05 agosto, 2007

Nota gastronómica (XIX)


Utensílios (in)dispensáveis – a sertã

Com coisas metidas pelo meio, já há algum tempo que não voltava a este tema. Aqui vai mais uma coisa que não pode ser considerada ausência grave em nenhuma cozinha de amador mas que é bem útil e, pelo menos na minha terra, até é mesmo indispensável para a cozinha tradicional. O que a define é ser uma superfície plana de grande área e em material de ir ao lume, a seco. Engordurar não, senão é frigideira. Quando muito, um pouco de polvilhado de farinha. O segredo é o da temperatura, mas não posso dar lições. Vão experimentando e aprendendo.

Já tive uma em "barro da vila", de mestre José, de Vila Franca do Campo, mas rachou-se de velhice. Hoje tenho uma em aço inox, como se vê na fotografia (não liguem à coisa branca pousada na sertã, um maçarico, de que falarei um dia destes). O resultado pode ser correctamente designado como "assado na chapa", uma velhíssima maneira de se preparar bacalhau, por exemplo. Cá em casa, assado na sertã vai com tudo, muito mais vulgarmente do que grelhados: rosbife, panquecas, crepes, lombos de peixe, bacalhau, até a porcaria das febras de porco.

"Charrinhos" assados na sertã, embrulhados em farinha de milho e cobertos depois com molho de salsa verde, com batatas recheadas com malagueta, que delícia ilhoa. Também o bolo de sertã da minha terra. Muito simples: 1 kg de farinha de milho e ½ kg de farinha de milho, na panela, com sal, acrescentando água e mexendo, para papa. Arrefecer e amassar bem à mão. Tender sobre pano enfarinhado e assar na sertã, já bem quente, no ponto em que um pouco de farinha polvilhada fica rapidamente loura (receita tradicional de S. Miguel, recolhida por Augusto Gomes).

Guardo para o fim o meu supra-uso da sertã, para salmonetes à setubalense. Conheço receitas que recomendam fritá-los, outras assá-los no forno. Também grelhados no carvão. Modernamente, como é tudo grelhado, é assim que os preparam nos restaurantes finaços, coisa que eu detesto. Para mim, assados na sertã (sem escamar!). Ainda por cima, tem a vantagem de, ao comer, a pele se descolar com um simples golpe de faca.

Como bónus, a preparação à setubalense. Indispensável são os fígados, coisa que a minha vendedora já sabe que é essencial guardar-me, quando encomendo os peixes de vésoera. Homenageando o mestre, e sem desprimor para a boa receita de M. Lourdes Modesto, aqui vai a de Olleboma, com ligeiras modificações técnicas, não significativas, mas que se justificam para tão soberba coisa.
Reduzir em lume forte, até metade, 1 copo de vinho branco com 1 cebola média picada fino. Juntar os fígados e ferver durante mais 2 minutos, baixando o lume. Passar pelo chinês ou, na falta, por um vulgar passador de rede, mas pressionando muito bem com uma colher para deixar passar o máximo da mistura. Bater ligeiramente, aos poucos, fora do lume, com 200 g de manteiga derretida, separada do depósito branco do fundo. Temperar com flor de sal, pimenta, 1 c. de sopa de sumo de limão. Reaquecer, sem deixar ferver e polvilhar com salsa picada.
O meu toque pessoal, a evocar açorianices, é o uso de sumo de limão galego em vez do sumo de limão (como em muitos outros pratos e receitas minhas). Quando não tenho limão galego, recebido obrigatoriamente dos Açores e só no inverno, junto ao sumo de limão um pouco de sumo de laranja, o que me parece que não destoa do "à setubalense".

Claro que, com isto, apenas umas batatinhas cozidas no ponto certo, novas quando é altura, e um pouco de legumes, só com o molho do peixe. E um Donatário, dever meu de chamada de atenção para um grande vinho do meu amigo Luís Brum.

1 comentário:

LCV disse...

Caro João,

Em Sesimbra faz-se uma versão menos elaborada do molho de figados que passa apanas por derreter a manteiga juntar os figados e ir desfazendo lentamente. No final juntar um pouco de limão e sal e espalhar sobre o salmonete (no caso, grelhado).
Luís Vaz