29 outubro, 2006

Portugal a mudar? (II)

Na entrada anterior sobre Portugal a mudar referi-me à persistência de tipos queirozianos. Não é só Eça que ainda mantém actualidade. Leia-se Antero e o seu diagnóstico na célebre conferência do Casino, de 1871 ,"Causas da decadência dos povos peninsulares". Claro que está datado, mas não definitivamente arrumado para os arquivos.
Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse tumulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos, que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os germens, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indl1stria, ligando-se assim Intimamente ao que há de mais vital nos povos - estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem bus¬car e encontrar as causas da decadência da Península.

Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, comreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

Notas soltas

1. Há uma coisa que ainda não percebi, certamente por minha incapacidade, na questão do défice tarifário da electricidade. Quer dizer que a electricidade distribuída custa mais do que as receitas obtidas junto dos consumidores? Isto faz-me lembrar a velha questão dos seguros do ramo automóvel, que parece darem prejuízo, sem que as companhias vão à falência, porque outros ramos compensam. O que me interessa é o resultado global da empresa.

Fui ver as contas da EDP de 2005. O resultado líquido foi de 1071 milhões de euros (ME), o que representa 11% do volume de negócios. Em relação a 2004, o resultado do exercício aumentou 243% e, extrapolando a última situação de 2006, o resultado será inferior em 30% ao de 2005, mas ainda assim uns confortáveis 750 ME. Não sei muito de contas, mas apesar de tudo o suficiente para pedir melhor esclarecimento sobre esse aumento das tarifas.

2. Tem estado em foco o desmentido das promessas eleitorais. Não sou tão ingénuo que pense que todas as promessas eleitorais são apresentadas como compromisso de honra e que o seu não cumprimento é batota política, como disse o candidato derrotado. Qual é o partido excepção? Mas talvez seja suficientemente ingénuo para pensar que há aqui outro aspecto a considerar: com que consistência técnica e política se fazem as promessas, eventualmente bem intencionadas? Mas pode-se deixar de fazer promessas eleitorais?

Não creio que seja tudo desonestidade eleitoralista. Os partidos, mesmo os mais credíveis, estão desprovidos de bons gabinetes de estudo e não temos a tradição do governo-sombra. Enquanto estão na oposição, habituam-se a usar superficialmente dados técnicos para fazer oposição. Só ao chegarem ao governo e ao estudo a sério dos dossiês é que vêem o que é a realidade. Independentemente de quem é governo e de quem é oposição, em cada momento, acho que "oposição, precisa-se".

3. Li há dias – infelizmente não consigo indicar a referência – a notícia da criação de um novo partido, algures na Europa (Holanda?): o partido da net. Não tem um programa apriorístico. Ele é feito por compilação de propostas, cada uma delas resultante da votação maioritária na internet. Pode parecer coisa engraçada, mas dá que pensar, como perversão da política. Queira-se ou não, ainda há ideologias, mesmo que hoje as identifiquemos com um corpo difuso de valores e propostas, difuso mas coerente.

Transformar um programa partidário – ou, mais no concreto, um programa eleitoral – numa amálgama de opiniões soltas expressas na net (com que controlo?) é um dos exemplos do que me começa a atemorizar em relação a coisa tão magnífica como é a internet. Junte-se os blogues anónimos caluniadores, o jogo duplo de jornalistas-bloguistas, a desinformação rude de muitos artigos da wikipédia, a violação da privacidade pelo maremoto do "spam", os riscos do "phishing", e há razões para se pensar que nem tudo é a maravilha prometida ou adivinhável.

4. O Público traz hoje uma crónica de Francisco Teixeira da Mota sobre possíveis riscos do cartão único. Fez-me lembrar que, muitas vezes, uma simples e boa mudança é encravada por um projecto de grande mudança. Urgente, para mim, era mudar o formato do BI, tal como se fez com a carta de condução. Preciso da velha carteira para o guardar, quando todos os meus cartões vão para o porta-moedas, no formato hoje usual, 8,5x5,5. Para quê, no BI, a filiação e a naturalidade? E a impressão digital, como é que, na prática, é comparada com a minha?

28 outubro, 2006

De um ignorante em economia

Vivemos numa certa chantagem de que os indivíduos é que devem pagar a crise, porque as empresas são sagradas, são a fonte da riqueza colectiva. Não engulo isto bem, mas não tenho a base de conhecimentos que exijo sempre a mim próprio antes de opinar. Por isto, escrevi a um amigo, economista reputado.
Vou-te fazer um desafio. A propósito do anúncio do aumento das tarifas da electricidade, mas muito mais comedido para as empresas, logo veio o argumento da competitividade nacional. Tenho pensado nisto, mas não tenho estofo de economia para escrever.

As empresas, sem discriminação, são beneficiadas com pequena carga fiscal de IRC e têm benefícios e subsídios. As pessoas estão cada vez mais sujeitas a avaliação, as empresas não, recebem por igual. Todas parecem contribuir igualmente para a tal competitividade.

A economia empresarial tem um retorno público, em termos de riqueza nacional, mas um importante retorno privado. Como equilibrar, em termos de justiça social?

E, em termos de riqueza nacional, não seria mais eficaz deixar cair as arcaicas e ocupar o espaço de mercado com as inovadoras e maiores criadoras de riqueza?

Mas uma empresa também são pessoas. A falência das que sobrecarregam o orçamento de todos nós tem os custos dos despedimentos. O que será do Vale do Ave e dos têxteis?

Isto sugere-te alguma escrita? Talvez não me tenha feito perceber, pergunta.
Respondeu-me:
Meu caro, tu acabaste de descrever o processo "the criative destruction" do Joseph Schumpeter. Na verdade o problema é sempre o mesmo: as pessoas. Voltarei.
Confesso que isto não me diz muito, por mais que me possa envaidecer conhecer Schumpeter sem o conhecer, mas faz-me esperar pelo "voltarei". Depois darei notícias.

Portugal a mudar?

Creio que ninguém contesta que, em menos de uma geração e falando só depois do 25 de Abril, Portugal mudou profundamente. Novas empresas competitivas e baseadas na inovação, rede viária notável, novos hospitais, cobertura escolar, educação infantil, desenvolvimento exponencial da investigação científica, tanto mais, sem a preocupação de ordenar ou completar esta lista.

Mas isto significa que os portugueses mudaram? A resposta parece linear, se Portugal mudou é porque os portugueses mudaram. No entanto, a pergunta encerra um aspecto essencial que pode não se reflectir na mudança económica. Mudaram as mentalidades? Um queiroziano inveterado dirá que não. Veja-se a galeria dos personagens magnífica e tristemente típicos da "corja": Abranhos, Acácio, Gouvarinho, Dâmaso, Palma, até o próprio Fradique, um nefelibata diletante. Não estão todos por aí?

