04 outubro, 2006

Igrejas de S. Miguel


A religiosidade açoriana faz parte da matriz cultural identificadora, mesmo para um não crente, como eu. Fica como prevenção aos leitores, sempre que aqui falar de religião, nunca poderá ser numa atitude de total distanciamento. Afinal, fosse como fosse, a minha divisa é o verso de Terêncio (também adoptado por Marx) "Homo sum. Humani nihil a me alienum puto". E não é qualquer religiosidade, a do açoriano. Como escrevi no "Mastro das alminhas",
"É profundamente ligada ao Deus judaico-cristão mas também com alguns vestígios de paganismo, cristalizada em séculos de isolamento. É a religiosidade ancestral da necessidade de socorro em relação às malfeitorias de uma natureza surpreendente e temerosa na sua fúria para quem ia da calma geológica do continente. Senhores e camponeses, ricos e pobres, fidalgos povoadores e plebeus que com eles foram à aventura, todos ficavam igualados na pequenez indefesa contra uma fúria telúrica hoje muito atenuada mas ainda bem viva nos primeiros tempos do povoamento.
(...) É uma religiosidade à antiga, sem modas modernas. Santas Filomenas, Teresinhas, La Salettes, menina de Lurdes, pastorinhos de Fátima, lá pouco dizem, a não ser a umas tantas beatas influenciadas por padres que não sabem compreender esse sentido religioso açoriano muito peculiar.
Deus é que é Deus, perante ele se curva a pequenez do ilhéu perdido e realçando a pessoa divina muito querida do Espírito Santo. Maria é só a das invocações ancestrais, das Dores, da Piedade, da Agonia, dos Remédios, da Esperança. E, santos, só os da colecção dos medievais, João, José, Pedro, Mateus, Sebastião, Bartolomeu, Vicente ou António. Aquele S. António que o meu bisavô Viveiros, seu homónimo, tratava por tu, com quem tinha conversas diárias muito amigáveis, ao chegar a casa, mas também fúrias terríveis, virando-o de castigo para a parede, até passar a zanga. Passava depressa, que eram grandes amigos."
Mas já estou a desvariar e é tempo do "onde é que eu queria ir?". À fotografia acima, a da mais antiga igreja de S. Miguel, a matriz de Vila Franca do Campo. É única na sua fachada de basalto (a Sé do Funchal fica por pequena parte da fachada). O que mais me impressiona é a singeleza do gótico, num tempo em que a moda manuelina ainda lá não tinha chegado. E o tempo e trabalho roubados a tudo o que era necessário para desbravar a terra ainda hostil. O que seria se, nesse tempo, dominassem tanto como hoje os critérios economicistas e pragmáticos? À margem, voltando à fotografia, digam lá se há azul de céu como o açoriano.

Muitos turistas conhecem hoje esta igreja, mas poucos o fontanário que lhe fica à ilharga, representando o padroeiro da ilha. Estátua de S. Miguel conhece o turista a que se ergue frente à câmara de Ponta Delgada. Não me desperta a mesma ternura que esta imagem de sabor popular. Gente da minha terra, "gente feliz com lágrimas", sempre com "raiz comovida", gente das "ilhas encantadas". Cada vez mais se afirma um dos meus lemas: "sou muito açoriano porque sou muito português, sou muito português porque sou muito açoriano". Gostava que isto se estendesse à Madeira.

Sem comentários: