamentos da vida (nutrição, crescimento, reprodução). Deve ter algumas noções da saúde e da higiene, deve valorizar a biodiversidade e estar alerta para a biologia comparada, deve começar, tão cedo quanto possível (se é que não no 1º ciclo) a sua educação ambiental. É um professor de história que lhe vai ensinar isso?
E, já agora, esta medida não tem nada a ver com redução de custos de pessoal (a menos que se mantenha o rácio global) ou com coisas burocráticas, como a simplificação dos concursos de colocação?
Como bom método, dou sempre o benefício da dúvida, admitindo a minha ignorância. Mas há coisas que me parecem tão absurdas que, pelo menos, exijo que me sejam muito bem explicadas, tintim-por-tintim. Mais ainda quando se está a jogar com o futuro de todos nós, e com o mais importante desse futuro, os nossos filhos.
A exigência de conhecimentos/conceitos específicos em cada disciplina, no ensino deste ciclo, já é notória. Como é que os futuros professores os vão adquirir? Pela rama, nas escolas superiores de educação? Saltando de faculdade em faculdade? Durante quanto tempo? Ou terão formação específica numa disciplina mas serão chamados a leccionar as restantes?
Vou falar do que me é mais próximo, as ciências da natureza e apenas das ciências da vida. No 5º e 6º ano, a meu ver, o aluno tem que compreender os fundamentos da vida (nutrição, crescimento, reprodução). Deve ter algumas noções da saúde e da higiene, deve valorizar a biodiversidade e estar alerta para a biologia comparada, deve começar, tão cedo quanto possível (se é que não no 1º ciclo) a sua educação ambiental. É um professor de história que lhe vai ensinar isso?
E, já agora, esta medida não tem nada a ver com redução de custos de pessoal (a menos que se mantenha o rácio global) ou com coisas burocráticas, como a simplificação dos concursos de colocação?
Como bom método, dou sempre o benefício da dúvida, admitindo a minha ignorância. Mas há coisas que me parecem tão absurdas que, pelo menos, exijo que me sejam muito bem explicadas, tintim-por-tintim. Mais ainda quando se está a jogar com o futuro de todos nós, e com o mais importante desse futuro, os nossos filhos.
Artigo de um esquerdista perigoso
Faço por respeitar os direitos de autoria dos jornais, mas, tanto quanto sei, o Público permite a divulgação dos artigos dos seus colunistas dois dias depois. Assim, vou transcrever um artigo notável do Gen. Loureiro dos Santos, publicado em 11.1.2007. Como se sabe, trata-se de um perigoso esquerdista, com um ódio visceral aos EUA...
Reforçar as forças no Iraque, agora?
O relatório Baker-Hamilton aconselhava a concentração do esforço dos militares no Iraque na formação das forças nacionais, que assumiriam, faseadamente, as responsabilidades da segurança do país, até ao primeiro trimestre de 2008, altura em que as brigadas de combate americanas teriam deixado o teatro de operações (TO). Nas relações externas, sugeria a negociação com os Estados vizinhos, incluindo a Síria e o Irão, visando criar condições para efectuar a manobra militar.
Aguardava-se que fosse determinado o início da retirada, e iniciado o processo negocial, o que poderia travar a actual deterioração do potencial de combate terrestre da superpotência, em perigo de ruptura. Os EUA recuperariam a capacidade de intervir com forças terrestres em qualquer local onde possam emergir novas crises (como no Corno de África), prevenir o alastramento regional do conflito iraquiano, actuar em força no Afeganistão e agir com determinação para resolver o impasse israelo-palestiniano.
Surpreendentemente, Bush resolveu reforçar as forças no Iraque, em vez de mandar começar o processo de retirada. Contra a opinião da Junta de Chefes de Estado-Maior e dos comandantes do Central Command (general Abizaid) e do Iraque (general Casey), assim como da maioria da população norte-americana. Curiosamente, há perto de quatro anos, tinha-se negado a seguir a proposta de aumentar significativamente os meios militares para a estabilização do Iraque, que o então CEME americano considerava insuficientes.
Substituídos os responsáveis no terreno que discordam do reforço por outros que o têm vindo a advogar, Bush avança para (mais) uma "nova estratégia". Qual é a sua ideia: inverter o curso da situação no Iraque e alcançar a vitória? Ou fazer um reforço temporário, aliviando a pressão actualmente existente no terreno e iniciar conversações com os vizinhos, com a finalidade de, imediatamente a seguir, começar a retrair o dispositivo?
Pelas notícias vindas a lume, aquilo que o Presidente americano pretenderá é um impulso que consiga fazer regressar as hipóteses de vencer a guerra. Pelo que transpira dos planos militares, as primeiras operações visam criar condições para passar aos iraquianos a responsabilidade da segurança de Bagdade (no próximo Verão?).
Segundo a doutrina de contra-subversão conhecida como mais adequada (consta do manual de contra-insurreição do exército dos EUA recentemente aprovado), a submissão da insurreição exige o desenvolvimento de três manobras, intimamente coordenadas, das quais a manobra militar ficará a cargo das forças norte-americanas, embora apoiadas pelas forças iraquianas que estiverem operacionais e não recusarem (?) empenhar-se em combate. As outras duas manobras (político-psicológica e económico-social), cujo sucesso materializará a vitória, serão encargo do governo xiita, contando com a ajuda que os EUA entenderem e puderem oferecer. Os americanos terão dificuldades crescentes de investir grandes somas financeiras no Iraque. Tanto por dificuldades orçamentais como por eventual recusa dos democratas maioritários nas duas câmaras do Congresso. E o governo iraquiano colocará cada vez mais reticências às interferências políticas e militares dos EUA.
Se nos cingirmos à manobra militar, aquela que se encontra verdadeiramente em causa, pois, sem segurança, as outras manobras não terão sucesso, há que indagar se ela, a processar-se conforme a doutrina aconselhável (ausente até agora), apresentará potencial adequado e duração temporal suficiente. O que implicará necessidades acrescentadas em relação à data da invasão, tendo em atenção que irá ser iniciada cerca de quatro anos depois de o dever ter sido.
Convém esclarecer que, na contra-subversão, a demografia assume importância decisiva, do que resulta a necessidade de talhar o efectivo da força em função das suas características. Uma vez que todos os iraquianos, exceptuando os curdos, serão ameaças potenciais ou o meio onde elas se refugiam (insurreição e luta sectária), a expressão da presença militar deverá rondar 400.000/500.000 efectivos. Como os quatro anos já decorridos permitiram a consolidação das ameaças, a sua infiltração das forças policiais e militares nacionais, o seu acesso ao próprio poder político em funções, o estabelecimento de teias de fidelidades e de ódios com desejo de vingança que é difícil destruir, há razões para suspeitar que nem mesmo 500.000 combatentes alcançariam resultados visíveis. E, para tal se concretizar, a permanência deste efectivo deveria ser garantida por vários anos, certamente mais do que se o volume adequado de forças tivesse avançado em 2003. Lamentavelmente, são completamente impossíveis reforços desta dimensão. Muitos especialistas, a começar pelas chefias militares de Washington e pelos comandantes agora substituídos, afirmam que o exército pode entrar em ruptura, apenas com o envio de 20.000/30.000, mesmo por um período de tempo reduzido. Para não falar das dificuldades financeiras que a execução de um projecto destes implicaria, caso fosse aprovado no Congresso. A identificação das milícias com os principais partidos xiitas (a milícia Sadr com o CSRI, partido maioritário; a Mahdi com Moqtada al Sadr, apoiante do primeiro-ministro, o chefe do partido Dawa) torna irrealista a hipótese de as eliminar pela força. Os seus elementos encontram-se disseminados no exército e na polícia iraquiana, dos quais constituem a coluna vertebral. Tudo indica que elas continuarão a ser consideradas pelos xiitas como os últimos garantes da sua capacidade de submeter os sunitas e como sustentáculo da disputa política interna própria. Caso os norte-americanos venham a ultrapassar os limites que, no entendimento dos xiitas, ponham em causa este aparelho de força, o governo iraquiano poderá reagir, negando as pretensões daqueles que, cada vez mais, a população considera ocupantes. O Irão será importante em todo este contexto: deseja um Iraque o mais colaborante possível e pretende criar dificuldades aos americanos, garantindo a consolidação da sua hegemonia regional e pressionando o Ocidente de forma a obter cedências no dossier nuclear.
A insurreição sunita ligada aos baasistas incendiou-se com a execução de Saddam, cujas imagens foram intencionalmente divulgadas por radicais xiitas no poder; muitos dos líderes sunitas que aceitavam participar no processo político estão a afastar-se e a refugiar-se no estrangeiro, deixando o caminho cada vez mais livre aos jihadistas ligados à Al-Qaeda, que tudo farão para solidificar o Estado islâmico. Os árabes dos países vizinhos, com os sauditas à cabeça, tentarão reforçar a insurreição, apoiando mesmo os terroristas de que têm pavor, a fim de impedir a ascensão do poder do Irão (e do xiismo) na região. Por sua vez, os curdos tenderão a afirmar progressivamente a sua independência de facto, o que provocará o alarme dos Estados onde constituem minorias, com destaque para a Turquia. Também não é de afastar o apoio turco à insurreição, neste caso para criar problemas no Curdistão iraquiano.
Concluindo: na impossibilidade de dispor dos efectivos necessários, qualquer aumento da força norte-americana, por maior que seja, não parece ter condições de resolver a situação. Arrisca-se até a agravá-la. A solução menos má seria pôr imediatamente em prática as recomendações do relatório Baker-Hamilton, procurando preservar a capacidade de combate da força americana no teatro, começando a posicioná-la para a retirada, e colocando alguns dos seus componentes em condições de evitar o envolvimento directo e aberto dos vizinhos no conflito. Simultaneamente, negociar com quem possa ter influência no processo interno iraquiano, especialmente com o Irão e a Síria. O que pode aconselhar apenas um pequeno reforço temporário, que auxilie as operações de rotura de combate.
Tudo indica que o objectivo de Bush é evitar ser conhecido, historicamente, como o presidente que mandou invadir um país, no primeiro mandato, e retirar, no segundo, depois de ser derrotado. Existem muitas probabilidades de a "nova estratégia" se traduzir num ainda maior agravamento da situação no Iraque.
Reforçar as forças no Iraque, agora?
O relatório Baker-Hamilton aconselhava a concentração do esforço dos militares no Iraque na formação das forças nacionais, que assumiriam, faseadamente, as responsabilidades da segurança do país, até ao primeiro trimestre de 2008, altura em que as brigadas de combate americanas teriam deixado o teatro de operações (TO). Nas relações externas, sugeria a negociação com os Estados vizinhos, incluindo a Síria e o Irão, visando criar condições para efectuar a manobra militar.
Aguardava-se que fosse determinado o início da retirada, e iniciado o processo negocial, o que poderia travar a actual deterioração do potencial de combate terrestre da superpotência, em perigo de ruptura. Os EUA recuperariam a capacidade de intervir com forças terrestres em qualquer local onde possam emergir novas crises (como no Corno de África), prevenir o alastramento regional do conflito iraquiano, actuar em força no Afeganistão e agir com determinação para resolver o impasse israelo-palestiniano.
Surpreendentemente, Bush resolveu reforçar as forças no Iraque, em vez de mandar começar o processo de retirada. Contra a opinião da Junta de Chefes de Estado-Maior e dos comandantes do Central Command (general Abizaid) e do Iraque (general Casey), assim como da maioria da população norte-americana. Curiosamente, há perto de quatro anos, tinha-se negado a seguir a proposta de aumentar significativamente os meios militares para a estabilização do Iraque, que o então CEME americano considerava insuficientes.
Substituídos os responsáveis no terreno que discordam do reforço por outros que o têm vindo a advogar, Bush avança para (mais) uma "nova estratégia". Qual é a sua ideia: inverter o curso da situação no Iraque e alcançar a vitória? Ou fazer um reforço temporário, aliviando a pressão actualmente existente no terreno e iniciar conversações com os vizinhos, com a finalidade de, imediatamente a seguir, começar a retrair o dispositivo?
Pelas notícias vindas a lume, aquilo que o Presidente americano pretenderá é um impulso que consiga fazer regressar as hipóteses de vencer a guerra. Pelo que transpira dos planos militares, as primeiras operações visam criar condições para passar aos iraquianos a responsabilidade da segurança de Bagdade (no próximo Verão?).
Segundo a doutrina de contra-subversão conhecida como mais adequada (consta do manual de contra-insurreição do exército dos EUA recentemente aprovado), a submissão da insurreição exige o desenvolvimento de três manobras, intimamente coordenadas, das quais a manobra militar ficará a cargo das forças norte-americanas, embora apoiadas pelas forças iraquianas que estiverem operacionais e não recusarem (?) empenhar-se em combate. As outras duas manobras (político-psicológica e económico-social), cujo sucesso materializará a vitória, serão encargo do governo xiita, contando com a ajuda que os EUA entenderem e puderem oferecer. Os americanos terão dificuldades crescentes de investir grandes somas financeiras no Iraque. Tanto por dificuldades orçamentais como por eventual recusa dos democratas maioritários nas duas câmaras do Congresso. E o governo iraquiano colocará cada vez mais reticências às interferências políticas e militares dos EUA.
Se nos cingirmos à manobra militar, aquela que se encontra verdadeiramente em causa, pois, sem segurança, as outras manobras não terão sucesso, há que indagar se ela, a processar-se conforme a doutrina aconselhável (ausente até agora), apresentará potencial adequado e duração temporal suficiente. O que implicará necessidades acrescentadas em relação à data da invasão, tendo em atenção que irá ser iniciada cerca de quatro anos depois de o dever ter sido.
Convém esclarecer que, na contra-subversão, a demografia assume importância decisiva, do que resulta a necessidade de talhar o efectivo da força em função das suas características. Uma vez que todos os iraquianos, exceptuando os curdos, serão ameaças potenciais ou o meio onde elas se refugiam (insurreição e luta sectária), a expressão da presença militar deverá rondar 400.000/500.000 efectivos. Como os quatro anos já decorridos permitiram a consolidação das ameaças, a sua infiltração das forças policiais e militares nacionais, o seu acesso ao próprio poder político em funções, o estabelecimento de teias de fidelidades e de ódios com desejo de vingança que é difícil destruir, há razões para suspeitar que nem mesmo 500.000 combatentes alcançariam resultados visíveis. E, para tal se concretizar, a permanência deste efectivo deveria ser garantida por vários anos, certamente mais do que se o volume adequado de forças tivesse avançado em 2003. Lamentavelmente, são completamente impossíveis reforços desta dimensão. Muitos especialistas, a começar pelas chefias militares de Washington e pelos comandantes agora substituídos, afirmam que o exército pode entrar em ruptura, apenas com o envio de 20.000/30.000, mesmo por um período de tempo reduzido. Para não falar das dificuldades financeiras que a execução de um projecto destes implicaria, caso fosse aprovado no Congresso. A identificação das milícias com os principais partidos xiitas (a milícia Sadr com o CSRI, partido maioritário; a Mahdi com Moqtada al Sadr, apoiante do primeiro-ministro, o chefe do partido Dawa) torna irrealista a hipótese de as eliminar pela força. Os seus elementos encontram-se disseminados no exército e na polícia iraquiana, dos quais constituem a coluna vertebral. Tudo indica que elas continuarão a ser consideradas pelos xiitas como os últimos garantes da sua capacidade de submeter os sunitas e como sustentáculo da disputa política interna própria. Caso os norte-americanos venham a ultrapassar os limites que, no entendimento dos xiitas, ponham em causa este aparelho de força, o governo iraquiano poderá reagir, negando as pretensões daqueles que, cada vez mais, a população considera ocupantes. O Irão será importante em todo este contexto: deseja um Iraque o mais colaborante possível e pretende criar dificuldades aos americanos, garantindo a consolidação da sua hegemonia regional e pressionando o Ocidente de forma a obter cedências no dossier nuclear.
A insurreição sunita ligada aos baasistas incendiou-se com a execução de Saddam, cujas imagens foram intencionalmente divulgadas por radicais xiitas no poder; muitos dos líderes sunitas que aceitavam participar no processo político estão a afastar-se e a refugiar-se no estrangeiro, deixando o caminho cada vez mais livre aos jihadistas ligados à Al-Qaeda, que tudo farão para solidificar o Estado islâmico. Os árabes dos países vizinhos, com os sauditas à cabeça, tentarão reforçar a insurreição, apoiando mesmo os terroristas de que têm pavor, a fim de impedir a ascensão do poder do Irão (e do xiismo) na região. Por sua vez, os curdos tenderão a afirmar progressivamente a sua independência de facto, o que provocará o alarme dos Estados onde constituem minorias, com destaque para a Turquia. Também não é de afastar o apoio turco à insurreição, neste caso para criar problemas no Curdistão iraquiano.
Concluindo: na impossibilidade de dispor dos efectivos necessários, qualquer aumento da força norte-americana, por maior que seja, não parece ter condições de resolver a situação. Arrisca-se até a agravá-la. A solução menos má seria pôr imediatamente em prática as recomendações do relatório Baker-Hamilton, procurando preservar a capacidade de combate da força americana no teatro, começando a posicioná-la para a retirada, e colocando alguns dos seus componentes em condições de evitar o envolvimento directo e aberto dos vizinhos no conflito. Simultaneamente, negociar com quem possa ter influência no processo interno iraquiano, especialmente com o Irão e a Síria. O que pode aconselhar apenas um pequeno reforço temporário, que auxilie as operações de rotura de combate.