No entanto, devemos moderar a nossa tendência masoquista. No passado dia 21, o Público deu destaque a um inquérito sobre questões ditas fracturantes, que revelam bem a evolução da mentalidade.

Todas as seguintes perguntas tiveram resposta maioritariamente favorável: Educação sexual na escola? Legalização da eutanásia, a pedido do doente? Legalização da prostituição? Ordenação de mulheres pela Igreja Católica? Utilização de embriões para investigação em células estaminais? Quotas para mulheres em cargos políticos electivos? A maioria também recusa a pena de morte para homicidas. Tiveram resposta negativa as perguntas: Legalização do consumo de drogas leves? Adopção de crianças por homossexuais?

Parece-me que, em geral, estas respostas revelam uma alteração de atitudes inimaginável há trinta anos. No entanto, haja cautela. Uns dias depois, no mesmo jornal, um artigo interessante de Pedro Magalhães mostra que inquéritos que apelam a opiniões são pouco fiáveis e por vezes até com resultados contraditórios, contra o que acontece com as sondagens sobre decisões, como as eleitorais.

Repare-se também que este inquérito do Público versa principalmente o domínio dos valores morais e dos costumes. No entanto, a ética é muito mais ampla. Para me convencer da mudança de mentalidade dos portugueses, gostava de ver os resultados de um inquérito que incluísse, por exemplo, as seguintes perguntas:

- Um estudante apanhado a usar cábulas num exame deve ser expulso da universidade?
- É aceitável o "dinheiro para a cervejinha", na repartição pública?
- Fugir aos impostos é sinal de esperteza?
- Exige sempre factura com IVA?
- Já alguma vez reclamou, como consumidor?
- A auto-exigência no trabalho é um fardo ou um dever ético?
- Já alguma vez foi a uma assembleia de freguesia?
- Vai às reuniões de pais da escola dos seus filhos?
- Conhece o programa do partido em que vota?
- Tem algumas plantas em casa, nem que seja num vaso?
- Sabe de cor a letra do hino nacional?
- Já alguma vez "meteu uma cunha"?
- Etc., etc.

25 outubro, 2006

O anonimato na blogosfera

Está em foco o caso do alegado plágio de Miguel Sousa Tavares, levantado por um blogue que a ética me impede de identificar, até o caso estar devidamente apurado. O que me leva a escrever é a afirmação do blogue, acerca da acusação de anonimato, de que se contam pelos dedos de uma mão os blogues com autor identificado.

É descarada mentira. Basta ver as muitas dezenas dos nossos blogues mais lidos, todos com autores identificados (e outros menos lidos, como os meus). Em certas condições e em alguns tipos de escrita, nada tenho contra o pseudónimo. É o caso da literatura. Ainda hoje há pouca gente que conheça os nomes reais de Miguel Torga, Júlio Dinis, Bernardo Santareno, tantos mais. Na época, ninguém sabia quem eram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou Ricardo Reis. Em jovem, conheci amigos (e talvez seus alunos) que não associavam os nomes de António Gedeão e de Rómulo de Carvalho. Se um autor de um blogue de poesia ou de simples opinião pessoal quiser usar um pseudónimo ou ficar anónimo, o mais que pode acontecer é não receber no café a possível gratificação de elogio.

Outra coisa é o blogue informativo, de discussão política, com frequente referência a outras pessoas, mais ou menos públicas. Neste caso, passou a quase órgão de comunicação social. Tem responsabilidades para com os leitores e para com as pessoas visadas. A regra essencial da comunicação social é o compromisso indissociável entre liberdade de expressão e responsabilidade por essa expressão, quando ela se torna crime, designadamente em caso de difamação. Para isto, obviamente, tem de haver um nome. Se não, é como carta anónima, coisa que a boa educação diz que deve ir logo para o lixo.

Que tal uma campanha de todos os blogues sérios, junto dos seus leitores, para recusa de leitura dos blogues-pasquim?
Também estou a reflectir sobre uma regra minha: não aceitar comentários anónimos ou sem indicação de endereço de correio electrónico. Afinal, o autor pode ser responsabilizado por tudo o que deixa aparecer no seu blogue.

O quarto poder

Uma nota anterior, sobre um erro do Público, pode parecer menor, mas deve fazer pensar. O cidadão comum vive hoje numa atmosfera cultural de "sound bites" (a propósito, não escrevam "sound bytes", que é coisa sem sentido). Ainda há dias, conversando com uma pessoa que devia estar bem informada, verifiquei que, sendo funcionária pública, tudo o que sabia sobre a política do governo nessa esfera eram títulos de jornais e mal digeridos.

Vou escrever um truismo: a comunicação social tem hoje uma importância fulcral na ajuda aos cidadãos para o exercício informado da sua cidadania. Considerando a educação, no seu sentido mais amplo, tenho a maior estima, em geral, pelo papel directo dos professores e indirecto dos jornalistas. Simplesmente, como em tudo, há bons e maus. A questão é que um mau merceeiro afecta a população do bairro, um mau jornalista é pernicioso para muitos milhares de pessoas, fora o efeito multiplicador.

Também valia a pena um pouco mais de humildade. Fora a coluna do provedor, é muito raro os leitores teerm acesso a cartas ao jornal criticando aspectos formais mas importantes, designadamente os atropelos à língua mãe, mais ainda erros factuais desinformativos e muitas vezes graves. Os jornais costumam publicar sondagens sobre os mais diversos assuntos. Não me lembro de alguma vez ter sido posta a questão "que confiança merece a comunicação social portuguesa?".

Concluindo, a velha pergunta. A comunicação social é um guarda da democracia e da vida cívica; mas quem guarda o guarda?

24 outubro, 2006

Privilégio e responsabilidade

A revolução húngara apanhou-me em criança. Marcou-me muito mais, com reflexos na minha actividade política, a primavera de Praga. Por isto, alguma coisa do que se escreve sobre a revolução húngara é novidade para mim. Não conhecia, por exemplo, a Declaração da Liberdade de 1956 e uma sua passagem que me impressionou, como uma daquelas máximas que ficam para sempre.
"Nascer em liberdade é um privilégio, viver em liberdade é uma responsabilidade".
E o que isto dá para parafrasear. Nascer inteligente é um privilégio, exercer essa inteligência é uma responsabilidade. Nascer rico é um privilégio, aplicar a riqueza pensando no bem comum é uma responsabilidade. Etc.

