07 outubro, 2006

O Islão e o Ocidente


Primeiro foram as caricaturas de Maomé, agora o Idomeneo. A nossa liberdade, fundacional da nossa civilização, está a ser autolimitada. Pode parecer-nos longínquo porque, felizmente temos uma comunidade islâmica pouco receptivas ao fundamentalismo, como se viu pelo comentário sensato ao discurso do Papa. Mas nós, portugueses, não estamos isolados no pequeno rectângulo.

A primeira coisa que me ocorre é que não devemos tratar esta situação como confronto de religiões. Parece-me ser o que o Papa está a querer fazer, a marcar a superioridade teológica do cristianismo. É discussão que só não me é estranha porque "nada do que é humano me é estranho", mas discussão em que não me envolvo. No entanto, condescendo com o Papa em que me é mais simpática a visão cristã da relação entre fé e razão, depois de Tomás de Aquino, do que a transcendência absoluta da fé no islamismo. É pena é que essa racionalidade cristã seja mais retórica do que real.

Recordo o que acabei de dizer. Não vejo a actual situação no campo redutor do confronto de religiões, mas antes como confronto de culturas e, principalmente, de condições políticas e económicas internacionais. Lembremo-nos de que, no fim da primeira guerra mundial, todo o mundo islâmico estava colonizado ou "protectorado". Que, a partir dos anos 50-60, o mundo islâmico (Egipto, Argélia, Indonésia) foi importantíssimo na luta anti-imperialista. Que Nasser se viu confrontado com uma guerra apenas pelo acto soberano da nacionalização do canal. Que Mossadeh, na Pérsia, foi derrubado pela aliança entre os EUA e o Xá. Que o petróleo flui em rendimentos entre o ocidente rico e os monarcas corruptos, sem benefícios para os povos. Etc, etc. Claro que os neocons e Bush não querem ver nada disto.

No entanto, não quero reduzir a minha reflexão apenas ao politico. Há mesmo conflito cultural e neste certamente que o componente religioso da cultura é importante. Vou dar um exemplo caricatural, sabendo o que ele tem de riscos. Há dez anos, fiz um magnífico cruzeiro no Nilo, com a minha mulher, acompanhados por um guia egípcio, homem jovem, educado e com formação universitária. Tive de ter uma conversa com a minha mulher, sempre com a sua candura à porta da boca, para se evitar algumas situações embaraçosas, principalmente tudo o que tivesse a ver com valores morais, relações homem-mulher, coisas deste género. Só não a convenci a não usar calções diante do guia, coisa que o incomodava (?). A minha mulher não se conteve e lá ouvi muitas respostas indignadas do guia. Curioso é que o homem conhecia bem os EUA, tinha viajado por toda a Europa, gabava a maneira de ser da nossa economia, mas rejeitava por completo os nossos valores morais e cívicos.

Não vou por qualquer discussão teológica do islamismo, sou incompetente. Em jovem, li as "Suratas de Meca", publicadas por Agostinho da Silva, mas já não me lembro. Não falo sobre a jihad, porque já li que o conceito não é unilinear, teologicamente (e não teve o cristianismo as cruzadas?). No entanto, há coisas que me parecem inegáveis. A teocracia só existe no mundo islâmico. Em nenhum outro domínio civilizacional, que eu saiba, se aplica uma justiça religiosa, como a charia. É aqui que me parece radicar o essencial do problema, a dificuldade de diálogo entre a nossa civilização secularizada e uma civilização que transpõe para a vida social e política a religião. É um diálogo de surdos. O maior disparate é pretender transformá-lo em diálogo entre religiões.

É disparate, porque a nossa civilização não é determinada, de facto, pelo cristianismo, por muito que ele tenha estado na sua origem (mas também a cultura greco-romana). Pelo contrário, penso que se fez contra o cristianismo oficial. A nossa actual modernidade vem dos livres pensadores colonos americanos, dos filósofos franceses das luzes, do derrube dos estados pontifícios por Garibaldi. O que seria hoje o catolicismo se ainda existissem os Estados Pontifícios? Não deixemos que o Papa venha agora surfar a onda, identificando, neste conflito, a nossa actual civilização ocidental (chamemos-lhe assim) com o cristianismo.

Finalmente, em termos práticos, o que fazer? Temos, na Europa, duas grandes linhas, a do integracionismo, à francesa, e a do multiculturalismo, à inglesa. Anote-se que, na prática, embora sem uma definição política explícita, a nossa posição é integracionista, em boa parte pela atitude das próprias comunidades imigrantes. O multiculturalismo é, intelectualmente, muito atraente. No entanto, na prática, não foi a França que sofreu atentados terroristas (os distúrbios de há algum tempo são coisa bem diferente). E até vou ser boçal e escrever como o homem da rua: "ninguém os chamou. Se têm vantagens em vir ter connosco, cumpram as nossas regras".

E terminando também plebeisticamente, "quanto mais um tipo se agacha mais se lhe vê o cu". Há dias, escrevia-me um amigo que, um dia destes, já é preciso imaginar bem as reacções à simples escrita da palavra Maomé, não vão eles adivinhar os pensamentos com que estávamos ao escrevê-la.

Mas não consigo terminar sem dizer algo mais. Alhambra, maravilha da minha vida, horas e horas de sonho e de prazer!

1 comentário:

VFS disse...

João, estou a ler dois livros sobre o islamismo, da autoria de uma das maiores conspicuidades na matéria em Portugal. "O shiismo iraniano" e o "Martírio no Islão", de Hélder Santos Costa". Na verdade, o conhecimento dos "ocidentais" acerca dos matizes, amiúde intricados, do islamismo é frágil, tornando-se límpido o diagnóstico da fragilidade mediante a leitura, por exemplo, das páginas sobre a jihad. Antes de mais, e como o João sabe, a jihad não é um dos pilares do Islão. Depois, existem dois tipos de jihad, definidos pelo Profeta. A jihad maior, relativa à luta individual do indivíduo contra os perigos que podem corroer a sua identidade e alma - semelhante aos cristãos que "combatem a tentação" - e a jihad menor, tributária do combate aos infiéis. Esta última noção suscita interpretações díspares, podendo oferecer amparo aos fundamentalistas que atacam o Ocidente, perseguindo o universalismo do Islão. Contudo, parece-me que a "luta contra os infiéis" foi delimitada pelo profeta, tornando-se lícita, somente, como mecanismo de protecção da Umma, a comunidade muçulmana. Outrora, a jihad menor só poderia ser declarada pelos "ulema". Todavia, desde que Ataturk suprimiu o califado, e de acordo com Hélder Santos Costa, muitos fundamentalistas fruem dessa ausência de poder, centralizado e reconhecido, como o Vaticano para os católicos.