Tudo indica que o objectivo de Bush é evitar ser conhecido, historicamente, como o presidente que mandou invadir um país, no primeiro mandato, e retirar, no segundo, depois de ser derrotado. Existem muitas probabilidades de a "nova estratégia" se traduzir num ainda maior agravamento da situação no Iraque.
16 janeiro, 2007
O SIM na net
Para os que não leram um comentário de Sérgio Nunes a uma entrada anterior, alerto para uma boa iniciativa. Queixei-me no texto anterior de que o SIM não estava a aproveitar bem a comunicação na net. É com muito gosto que chamo a atenção para o sítio Referendo à Despenalização.
15 janeiro, 2007
Vai-me saindo (3)
No Público de 12.1.2007, uma das coisas mais espantosas que li ultimamente. E das mais revoltantes:
Não conheço essa senhora tida por muito "respeitável". Depois disto, fico mesmo sem qualquer vontade de a conhecer.
"Teresa Costa Macedo, secretária de Estado da Família nos anos 80, afirmou ontem, em tribunal, que os nomes de Carlos Cruz, Jorge Ritto e Carlos Silvino eram os "mais falados" por educadores e alunos, de acordo com relatórios da instituição, na altura em que tutelou a Casa Pia. A ex-secretária de Estado explicou que as informações que recebeu sobre abusos sexuais de menores vinham de relatórios da instituição que lhe foram entregues pelo então provedor, Baptista Comprido, e que tinham sido feitos com base em audições a educadores e alunos.Era de conhecimento geral na Casa Pia?! Era do conhecimento da secretária de estado?! E toda a gente se calava e dormia tranquila? Parece que sim, que toda a gente, menos aquelas infelizes crianças, com berros reprimidos a ressoar-lhes até á morte. "Mas as crianças, meu Deus porque lhes dás tanta dor?"
(…)
Costa Macedo especificou que começou por ouvir falar no nome de Jorge Ritto ainda "antes de ter a tutela da Casa Pia". E que, a partir de 1982 - ano em foram encontrados três jovens casapianos em casa daquele ex-embaixador -, lhe foi relatado o nome de Carlos Cruz. Durante o seu depoimento, referiu que só voltou a ouvir falar de Cruz nos anos 90, quando questionada pela jornalista, entretanto já falecida, Helena Sanches Osório. Costa Macedo afirmou também que Carlos Silvino, principal arguido do processo, era o nome do funcionário mais referido pelos jovens casapianos como "organizador" de práticas sexuais entre crianças e adultos. A antiga secretária de Estado chegou mesmo a afirmar que era do conhecimento geral, na Casa Pia, que Carlos Silvino aliciava crianças da instituição para páticas sexuais com adultos."
Não conheço essa senhora tida por muito "respeitável". Depois disto, fico mesmo sem qualquer vontade de a conhecer.
14 janeiro, 2007
Aborto: uma nova linha de discussão
Nos últimos dias, apareceu uma nova polémica sobre o aborto, agora entre psiquiatras: o aborto tem efeitos psicológicos, há um sindroma pós-aborto, as mulheres que abortam vêm a manifestar maior propensão para futuras doenças psiquiátricas? Sim, dizem os adeptos do não no referendo; que não está provado, dizem os defensores do sim.
A meu ver, esta questão não faz sentido. Vou dar de barato que o aborto tem consequências psicológicas (é claro que toda a mulher sofre com tal experiência) e admito que poderão até ir a casos psiquiátricos. O que me parece verdadeiramente importante é saber se essa situação não é menos acentuada no caso de um aborto praticado em ambiente médico normal e com desejável acompanhamento psicológico do que no caso do aborto clandestino.
E é óbvio, não se esqueça, que o não no referendo não vai alterar em nada a prática do aborto clandestino.
A meu ver, esta questão não faz sentido. Vou dar de barato que o aborto tem consequências psicológicas (é claro que toda a mulher sofre com tal experiência) e admito que poderão até ir a casos psiquiátricos. O que me parece verdadeiramente importante é saber se essa situação não é menos acentuada no caso de um aborto praticado em ambiente médico normal e com desejável acompanhamento psicológico do que no caso do aborto clandestino.
E é óbvio, não se esqueça, que o não no referendo não vai alterar em nada a prática do aborto clandestino.
13 janeiro, 2007
Vai-me saindo (2)
Estou sempre agora a ser surpreendido. Li há dias que o dinheiro das custas judiciais, pagas por quem tem de recorrer à justiça, vão, parcialmente, para os cofres da Ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores, bem como para as respectivas caixas de previdência.
Não dá para acreditar! Não era o salazarismo que defendia o estado corporativo?
E, haja justiça e igualdade, porque é que parte das taxas moderadoras não vai para as ordens dos médicos e dos enfermeiros ou parte do IMI para a Ordem dos Arquitectos?
Não dá para acreditar! Não era o salazarismo que defendia o estado corporativo?
E, haja justiça e igualdade, porque é que parte das taxas moderadoras não vai para as ordens dos médicos e dos enfermeiros ou parte do IMI para a Ordem dos Arquitectos?
O aborto e o não em modalidade não primária
Muito tenho escrito já em campanha pessoal pelo SIM, no referendo, mas devo comedir-me, para não cansar os leitores (aliás, creio que há na blogosfera uma certa empatia autor-leitor, o que dispensaria muito esforço de escrita redundante).
Confesso que estou um pouco preocupado. Não vejo inovação e garra na campanha do sim, mantêm-se "sound bites" venenosos, do tipo "na minha barriga mando eu", não vejo capacidade técnica. Onde estão as "petitions online", as páginas da net, os blogues dedicados? Eu já quis aderir a alguns movimentos pelo sim e não consigo contactá-los. Até há um de médicos. Não há lá ninguém que me conheça?
Em contrapartida, os defensores do não têm sido eficazes ao tornear a questão social fundamental, com coisas, por exemplo, como os custos para o SNS, sempre muito tocantes ao porta-moedas do cidadão comum. O mais mirabolante argumento que li recentemente é de Maria José Nogueira Pinto. É total tolice mas, atenção, está muito acima do terrorismo intelectual característico do não.
No essencial, o raciocínio era seguinte. Proibir o aborto é que é uma posição de esquerda (bem-vinda à esquerda, MJNP!). A esquerda olha para o progresso, para a manutenção das grandes conquistas sociais. Entre estas, a solidariedade social, a sustentabilidade das reformas e do sistema nacional de saúde. Tudo isto, é verdade, está ameaçado pela baixa da natalidade. "Ergo", aumentar essa taxa por via da despenalização do aborto (logo, aumento do aborto! Ah, aí é que MJNP fica calada, porque, reconheço, não é uma aldrabona) vai contra os interesses da esquerda que MJNP agora parece ter em grande preocupação.
Minha senhora, não é parva nenhuma, mas não incorra num erro muito vulgar entre a nossa gente inteligente, que é o de pensar que todos os outros são parvos.
P. S. – Volto a escrever: tenho o palpite de que, apesar de maior envolvimento do PS, o resultado deste referendo vai ser igual ao anterior, não em relação à maioria relativa de votos, mas sim em relação à abstenção e ao seu resultado de não vinculação (na prática, viu-se como afinal pode ser vinculativo). Vivi na terra dos referendos, a Suíça e vi que só se referendam coisas muito primárias e inteligíveis. Imaginam o que teria sido Zapatero sujeitar a referendo o casamento dos homossexuais, que a sua maioria fez aprovar nas Cortes? Entre nós, sobre este referendo sobre o aborto, a posição do PCP foi muito clara, a favor dos poderes parlamentares, e aplaudo-a. A do PS, eterno oscilante e albergue espanhol, compreendo-a. A do Bloco é que não. Ser esquerda não é só masturbação política, coisa juvenil que se ultrapassa com a maturidade. E Louçã e amigos já passaram a idade da acne.
Confesso que estou um pouco preocupado. Não vejo inovação e garra na campanha do sim, mantêm-se "sound bites" venenosos, do tipo "na minha barriga mando eu", não vejo capacidade técnica. Onde estão as "petitions online", as páginas da net, os blogues dedicados? Eu já quis aderir a alguns movimentos pelo sim e não consigo contactá-los. Até há um de médicos. Não há lá ninguém que me conheça?
Em contrapartida, os defensores do não têm sido eficazes ao tornear a questão social fundamental, com coisas, por exemplo, como os custos para o SNS, sempre muito tocantes ao porta-moedas do cidadão comum. O mais mirabolante argumento que li recentemente é de Maria José Nogueira Pinto. É total tolice mas, atenção, está muito acima do terrorismo intelectual característico do não.
No essencial, o raciocínio era seguinte. Proibir o aborto é que é uma posição de esquerda (bem-vinda à esquerda, MJNP!). A esquerda olha para o progresso, para a manutenção das grandes conquistas sociais. Entre estas, a solidariedade social, a sustentabilidade das reformas e do sistema nacional de saúde. Tudo isto, é verdade, está ameaçado pela baixa da natalidade. "Ergo", aumentar essa taxa por via da despenalização do aborto (logo, aumento do aborto! Ah, aí é que MJNP fica calada, porque, reconheço, não é uma aldrabona) vai contra os interesses da esquerda que MJNP agora parece ter em grande preocupação.
Minha senhora, não é parva nenhuma, mas não incorra num erro muito vulgar entre a nossa gente inteligente, que é o de pensar que todos os outros são parvos.
P. S. – Volto a escrever: tenho o palpite de que, apesar de maior envolvimento do PS, o resultado deste referendo vai ser igual ao anterior, não em relação à maioria relativa de votos, mas sim em relação à abstenção e ao seu resultado de não vinculação (na prática, viu-se como afinal pode ser vinculativo). Vivi na terra dos referendos, a Suíça e vi que só se referendam coisas muito primárias e inteligíveis. Imaginam o que teria sido Zapatero sujeitar a referendo o casamento dos homossexuais, que a sua maioria fez aprovar nas Cortes? Entre nós, sobre este referendo sobre o aborto, a posição do PCP foi muito clara, a favor dos poderes parlamentares, e aplaudo-a. A do PS, eterno oscilante e albergue espanhol, compreendo-a. A do Bloco é que não. Ser esquerda não é só masturbação política, coisa juvenil que se ultrapassa com a maturidade. E Louçã e amigos já passaram a idade da acne.
12 janeiro, 2007
Vai-me saindo (1)
O jornal de ontem deu-me motivos para algumas notas, que merecerão alguma reflexão. Uma não, tem reacção rápida, orgulho vibrante de ser português, ao ler a lista dos 100 grandes portugueses. Confesso que parei uns minutos antes de ler a lista e pensei: "não será que aí estão Pedro Hispano, Pedro Nunes, D. João II, Damião de Gois, etc.? Aposto, já conheço os intelectualoides cá da praça. Mas alguém terá tido o bom senso, a sabedoria, o sentido histórico, o patriotismo, de indicar o mais óbvio português de sempre?"
Fui ver e respirei de alívio. Afinal, a cultura não é coisa que ainda continuemos a importar de Paris pelo paquete e que nos fica curta nas mangas. Felizmente, ainda há portugueses de gema, daqueles que nunca chamarão uma filha de Carolina, nome doravante proscrito. Lá está, para sono tranquilo meu hoje como nunca, "Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Club do Porto desde há 25 anos, 1937-...". Ah, carago, se este país não tivesse muaros, que bão que era!
Fui ver e respirei de alívio. Afinal, a cultura não é coisa que ainda continuemos a importar de Paris pelo paquete e que nos fica curta nas mangas. Felizmente, ainda há portugueses de gema, daqueles que nunca chamarão uma filha de Carolina, nome doravante proscrito. Lá está, para sono tranquilo meu hoje como nunca, "Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Club do Porto desde há 25 anos, 1937-...". Ah, carago, se este país não tivesse muaros, que bão que era!
Analogia fisiológica
Vou perdendo a minha memória de elefante e, por isso, não posso garantir mas creio que foi Buffon que disse que "a mente segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis".
Podemos alargar as analogias. Há pessoas que mostram na expressão uma dificuldade de secreção de pensamento só comparável às expressões de esforço dos coitados que, sentados na retrete, tentam vencer a prisão de ventre.
11 janeiro, 2007
O caso do Público
Continuando a minha nota anterior, merece apreço o destaque que a direcção do Público dá ontem ao caso de "uma forma de plágio". Fico a aguardar o resultado da reunião anunciada do conselho de redacção. É reconfortante ver-se isto, como sinal de sentido de responsabilidade, por vezes muito ausente na nossa comunicação social. Lembram-se de como rapidamente se passou uma esponja sobre o caso Clara Pinto Correia?
Mais uma vez, parabéns ao provedor Rui Araújo pela sua independência corajosa, ao jornal pelo seu sentido de responsabilidade e, indirectamente, aos leitores. Infelizmente, parece é que a jornalista não tem mesmo vergonha. Aguardo com triste expectativa a carta dela que sei que será publicada na próxima coluna do provedor. O barafustar é uma típica reacção portuguesa de incapacidade de assumir honesta e humildemente as responsabilidades (e as consequências!).
Provavelmente, haverá também mais culpas. Estou certo de que isto nunca se teria passado no tempo de José Vítor Malheiros como editor de ciência. Para que serve um editor? Como é que se revê um artigo sem se reparar que até há parte escrita em inglês? "I expect to have this evening your letter of resignation on my desk", diria um director ("editor") do Times, do Guardian ou do Washington Post.
P. S., 12.1.2007 - Estou desiludido. A direcção do Público comprometeu-se a publicar toda a documentação sobre este assunto. Onde para a acta da reunião do conselho de redacção? Ainda não a vi publicada.
P. S., 13.1.2007 - Penitencio-me. Afinal, o Público está a disponibilizar toda a documentação, mas online, com chamada de atenção na edição impressa pra o seu sítio na net.
Mais uma vez, parabéns ao provedor Rui Araújo pela sua independência corajosa, ao jornal pelo seu sentido de responsabilidade e, indirectamente, aos leitores. Infelizmente, parece é que a jornalista não tem mesmo vergonha. Aguardo com triste expectativa a carta dela que sei que será publicada na próxima coluna do provedor. O barafustar é uma típica reacção portuguesa de incapacidade de assumir honesta e humildemente as responsabilidades (e as consequências!).
Provavelmente, haverá também mais culpas. Estou certo de que isto nunca se teria passado no tempo de José Vítor Malheiros como editor de ciência. Para que serve um editor? Como é que se revê um artigo sem se reparar que até há parte escrita em inglês? "I expect to have this evening your letter of resignation on my desk", diria um director ("editor") do Times, do Guardian ou do Washington Post.
P. S., 12.1.2007 - Estou desiludido. A direcção do Público comprometeu-se a publicar toda a documentação sobre este assunto. Onde para a acta da reunião do conselho de redacção? Ainda não a vi publicada.
P. S., 13.1.2007 - Penitencio-me. Afinal, o Público está a disponibilizar toda a documentação, mas online, com chamada de atenção na edição impressa pra o seu sítio na net.
10 janeiro, 2007
Aborto: viver nas nuvens?
Em artigo recente, no Público ("Liberdade para não abortar", 4.1.2007), Eurico Figueiredo defende a tese de que não há necessidade de despenalizar o aborto, porque a actual lei é uma boa lei, como se prova, por analogia, com o êxito da lei espanhola, muito semelhante. Dito assim, ninguém o levaria a sério, mas é preciso acentuar que EF propõe uma coisa bem importante, ao que julgo entendimento corrente na Espanha: que passem a ser considerados como riscos para a saúde psíquica da mulher (previstos na nossa actual lei) os motivos sociais e económicos que estão na origem da generalidade dos abortos clandestinos e ilegais.
Escreve EF que "Ou na Espanha não há esquerda nem agnósticos e ateus, ou então esta verdade revela até que ponto, em vinte e tantos anos, os activistas do direito da mulher, as mulheres interessadas e o Estado não procuraram aproveitar todas as possibilidades que a mesma proporciona. O que revela a duplicidade (ou o desleixo) do estado e a pobreza dos movimentos cívicos (do civismo...) no nosso país. É mais fácil fazer demagogia e agitação política do que resolver os problemas enquadráveis em leis existentes!".
A meu ver, esquece uma outra diferença, fundamental para esta questão: a atitude geral da classe médica. Em Portugal, já é difícil encontrar médicos que não invoquem a objecção de consciência ou que não levem ao extremo de rigor a verificação das condições legais. Flexibilizar mais estas condições, como EF defende, em vez da liberalização, parece-me solução totalmente inconsequente na prática.
Pela mesma ordem de razões, fico espantado com outro argumento de EF. Segundo ele, a aplicação da actual lei flexibilizada seria um grande benefício para a mulher. Exigindo que a decisão fique, em última instância, a cargo de peritos, desoneraria a mulher das consequências psicológicas da decisão de abortar. É mesmo viver nas nuvens.
Escreve EF que "Ou na Espanha não há esquerda nem agnósticos e ateus, ou então esta verdade revela até que ponto, em vinte e tantos anos, os activistas do direito da mulher, as mulheres interessadas e o Estado não procuraram aproveitar todas as possibilidades que a mesma proporciona. O que revela a duplicidade (ou o desleixo) do estado e a pobreza dos movimentos cívicos (do civismo...) no nosso país. É mais fácil fazer demagogia e agitação política do que resolver os problemas enquadráveis em leis existentes!".