23 outubro, 2006

A CIA e o referendo sobre a despenalização do aborto

Na pluralidade dos cronistas do Público, Mário Pinto (MP), professor de Direito, representa a margem mais à direita, de extremado conservadorismo de inspiração católica. Mais extremista, na imprensa, talvez só o inefável João César das Neves, o meu guru de estimação. No entanto, MP costuma usar de rigor intelectual, como se espera de um académico. Não foi o que aconteceu na sua penúltima crónica e muito menos na de hoje.

MP considera que nada de substancial mudou no mundo da teoria, em relação ao aborto. Claro que considera como coisas fundamentais as ideias filosóficas, religiosas e jurídicas, não a evolução da sociedade e da cultura. Pergunta-se então de onde vem esta "liberalização" da vida sexual e procriativa. Como passe de mágica, desvenda-nos o segredo: um já velhinho relatório de Kissinger, então Secretário de Estado de Nixon.

O relatório manifesta preocupação com a explosão demográfica no terceiro mundo, considerando, numa perspectiva maltusiana, que a tensão entre a escassez de recursos e o descontrolo da natalidade podia causar efeitos negativos na segurança mundial, isto é, obviamente, no domínio da ordem americana. Afinal, nada de novo, esse problema já tinha sido apontado pelo Clube de Roma. Não conheço o relatório, mas não me espanta que recomende o apoio dos EUA a campanhas de planeamento familiar.

Ora a obsessão de MP com o aborto leva-o a tresler num ponto essencial, como está a acontecer – consciente ou inconscientemente? – com outros "pró-vida": a identificação da despenalização do aborto com uma acção tendente a considerá-lo como método anticoncepcional banal (só falta dizer que obrigatório...). É uma desonestidade intelectual que deve ser desmascarada sem dó nem piedade, por muito responsável académico que seja o autor.

MP deve ter descoberto que a CIA andou por todo o mundo a criar clínicas de aborto. Enfim, é um novo exemplo de teoria de conspiração. MP, por favor, deixe de ler Dan Brown!

22 outubro, 2006

"O contra-iluminismo de hoje"

Por respeito para com os direitos do jornal, não transcrevo na íntegra o notável artigo de Ralf Dahrendorf no público de hoje. Mas, ao menos, os parágrafos finais.
A autocensura é pior do que a censura, porque sacrifica voluntariamente a liberdade.
 Isto quer dizer que temos de defender Salman Rushdie e os cartoonistas dinamarqueses e os amigos do Idomeneo, independentemente de gostarmos ou não deles. Se alguém não gostar deles tem à sua disposição todos os instrumentos do debate público e do discurso crítico próprios de uma comunidade inspirada pelas Luzes. Também é verdade que não somos obrigados a comprar este ou aquele livro ou a ouvir esta ou aquela ópera. Em que mundo triste viveríamos se tudo o que pode ofender um determinado grupo não pudesse ser dito. Uma sociedade multicultural que aceitasse cada um dos tabus dos seus diversos grupos não teria nada para dizer.


O tipo de reacções a que temos assistido recentemente perante pontos de vista que são ofensivos para alguns não anunciam nada de bom para o futuro da liberdade. É como se uma nova vaga de contra-iluminismo estivesse a varrer o Mundo com as opiniões mais restritivas a tornarem-se dominantes. Devemos reafirmar de forma veemente as nossas opiniões esclarecidas contra estas reacções. Defender o direito de todos a dizer o que pensam, mesmo que detestemos o que digam, é um dos primeiros princípios da liberdade. 
Por isso, Idomeneo deve ser representado e Salman Rushdie deve ser publicado. O direito de um editor a publicar cartoons ofensivos para os crentes de Maomé (ou de Cristo, tanto faz) depende apenas da sua avaliação, quase do seu gosto. Eu posso não o fazer, mas defenderei sempre o direito de alguém decidir de outra maneira. É discutível se incidentes recentes como estes exigem um "diálogo entre religiões". O debate público que permite clarificar cada caso num sentido ou noutro parece mais apropriado do que a conciliação. Os ganhos do discurso iluminista são demasiado preciosos para serem transformados em valores negociáveis. Defender estes ganhos é a tarefa que hoje enfrentamos.

21 outubro, 2006

Notas breves

Desgarradamente, sobre notícias de hoje, no Público.

1. O governo vai acabar com o financiamento público das caixas de previdência privadas (bancários, advogados, jornalistas). Já adivinho, com a minha concordância, a entrada de amanhã de Vital Moreira no Causa nossa.

2. Nunca me teria ocorrido classificar como "objecto" uma peça de teatro ou um concerto. É assim que o fazem os ocupantes do Rivoli. Serão resquícios de algum infantilismo de há trinta anos, então perfeitamente compreensível no contexto, quando todos tinham de ser operários produtores de coisas materiais?

3. A declaração do Secretário de Estado da Indústria, de que os consumidores é que são os culpados do défice da EDP, não é só uma ofensa aos cidadãos, é uma ofensa à inteligência e ao bom senso. Posso tolerar um governante insultuoso para comigo, é uma questão quase pessoal, mas não aceito ser governado por pessoa intelectualmente menor, o que certamente se reflecte na sua capacidade governativa. Já agora, lembram-se da demissão sumária de um ministro do ambiente por ter contado uma anedota de mau gosto?

"Wishful thinking"

Manifestei há dias, numa destas notas, a minha surpresa pela forma acrítica com que alguns políticos de esquerda leram as declarações de D. José Policarpo sobre o aborto. Para mim, era evidente que dizer que "o aborto não é uma questão religiosa" era "sound bite" que precisava de muito cuidado de análise.

Preparando desde há dias esta nota, fui recolhendo muitas declarações que demonstram como eu tinha razão. Trabalho escusado, basta uma notícia do Público de ontem, que transcrevo.
O cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, esclareceu ontem que nunca fez qualquer apelo à abstenção no referendo sobre o aborto e apelou ao envolvimento de "todos os membros da Igreja e de todos os que defendem a vida" a participar na campanha. "A doutrina da Igreja sobre esta matéria não mudou e nunca mudará. De facto, desde o seu início a Igreja condenou o aborto, porque considera que desde o primeiro momento da concepção existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir a ser protegido", escreve. No comunicado em que esclarece as recentes declarações que proferiu segundo as quais "a condenação do aborto não é uma questão religiosa mas de ética fundamental", o prelado afirma que se trata, "de facto, de um valor universal: o direito à vida, exigência da moral natural". "Com esta afirmação, não foi minha intenção negar a sua dimensão religiosa", esclarece, frisando a sua posição: "A minha resposta é clara: se não têm coragem de votar "não", que pelo menos se abstenham." Também ontem o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa emitiu uma nota, na qual apela aos católicos para votarem "não" no referendo e a participarem no debate que agora começa. "Nós, os bispos, não entramos em campanhas de tipo político, mas não podemos deixar de contribuir para o esclarecimento das consciências", explica a nota.
No mesmo número do Público, o articulista manifesta a opinião de que tudo indica que o debate vai ser mais civilizado e tranquilo, com menos "terrorismo intelectual" (expressão minha). "Wishful thinking", novamente? Depois veremos. Como exemplo, aqui deixo uma opinião, de uma mensagem que recebi: "Não me parece linear encarar a gravidez, mesmo nas fases iniciais, como um simples tumor ou papiloma que se extrai por razões estéticas ou mais simplesmente porque 'não dá jeito'." Uma mulher aborta porque não dá jeito ou porque o futuro filho é um sinal que fica mal na cara! Certamente que quem diz isto nunca falou com uma mulher que fez um aborto. Eu sim.