A meu ver, esquece uma outra diferença, fundamental para esta questão: a atitude geral da classe médica. Em Portugal, já é difícil encontrar médicos que não invoquem a objecção de consciência ou que não levem ao extremo de rigor a verificação das condições legais. Flexibilizar mais estas condições, como EF defende, em vez da liberalização, parece-me solução totalmente inconsequente na prática.
Pela mesma ordem de razões, fico espantado com outro argumento de EF. Segundo ele, a aplicação da actual lei flexibilizada seria um grande benefício para a mulher. Exigindo que a decisão fique, em última instância, a cargo de peritos, desoneraria a mulher das consequências psicológicas da decisão de abortar. É mesmo viver nas nuvens.
07 janeiro, 2007
Ignorante!
Em que mundo ando eu? Na minha carta de hoje ao provedor do Público, e comentando o destaque do jornal acerca da indústria automóvel, estranhei o excesso de referência à Toyota. Esclarece-me um amigo que o grupo Sonae, proprietário do Público, tem posição dominante na Salvador Caetano, representante da Toyota em Portugal.
Vou continuar a ler o jornal, em que escrevem tão bons amigos meus?
Cada vez mais me sinto o desprotegido "menino da sua mãe". E não há cigarreira que me valha e que aguente as balas. Porque raio é que avós e pais me educaram para o seu mundo sonhado, em vez de me treinarem para me defrontar eficazmente com este enorme bairro de lata, de feios, porcos e maus?
E porque é que o destino me fez a partida de me dar um emprego feliz de trinta anos na melhor instituição portuguesa, para depois ser atirado para a mais horrorosa das instituições, em que tive o sonho estúpido de que podia, como director efémero e logo despedido, transformar alguma coisa e onde só consegui uma enorme colecçção de calúnias, de experiências de confronto com a maior estupidez catedrática, de assassínios de carácter (ao menos que tivessem nível)?
Nestas alturas, só me apetece dizer, em alto berro e com todas as letras, PORRA!!!
Mas também dizer outra coisa. Tenho uma reforma dourada, ninguém me pode tocar, sou totalmente independente, penso o que digo e digo o que penso. E, essencialmente, o que digo é o que muitos gostariam de dizer: o rei vai nu!
Vou continuar a ler o jornal, em que escrevem tão bons amigos meus?
Cada vez mais me sinto o desprotegido "menino da sua mãe". E não há cigarreira que me valha e que aguente as balas. Porque raio é que avós e pais me educaram para o seu mundo sonhado, em vez de me treinarem para me defrontar eficazmente com este enorme bairro de lata, de feios, porcos e maus?
E porque é que o destino me fez a partida de me dar um emprego feliz de trinta anos na melhor instituição portuguesa, para depois ser atirado para a mais horrorosa das instituições, em que tive o sonho estúpido de que podia, como director efémero e logo despedido, transformar alguma coisa e onde só consegui uma enorme colecçção de calúnias, de experiências de confronto com a maior estupidez catedrática, de assassínios de carácter (ao menos que tivessem nível)?
Nestas alturas, só me apetece dizer, em alto berro e com todas as letras, PORRA!!!
Mas também dizer outra coisa. Tenho uma reforma dourada, ninguém me pode tocar, sou totalmente independente, penso o que digo e digo o que penso. E, essencialmente, o que digo é o que muitos gostariam de dizer: o rei vai nu!
Carta ao provedor do leitor
Há coincidências que parecem mesmo uma provocação. Escrevi-o em resposta a um comentário do Henrique à minha entrada anterior. Aqui vai, por conseguinte, a tal mensagem que estava a escrever a Rui Araújo, provedor do leitor do Público, sobre a sua crónica de hoje, "Uma forma de plágio" (só o título já é pedrada no charco).
Caro Sr. Provedor,
1. A leitura da sua página é minha obrigação dominical, sempre com o maior apreço. Hoje, justifica que lhe dirija uma mensagem de felicitações pelo seu desassombramento corajoso. Em boa justiça, as felicitações são extensivas ao jornal, que tem a honestidade de publicar coisa tão devastadora. Que jornalistas temos nós? Clara Barata não é uma principiante. Errou gravemente, ofendeu a ética mínima do rigor intelectual (não apenas a ética profissional). No entanto, o que me impressiona mais é a sua arrogância desonesta nas respostas ao provedor. Ela devia era estar à procura do mais fundo buraco para se esconder, de vergonha, mas não, até parece "gozar".
2. Se os jornalistas experientes são assim, que dizer dos novatos (presumo que o seja C. G.) em relação a bem escrever? Na página 26: "Sabe-se que o avião desviou-se da rota (...)". Era bom que o jornalista soubesse "que o avião se desviou da rota". E para que serve o editor?
3. E, à Steve Jobs, "uma última coisa", parecendo que é coisa sem importância. O Destaque de hoje, dedicado à evolução da indústria automóvel, é da maior importância, mas parece-me pouco ponderado. Em parte muito considerável, é quase publicidade de uma marca. Não gosto de fazer processos de intenções, mas pergunto-me quantos leitores terão ficado curiosos acerca do valor que a Toyota pagou ao jornal. Não basta que a mulher de César seja séria, é preciso também parecê-lo.
Com muita estima,
A vergonha de ser português?
Devo confessar que partilho frequentemente desse sentimento geral de vergonha de ser português. Felizmente, há ocasiões em que me redimo, com a punição, já verão porquê, de bastantes dores nas pernas e nas costas. Fui à exposição de Amadeo e pensei em três bons motivos de satisfação de ser português.
Primeiro, obviamente e sem mais palavras, o próprio Amadeo.
Segundo, centenas de pessoas em bicha, a engrossar cada vez mais, mais de uma hora de espera para poder entrar na exposição. Especialmente notório, alguns grupos de crianças com a sua professora.
Terceiro, houve e há portuguesas de grande visão e determinação que souberam criar e manter hoje essa obra magnífica que é a Fundação Gulbenkian (a herança foi determinante, mas o dinheiro, só por si, é coisa morta).
Os portugueses estão cada vez melhores, Portugal é que não. Isto pode parecer dito sem sentido, mas é porque não me sei explicar.