Nota - ainda baseando-me no Público, há uma clínica espanhola estremenha que tem larga procura de mulheres portuguesas, cerca de 4000, em 2005. A maioria pertence a estratos sócio-económicos altos. "Mas o dado mais impressionante é que 62 por cento não estavam a utilizar métodos anticoncepcionais". Palavras para quê? É Portugal, este jardim à beira-mar plantado.

19 outubro, 2006

As quotas de avaliação dos professores

O projecto de estatuto de carreira docente dos professores estipula que não podem aceder às classificações de excedente e de muito bom os professores que ultrapassem uma determinada quota. Isto é, independentemente do mérito pessoal, fica-se dependente da distribuição de mérito na escola. Os professores estão contra isto e compreendo-os bem. Há alguns anos, dar-lhes-ia inteira razão, mas isto é um exemplo típico de como atitudes baseadas em valores têm de ser moderadas pelas coisas práticas. Em teoria, as quotas são perversas. Um professor com índice x de mérito pode ser facilmente classificado como tal numa escola com corpo docente mediano, mas já não o será em escolas em que a maioria dos professores esteja próxima desse x. Obviamente, é injusto. O x vale o mesmo ou não de escola para escola?

A entidade para que trabalhei durante três dezenas de anos, entidade exemplar, sempre teve um sistema de promoções "por mérito". Os protestos eram muitos, contra a discricionariedade do sistema. Depois da revolução, reivindicou-se um sistema de concursos a vagas, ao estilo da função pública, coisa que me pareceu aberrante, mas exemplar das contradições do período revolucionário. Os investigadores científicos conseguiram um regime de excepção, com promoções baseadas exclusivamente no mérito. Não me lembro de um único caso que tivesse causado objecções, porque tudo está no rigor dos processos.

Quando fui director de um instituto público, aprendi a moderar os meus princípios, com a prática. Dois meses depois da minha posse, decorreu o processo anual de avaliação de todos os funcionários, na escala 0-10. Os meus directamente dependentes, mesmo com classificações por mim atribuídas de 7 ou 8, protestaram, porque todos os outros levavam 10. Lembro-me bem de um caso, de um director de unidade que me veio pedir a substituição de uma funcionária inconcebível, que lhe perturbava todo o serviço. A minha única resposta foi apresentar-lhe a ficha de classificação, por ele feita, que a classificava com nota 10, máxima. Calou-se.

Imaginemos que não há quotas. Quantos professores, na brandura dos nossos costumes, serão classificados em cada escola como excelentes? Aposto o meu rendimento mensal em que serão todos. Como alterar isto senão por uma reforma das mentalidades? Mas como reformar as mentalidades? Alguém sabe como? D. Pedro na carta de Bruges, Gil Vicente, os estrangeirados, D. Luís da Cunha, Verney, os afrancesados, Passos Manuel, Caraça e Sérgio (tão distantes e tão próximos)? Ou Vasco Pulido Valente, Filomena Mónica e Pacheco Pereira? Ou uma acção concertada de gente lúcida, hoje perdida, cada um escrevendo por seu lado, sem sinergias? Aqui deixo um desafio: quem quer fazer hoje uma nova "Seara Nova XXI"? Não estamos desesperadamente a precisar dela?

14 outubro, 2006

O Público errou

Enviei hoje ao director e ao provedor do Público a seguinte carta.
Infelizmente, já estou habituado a erros de português, sintácticos e ortográficos, em que alguns jornalistas do Público são useiros e vezeiros. Pior são os erros substanciais, causadores de desinformação. Na edição de hoje, 14.10.2006, a jornalista Dulce Furtado escreve, no título e no texto da notícia, que o Prémio Nobel da Paz acabou de ser atribuído pela Academia Sueca. Mais surpreendentemente, o mesmo erro é repetido no editorial de Nuno Pacheco.

Qualquer pessoa bem informada sabe que o Prémio Nobel da Paz é excepção, por não ser atribuído por nenhuma instituição sueca (e nem esses outros são atribuídos todos pela Academia) mas sim pelo parlamento norueguês. Aliás, como sabe qualquer tele-espectador atento ou que se lembre dos dois premiados timorenses, o prémio é entregue em Oslo, em cerimónia distinta da de Estocolmo. Isto deve-se a que, à data do testamento e morte de Nobel, a Noruega integrava o reino sueco.

Por respeito para com o meu jornal de referência e de leitura diária obrigatória, espero ver isto esclarecido na secção "O Público errou".
Fico é a pensar em quanto gato por lebre não estou a "consumir" como leitor do jornal, em matérias em que não tenho informação crítica. Ainda por cima, consta-me que o jornal está a despedir jornalistas. Os rigorosos ou os que aranjam boas "cachas"? A democracia faz-se muito por "checks and balances", por controlos mútuos de poderes. Mas quem controla o quarto poder? E as promiscuidades, que para os poderes formais são objecto, ao menos, de imcompatibilidades? A liberdade de imprensa é vital em democracia, mas é necesário que não tenha costas demasiadamente largas e não apoiadas em coluna vertebral de grande deontologia profissional.

Fala também o professor. Se eu fornecer aos meus alunos uma informação incorrecta (acontece a todos, a mim já), não durmo até me penitenciar e corrigi-la com a maior ênfase possível. Será que esta jornalista e o editorialista vão perder hoje um minuto de sono?

Ainda estarei cá para ver?

A Coreia do Norte procedeu a um ensaio de deflagração de uma arma nuclear, coisa que certamente toda a gente de bom senso deplora. Mas muito se pode discorrer sobre isto. Entretanto, os anjos da guerra já estão a desembainhar as espadas, o que quer dizer, em muitos casos, as suas canetas de jornalistas. Bush, como era de esperar, já afirmou que não exclui qualquer forma de retaliação, o que já sabemos bem o que quer dizer. Felizmente, neste caso, deve ficar por "sound bite".

Julgo que uma intervenção militar é inimaginável, até porque teria sempre de contar, pelo menos, com a benevolência da China, o que não se vê como possível. E como intervir militarmente num pais com potencial nuclear, com fronteira com a China e a reduzida distância de Seul?

Outra coisa são as sanções políticas e económicas. Parece inegável que a Coreia do Norte está em desagregação económica, que há fome, que tem precisado de um avultado programa de ajuda alimentar e energética. Será que isto dará eficácia às sanções? Duvido. O Iraque sobreviveu a elas durante muitos anos e, caso mais flagrante, Cuba, mesmo depois da falta da ajuda soviética, sobrevive ao rigoroso embargo americano. Em situações em que a opinião pública é controlada, é fácil suscitar atitudes de vitimização contra as sanções e, paradoxalmente, reforçar com isto o apoio ao regime castigado.

No entanto, não é sobre a estratégia militar ou as sanções, neste caso concreto, que quero falar, área em que sou completamente incompetente. Quero começar pelo direito de intervenção. Parece-me evidente que ele é indiscutível, desde que decidido por uma instância internacional respeitada, quando se trata de atentados à paz ou à ordem internacional. Outra coisa é a intervenção para mera substituição de um regime politico. Hoje creio que ninguém tem dúvidas sobre que foi isto que se passou no Iraque. Por isto, por mais que eu, pessoalmente, considere execrável a ditadura monárquica norte-coreana, não é por esta via que a queria ver substituída. Aliás, isto levar-nos-ia longe: têm os EUA em agenda o derrube do também execrável e corrupto regime da Arábia Saudita?

Quanto à Coreia do Norte, parece-me que ainda é cedo para se falar numa ameaça real à paz internacional - embora tendo presente que muitas vezes a diefrença entre virtual e real é subtil. Parece-me que esta iniciativa nuclear é mais uma fuga para a frente, em duas dimensões: internamente, para efeitos propagandísticos, de "orgulho" nacional, factor de sustentação de um regime ditatorial; externamente, um factor de dissuasão por parte de um pais declarado como fazendo parte do "eixo do mal" e que, possivelmente, não tem condições militares e económicas para resistir a uma intervenção militar convencional. No entanto, devo insistir em que, pela minha parte, isto em nada diminui a minha repulsa pela corrida atómica da Coreia do Norte.

Tudo isto também me suscita uma impressão de grande hipocrisia. Afinal, com excepção do Japão, por razões bem conhecidas, todos os outros países que se estão a pronunciar violentamente têm grandes arsenais nucleares. É como um clube muito aristocrático que não aceita qualquer sócio. E a Índia e o Paquistão, países pobres com populações na miséria mas que desenvolveram um arsenal nuclear, tanto mais perigoso quanto estão há muito envolvidos num conflito directo, em Caxemira? E alguém garante que Israel não possua armas nucleares?

Bem sei que isto é utópico, mas julgo que só haverá verdadeira autoridade para proibir e sancionar a aquisição de armamento nuclear quando houver a destruição total das armas nucleares, em todos os países do mundo. Sonho com isto. Nesse dia, se cá estivesse, sentiria muito mais orgulho de ser homem.

12 outubro, 2006

Pena de morte

Às vezes, espanto-me com a minha ignorância, a desafiar a ideia presumida que tenho de mim como homem culto. Li ontem que se festejam agora os 30 anos da abolição definitiva da pena de morte em Portugal, portanto já depois do 25 de Abril.

Sempre tinha ouvido que um motivo legítimo de orgulho nacional era o de termos sido pioneiros na abolição. Com esta notícia, fico a suspeitar de que esta excrescência tão tardia estava no código de justiça militar. Como não sou jurista, peço ajuda aos leitores, para me esclarecerem: foi assim?

11 outubro, 2006

Tipos típicos

O Vítor Sousa, autor do Estranho estrangeiro, publicou recentemente duas entradas dedicadas a figuras típicas que ele conheceu na Madeira, uns castiços. Escreveu-me a sugerir que eu alinhasse na ideia. Pode parecer brincadeira, mas não é que a marginalidade nos ensina muito sobre o que está dentro das fronteiras, expondo caricaturalmente o que se esconde na "normalidade"? Por analogia, não se aprende muito da psicologia normal com a psiquiatria? Vou alinhar na ideia e desafiar outros bloguistas. Afinal, o que é que eu fiz no meu "O mastro das alminhas" senão, em muitos casos, tentar retratar a alma açoriana pela caricatura de personagens exóticas?

08 outubro, 2006

Intelectuais de m....

Ao criar novamente um blogue, prometi a mim mesmo disciplinar-me, seria só um blogue semanário, mas o vício intervencionista é muito forte e há coisas que não se podem calar. Não resisto a comentar a coluna de hoje, no Público, do inefável Vasco Pulido Valente:
(...) A escola única, gratuita e obrigatória [JVC, itálico meu], instituída e comandada pelo Estado, produto do nacionalismo e do anticlericalismo do século XIX, é agora inteiramente obsoleta e uma fonte de ineficiência e confusão. Reservando para si um papel fiscalizador e regulador, o Estado devia promover a emergência de um "mercado de ensino", em que a escola (pública, particular ou cooperativa) fosse de facto autónoma (e pudesse, nomeadamente, contratar professores), mas sobretudo um "mercado" em que a escola, mesmo a título simbólico, fosse paga [JVC, idem] .
 Existem argumentos sérios para deixar no Estado a essência da Segurança Social e da Saúde. Não existe nenhum argumento convincente a favor do monopólio ou quase monopólio público da Educação. (…)
Decididamente, o homem já não pode ser levado a sério, se é que alguma vez foi. A escola obrigatória posta em dúvida? Não dá para acreditar que alguém possa escrever isto. O homem já esqueceu o que deve ter aprendido sobre a revolução de 1789. E, quanto à escola gratuita, VPV vai ao limite do que tem sido a luta dos "liberalistas" da educação. Eles não põem em causa a escola gratuita, querem é que a escola privada também seja gratuita, mediante financiamento pelo Estado. Escola paga é que nunca ouvi ninguém propor.

Sempre se disse, parafraseando um velho dito francês, que temos a direita mais estúpida do mundo. Agora, ela está a enriquecer-se com luminárias "superinteligentes". Com isto, paradoxalmente, talvez ainda fique mais estúpida.

Aborto: despenalização ou arquivamento dos processos? (II)

Escreveu-me Vítor Dias a dizer-me que, pelo contrato com o Público, os artigos de opinião podem ser disponibilizados dois dias depois, o que me descarrega da limitação que referi na penúltima entrada. Como considero que é um artigo notável, vou transcrevê-lo na íntegra. Por comparação com as entradas anterior, espero que os meus leitores concordem com que não traí o essencial dom artigo.