Primeiro, obviamente e sem mais palavras, o próprio Amadeo.
Segundo, centenas de pessoas em bicha, a engrossar cada vez mais, mais de uma hora de espera para poder entrar na exposição. Especialmente notório, alguns grupos de crianças com a sua professora.
Terceiro, houve e há portuguesas de grande visão e determinação que souberam criar e manter hoje essa obra magnífica que é a Fundação Gulbenkian (a herança foi determinante, mas o dinheiro, só por si, é coisa morta).
Os portugueses estão cada vez melhores, Portugal é que não. Isto pode parecer dito sem sentido, mas é porque não me sei explicar.
06 janeiro, 2007
Um caso trivial
Há casos triviais, pequenas histórias quase sem significado, a não ser para os envolvidos, que, por vezes, fazem pensar. Segundo notícia de hoje no Público, uma família começou a preparar os funerais da mãe idosa, falecida num hospital. Filhos emigrantes em França já se tinham posto à estrada, quando tudo ficou em suspenso por suspeita de um agente funerário de que podia haver erro. Infeliz coincidência, duas doentes com nomes muito parecidos.
Louvavelmente, o hospital quer apurar responsabilidades, saber quem e como prestou a informação à família, se a culpa não terá sido de má identificação facultada pela família, ao indagar. Não consegue, a família recusa o contacto.
É aqui que o caso dá que pensar. Segundo um familiar, "a gente nunca sabe quando vai voltar a precisar deles". E, como a mãe, felizmente, ainda está viva, adianta "quem é pobre nunca tem razão, sei lá se ainda se vingam nela. Pobre tem de comer e calar".
A minha reacção imediata foi interrogar-me: Como é que ainda se pode pensar assim no Portugal de hoje? Como é que se pode sentir assim tanto medo, tanta desprotecção? Como é que se pode automutilar tanto a cidadania? Mas, depois, reflecti. É mesmo totalmente incompreensível que se pense e se sinta assim?
Louvavelmente, o hospital quer apurar responsabilidades, saber quem e como prestou a informação à família, se a culpa não terá sido de má identificação facultada pela família, ao indagar. Não consegue, a família recusa o contacto.
É aqui que o caso dá que pensar. Segundo um familiar, "a gente nunca sabe quando vai voltar a precisar deles". E, como a mãe, felizmente, ainda está viva, adianta "quem é pobre nunca tem razão, sei lá se ainda se vingam nela. Pobre tem de comer e calar".
A minha reacção imediata foi interrogar-me: Como é que ainda se pode pensar assim no Portugal de hoje? Como é que se pode sentir assim tanto medo, tanta desprotecção? Como é que se pode automutilar tanto a cidadania? Mas, depois, reflecti. É mesmo totalmente incompreensível que se pense e se sinta assim?
04 janeiro, 2007
Argumentos inatacáveis
Está-me a surpreender a capacidade de imaginação dos adeptos do não, no referendo sobre o aborto. Agora é a deputada Matilde Sousa Franco, que vem dizer que "votar 'não' é que é moderno". O raciocínio é lapidar. Grande parte dos problemas sociais actuais (sustentabilidade da segurança social, custos da saúde) derivam do envelhecimento da população. Donde, é necessário estimular a natalidade. Donde, é necessário reprimir o aborto.
Inatacável. Toda a gente sabe que o aborto é o grande responsável pela quebra da taxa de natalidade! Mas, a sério, fico preocupado com a possibilidade de esta deputada, com esta lógica, vir a propor uma lei de proibição da pílula anticoncepcional.
À margem. Na mesma página do jornal, uma notícia surrealista. O MIC de Manuel Alegre vai fazer um pré-referendo entre os seus membros (quantos, de entre o milhão de votos, eu incluído?) para decidir se apoia o sim ou o não. Ridículo, patético ou ambas as coisas?
Inatacável. Toda a gente sabe que o aborto é o grande responsável pela quebra da taxa de natalidade! Mas, a sério, fico preocupado com a possibilidade de esta deputada, com esta lógica, vir a propor uma lei de proibição da pílula anticoncepcional.
À margem. Na mesma página do jornal, uma notícia surrealista. O MIC de Manuel Alegre vai fazer um pré-referendo entre os seus membros (quantos, de entre o milhão de votos, eu incluído?) para decidir se apoia o sim ou o não. Ridículo, patético ou ambas as coisas?
02 janeiro, 2007
Big brother
Cada vez mais frequentemente, quando viajo, compro o bilhete online. Para isto, tenho de fornecer o meu endereço de correio electrónico e os dados do cartão de crédito, seguro de que é mantida a confidencialidade. Isto passa-se com muitos europeus, apostaria que largas centenas de milhar, que, anualmente, viajam nestas condições para os EUA.
Não é verdade. Por acordo recente, entre o governo dos EUA e a Comissão Europeia, os serviços secretos americanos têm direito a acesso àqueles dados, desde que a viagem para os "states" tenha sido paga com cartão de crédito. E informação durante quanto tempo para trás? Pior, durante quanto tempo para a frente? E em que termos? É possível que os EUA tenham assumido condições de "undertaken" (compromissos de auto-limitação), mas que são sempre secretos.
O mais grave talvez ainda seja outra coisa: que legitimidade tem a CE para negociar em questão tão melindrosa, à revelia dos estados membros?
Não é verdade. Por acordo recente, entre o governo dos EUA e a Comissão Europeia, os serviços secretos americanos têm direito a acesso àqueles dados, desde que a viagem para os "states" tenha sido paga com cartão de crédito. E informação durante quanto tempo para trás? Pior, durante quanto tempo para a frente? E em que termos? É possível que os EUA tenham assumido condições de "undertaken" (compromissos de auto-limitação), mas que são sempre secretos.
O mais grave talvez ainda seja outra coisa: que legitimidade tem a CE para negociar em questão tão melindrosa, à revelia dos estados membros?
Subscrever:
Mensagens (Atom)