Sombra e silêncio

Vítor Dias

A
 treze dias de uma nova discussão na Assembleia da República de projectos de lei e de propostas de referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, importa comentar o real significado da ideia, ao que parece frustrada, de propor uma alteração legislativa que, em relação a mulheres acusadas da prática de aborto clandestino, conduzisse à "suspensão dos julgamentos" ou "arquivamento dos processos" (não consegui perceber muito bem a sua exacta definição jurídica).


Quando divulgou em manchete esta iniciativa, em que Zita Seabra era dada como executante de uma orquestração de Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, o Expresso logo a apresentou como visando "retirar um dos principais argumentos aos defensores do sim", o que constituiu uma manifesta falsidade, a juntar às outras que depois se tornaram patentes.


Com efeito, jamais os julgamentos de mulheres representaram o "principal argumento" dos defensores da despenalização da IVG, como se prova facilmente pelo facto de, durante os cerca de vinte anos decorridos após a primeira discussão na AR, não ter havido notícias sobre julgamentos (o que não quer dizer que não tivessem ocorrido) e nem por isso, com momentos fortes em diversas ocasiões, deixou de ser prosseguido com constância e pertinácia o combate por essa relevante causa.


Naturalmente que os julgamentos da Maia, de Aveiro e de Setúbal, até por permitirem à opinião pública confrontar-se, não apenas com uma discussão aparentemente abstracta da questão, mas com a sua humanização através das mulheres concretas que estavam a passar por aquela dramática experiência, foram invocados - e muito bem - pelos defensores da despenalização para demonstrar que era falso um dos principais argumentos de recurso e desespero dos apoiantes da penalização em vigor. E que, como muitos se recordarão, consistia em proclamar que a lei era o que era mas, na prática, não se aplicava e que, portanto, nenhuma mulher era julgada pelo "crime" de prática de aborto.


Como deveria ser evidente, iniciativas legislativas deste tipo não dariam a mais pequena contribuição para a superação do problema de fundo que é a existência do recurso ao aborto clandestino, com todas as suas consequências, por força de um artigo de Código Penal que continua a criminalizar e a penalizar com prisão até 3 anos as práticas de aborto clandestino mais generalizadas, ou seja até às doze semanas de gestação e por decisão da mulher.


Sendo esta a questão central, de que até poderia legitimamente não me desviar um milímetro, acrescento ainda acessoriamente que, mesmo no seu limitadíssimo âmbito, não têm quase nada para oferecer as iniciativas como a que foi agora falada, como a defendida por Bagão Félix em 2002 (e que tinha o propósito humilhante de substituir as penas de prisão por "trabalhos comunitários" - creches, jardins de infância, etc., - que fossem uma "maneira" de a mulher "expiar a sua própria dificuldade moral perante a situação") e como aquela que Freitas do Amaral apresentou há dois anos. 


Na verdade, se alguém fala em "suspensão de julgamentos" isso quer dizer que antes houve a elaboração de processos; e se alguém fala de "arquivamento de processos", isso além de confirmar obviamente que houve processos, abre a porta a porta, eventualmente, para tudo o que de indigno, chocante e revoltante os tem precedido nestes casos de aborto.


Em consequência, tais ideias ou propostas poderiam acabar com julgamentos ou condenações (e, ainda assim, dependendo da boa vontade e benévola apreciação - que às vezes estão mal distribuídas - dos magistrados envolvidos) mas nem sequer poriam fim necessariamente fim a investigações, a interrogatórios e a essa repugnante "novidade" dos últimos anos que são as denúncias de mulheres por recurso ao aborto clandestino feitas por ajuste de contas, retaliação ou vingança.


A este respeito, esclareça-se que não ponho em causa nem duvido que algumas e alguns defensores destas ideias (e oponentes da despenalização) se possam sentir sinceramente chocados ou amargurados com os julgamentos de mulheres. Mas, ao mesmo tempo, isso não me impede de chamar a atenção para que, em termos políticos, o fim apenas dos julgamentos seria para os adversários da despenalização uma prenda muito apreciável e apetecível, na medida em que, vantajosamente, se livrariam do problema, da situação e dos momentos em que, até pelo impacto mediático dos julgamentos, as suas posições e concepções ficam extremamente fragilizadas e conhecem um maior isolamento.


E compreenda-se que acrescente que há uma grande coerência neste cálculo e neste desejo. Ao fim e ao cabo, uma das mais estáveis características das forças e correntes que se opõem à despenalização do aborto é uma longa, cordata e pacífica convivência com a realidade do aborto clandestino - onde parece já não haver nefando "crime contra a vida", terrível "pena de morte" ou horrenda "matança de bebés" -, ficando toda a sua indignação, todos os seus bárbaros epítetos e acusações e todos os seus pungentes gritos de alma guardados somente para os projectos de despenalização da IVG que, evidentemente, não "matam" nada nem ninguém e apenas asseguram às mulheres a liberdade e soberania para uma decisão responsável e uma escolha pessoal, sem qualquer imposição exterior. 


É a esta luz que se tem de perceber que estas propostas limitadas ao alegado fim dos julgamentos traduzem a suprema ambição dos oponentes da despenalização em reenviar a questão do aborto para o reino da sombra, do silêncio e da clandestinidade porque é isso que os reconforta, tranquiliza e lhes dá a boa consciência da intocabilidade dos seus "sagrados valores" nem que seja ao lado do mundo de angústia, insegurança e riscos que, de forma egoísta e autoritária, querem manter.


Pelas razões que expus nesta coluna em 30/06, continuo a considerar que, nesta matéria, o recurso ao referendo é um péssimo caminho e que, se for adoptado a 19 de Outubro, traduzirá a falta de coragem de uma maioria de deputados para, aprovando uma lei de despenalização, exercerem plenamente os deveres e responsabilidades que estão associados à sua eleição. 


E confirmará, triste e penosamente, que este é o país em que, da furiosa privatização de património público à alteração do regime da função pública e da gravosa alteração do regime de segurança social a novos e controversos passos da integração de Portugal na União Europeia, tudo se pode decidir e aplicar sem recurso ao referendo. Salvo a despenalização da interrupção voluntária da gravidez que, sendo no final uma decisão individual das mulheres, pelos vistos requer que uma maioria de portugueses aprove e autorize este passo elementar de modernidade, humanismo e civilização. A cada um as suas responsabilidades.

07 outubro, 2006

O Islão e o Ocidente


Primeiro foram as caricaturas de Maomé, agora o Idomeneo. A nossa liberdade, fundacional da nossa civilização, está a ser autolimitada. Pode parecer-nos longínquo porque, felizmente temos uma comunidade islâmica pouco receptivas ao fundamentalismo, como se viu pelo comentário sensato ao discurso do Papa. Mas nós, portugueses, não estamos isolados no pequeno rectângulo.

A primeira coisa que me ocorre é que não devemos tratar esta situação como confronto de religiões. Parece-me ser o que o Papa está a querer fazer, a marcar a superioridade teológica do cristianismo. É discussão que só não me é estranha porque "nada do que é humano me é estranho", mas discussão em que não me envolvo. No entanto, condescendo com o Papa em que me é mais simpática a visão cristã da relação entre fé e razão, depois de Tomás de Aquino, do que a transcendência absoluta da fé no islamismo. É pena é que essa racionalidade cristã seja mais retórica do que real.

Recordo o que acabei de dizer. Não vejo a actual situação no campo redutor do confronto de religiões, mas antes como confronto de culturas e, principalmente, de condições políticas e económicas internacionais. Lembremo-nos de que, no fim da primeira guerra mundial, todo o mundo islâmico estava colonizado ou "protectorado". Que, a partir dos anos 50-60, o mundo islâmico (Egipto, Argélia, Indonésia) foi importantíssimo na luta anti-imperialista. Que Nasser se viu confrontado com uma guerra apenas pelo acto soberano da nacionalização do canal. Que Mossadeh, na Pérsia, foi derrubado pela aliança entre os EUA e o Xá. Que o petróleo flui em rendimentos entre o ocidente rico e os monarcas corruptos, sem benefícios para os povos. Etc, etc. Claro que os neocons e Bush não querem ver nada disto.

No entanto, não quero reduzir a minha reflexão apenas ao politico. Há mesmo conflito cultural e neste certamente que o componente religioso da cultura é importante. Vou dar um exemplo caricatural, sabendo o que ele tem de riscos. Há dez anos, fiz um magnífico cruzeiro no Nilo, com a minha mulher, acompanhados por um guia egípcio, homem jovem, educado e com formação universitária. Tive de ter uma conversa com a minha mulher, sempre com a sua candura à porta da boca, para se evitar algumas situações embaraçosas, principalmente tudo o que tivesse a ver com valores morais, relações homem-mulher, coisas deste género. Só não a convenci a não usar calções diante do guia, coisa que o incomodava (?). A minha mulher não se conteve e lá ouvi muitas respostas indignadas do guia. Curioso é que o homem conhecia bem os EUA, tinha viajado por toda a Europa, gabava a maneira de ser da nossa economia, mas rejeitava por completo os nossos valores morais e cívicos.

Não vou por qualquer discussão teológica do islamismo, sou incompetente. Em jovem, li as "Suratas de Meca", publicadas por Agostinho da Silva, mas já não me lembro. Não falo sobre a jihad, porque já li que o conceito não é unilinear, teologicamente (e não teve o cristianismo as cruzadas?). No entanto, há coisas que me parecem inegáveis. A teocracia só existe no mundo islâmico. Em nenhum outro domínio civilizacional, que eu saiba, se aplica uma justiça religiosa, como a charia. É aqui que me parece radicar o essencial do problema, a dificuldade de diálogo entre a nossa civilização secularizada e uma civilização que transpõe para a vida social e política a religião. É um diálogo de surdos. O maior disparate é pretender transformá-lo em diálogo entre religiões.

É disparate, porque a nossa civilização não é determinada, de facto, pelo cristianismo, por muito que ele tenha estado na sua origem (mas também a cultura greco-romana). Pelo contrário, penso que se fez contra o cristianismo oficial. A nossa actual modernidade vem dos livres pensadores colonos americanos, dos filósofos franceses das luzes, do derrube dos estados pontifícios por Garibaldi. O que seria hoje o catolicismo se ainda existissem os Estados Pontifícios? Não deixemos que o Papa venha agora surfar a onda, identificando, neste conflito, a nossa actual civilização ocidental (chamemos-lhe assim) com o cristianismo.

Finalmente, em termos práticos, o que fazer? Temos, na Europa, duas grandes linhas, a do integracionismo, à francesa, e a do multiculturalismo, à inglesa. Anote-se que, na prática, embora sem uma definição política explícita, a nossa posição é integracionista, em boa parte pela atitude das próprias comunidades imigrantes. O multiculturalismo é, intelectualmente, muito atraente. No entanto, na prática, não foi a França que sofreu atentados terroristas (os distúrbios de há algum tempo são coisa bem diferente). E até vou ser boçal e escrever como o homem da rua: "ninguém os chamou. Se têm vantagens em vir ter connosco, cumpram as nossas regras".

E terminando também plebeisticamente, "quanto mais um tipo se agacha mais se lhe vê o cu". Há dias, escrevia-me um amigo que, um dia destes, já é preciso imaginar bem as reacções à simples escrita da palavra Maomé, não vão eles adivinhar os pensamentos com que estávamos ao escrevê-la.

Mas não consigo terminar sem dizer algo mais. Alhambra, maravilha da minha vida, horas e horas de sonho e de prazer!

06 outubro, 2006

Aborto: despenalização ou arquivamento dos processos?

Na sua coluna habitual no Público de hoje, Vítor Dias desenvolve uma tese com que concordo inteiramente. É pena não poder reproduzir o artigo, porque tenho como norma só publicar o que os jornais disponibilizam online. Vou tentar resumir.

Nos últimos dias, esteve em foco uma iniciativa de Zita Seabra, aliás frustrada, para apresentação de uma proposta de lei segundo a qual, independentemente de o aborto continuar ou não no Código Penal, os processos seriam automaticamente arquivados. É curioso que Zita Seabra tenha, nesta proposta, a companhia prévia de Freitas do Amaral e do grupo de deputados católicos independentes na bancada do PS. Parece-me hipocrisia. Por um lado, tranquilizam a sua consciência de católicos, por outro parecem ser caridosos para com as mulheres inculpadas.

Ora, como muito bem escreve Vítor Dias, o mais importante do referendo é permitir o aborto, para além das actuais constrições legais, em boas unidades de saúde. A despenalização, resolvida na prática por projectos do tipo do de Zita Seabra, vai abranger um número felizmente diminuto de mulheres. Muito mais importante é assegurar a milhares de mulheres um aborto em boas condições técnicas. O actual aborto clandestino, em "clínicas" de vão de escada, é um grande traumatismo psicológico. Muito pior, é responsável por sequelas patológicas muito graves, podendo levar, muitas vezes, à infertilidade definitiva. No entanto, uma ressalva importante: tudo isto pode ser muito utópico, dependendo do grau de objecção de consciência dos médicos.

05 outubro, 2006

5 de Outubro

Ao escrever a última entrada, reparei na data, ainda nem me tinha lembrado. É natural, porque a revolução republicana nunca me disse muito, apesar de reconhcer o que foram os grandes avanços políticos e sociais que dela decorreram. Quem, como eu, reflecte sobre a educação superior não pode esquecer a reforma de 1911.

No entanto, embora não sendo historiador, diz-me muito mais a revolução de 1820, como rotura histórica. Mas quem fala dela? Quantos alguma vez ouviram falar do Sinédrio ou de Fernandes Tomás? E se conhecem Gomes Freire é porque o "Felizmente há luar" é hoje leitura obrigatória no secundário.

Confesso uma ignorância. Não sei de cor que data associar à revolução de 1820. Vou ler e propor que substitua o 5 de Outubro como feriado nacional.

Vacina contra a gripe

Ainda não chegámos ao inverno e as vacinas para a gripe sazonal, as que se tomam anualmente, já se esgotaram. A maioria dos leitores que viram esta notícia não se deve ter apercebido de duas coisas que vêm logo à cabeça de um velho virologista.

É evidente que esta corrida à vacina, que nunca se viu em anos anteriores, tem a ver com a gripe das aves. Efeitos da mediatização. Foi coisa de que falei aos meus alunos, há dias. Fui ao Google e verifiquei que havia 28 milhões de referências à malária e 8 milhões de referências à gripe das aves. Mas sugiro que acrescentem à pesquisa a palavra "death" e obtêm uma informação totalmente contraditória: 2 milhões de mortes por ano por malária, enquanto que, em toda a sua existência, a transmissão da gripe das aves ao homem causou cerca de 200 mortes. Mais, obviamente a vacina antigripal não tem qualquer efeito protector contra essa transmissão. No entanto, as pessoas reagem emocionalmente. Como introduzir alguma racionalidade e capacidade crítica da informação neste nosso mundo mediatizado?

Daí vem a minha segunda observação, sobre o papel dos médicos. É vulgar dizer-se que temos má medicina, por culpa do sistema, mas muito bons médicos. Em geral, concordo. Mas esta vacina que está a ser vendida ao desbarato é receitada por médicos, que deviam saber que ela só se justifica numa pequena percentagem da população: idosos, doentes cardiopulmonares, diabéticos, imunodeprimidos. Muitos destes, os que realmente precisam dela, encontrarão agora a vacina esgotada. Ainda por cima, estes médicos penalizam economicamente o doente, porque a vacina não é comparticipada. A Ordem não tem nada a dizer?

04 outubro, 2006

Igrejas de S. Miguel


A religiosidade açoriana faz parte da matriz cultural identificadora, mesmo para um não crente, como eu. Fica como prevenção aos leitores, sempre que aqui falar de religião, nunca poderá ser numa atitude de total distanciamento. Afinal, fosse como fosse, a minha divisa é o verso de Terêncio (também adoptado por Marx) "Homo sum. Humani nihil a me alienum puto". E não é qualquer religiosidade, a do açoriano. Como escrevi no "Mastro das alminhas",
"É profundamente ligada ao Deus judaico-cristão mas também com alguns vestígios de paganismo, cristalizada em séculos de isolamento. É a religiosidade ancestral da necessidade de socorro em relação às malfeitorias de uma natureza surpreendente e temerosa na sua fúria para quem ia da calma geológica do continente. Senhores e camponeses, ricos e pobres, fidalgos povoadores e plebeus que com eles foram à aventura, todos ficavam igualados na pequenez indefesa contra uma fúria telúrica hoje muito atenuada mas ainda bem viva nos primeiros tempos do povoamento.
(...) É uma religiosidade à antiga, sem modas modernas. Santas Filomenas, Teresinhas, La Salettes, menina de Lurdes, pastorinhos de Fátima, lá pouco dizem, a não ser a umas tantas beatas influenciadas por padres que não sabem compreender esse sentido religioso açoriano muito peculiar.
Deus é que é Deus, perante ele se curva a pequenez do ilhéu perdido e realçando a pessoa divina muito querida do Espírito Santo. Maria é só a das invocações ancestrais, das Dores, da Piedade, da Agonia, dos Remédios, da Esperança. E, santos, só os da colecção dos medievais, João, José, Pedro, Mateus, Sebastião, Bartolomeu, Vicente ou António. Aquele S. António que o meu bisavô Viveiros, seu homónimo, tratava por tu, com quem tinha conversas diárias muito amigáveis, ao chegar a casa, mas também fúrias terríveis, virando-o de castigo para a parede, até passar a zanga. Passava depressa, que eram grandes amigos."
Mas já estou a desvariar e é tempo do "onde é que eu queria ir?". À fotografia acima, a da mais antiga igreja de S. Miguel, a matriz de Vila Franca do Campo. É única na sua fachada de basalto (a Sé do Funchal fica por pequena parte da fachada). O que mais me impressiona é a singeleza do gótico, num tempo em que a moda manuelina ainda lá não tinha chegado. E o tempo e trabalho roubados a tudo o que era necessário para desbravar a terra ainda hostil. O que seria se, nesse tempo, dominassem tanto como hoje os critérios economicistas e pragmáticos? À margem, voltando à fotografia, digam lá se há azul de céu como o açoriano.

Muitos turistas conhecem hoje esta igreja, mas poucos o fontanário que lhe fica à ilharga, representando o padroeiro da ilha. Estátua de S. Miguel conhece o turista a que se ergue frente à câmara de Ponta Delgada. Não me desperta a mesma ternura que esta imagem de sabor popular. Gente da minha terra, "gente feliz com lágrimas", sempre com "raiz comovida", gente das "ilhas encantadas". Cada vez mais se afirma um dos meus lemas: "sou muito açoriano porque sou muito português, sou muito português porque sou muito açoriano". Gostava que isto se estendesse à Madeira.

02 outubro, 2006

Aviso aos leitores

Já estão transferidas para aqui todas as entradas do meu anterior Bloco de notas, no meu sítio, desde a primeira, em Dezembro de 2005. A página do meu sítio vai ser desactivada.

01 outubro, 2006

Entradas anteriores

Desde há um ano que vou escrevendo semanalmente notas de reflexão sobre o que mais me impressiona como essencial da nossa vida social e política. Como escrevia fora da blogosfera, muitos não leram essas notas. Criando agora este blogue, vou transferi-las. Vai ser lento, dá muito trabalho.

Peensei fazer esta entrada só com "links" a entradas anteriores agora transferidas, a selecção das mais importantes, mas fiquei com dificuldades. Quais as que devia seleccionar? Não consigo. Tudo foi escrito, mal ou bem, com grander seriedade. Deixo este trabalho ao leitor que tiver a paciência de ler o que fui escrevendo no outro sítio e agora transfiro para aqui. E ainda faltam muitas. Nos próximos dias, vão fazendo "scroll" até ao fundo do blogue.