08 outubro, 2006

Aborto: despenalização ou arquivamento dos processos? (II)

Escreveu-me Vítor Dias a dizer-me que, pelo contrato com o Público, os artigos de opinião podem ser disponibilizados dois dias depois, o que me descarrega da limitação que referi na penúltima entrada. Como considero que é um artigo notável, vou transcrevê-lo na íntegra. Por comparação com as entradas anterior, espero que os meus leitores concordem com que não traí o essencial dom artigo.

Sombra e silêncio

Vítor Dias

A
 treze dias de uma nova discussão na Assembleia da República de projectos de lei e de propostas de referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, importa comentar o real significado da ideia, ao que parece frustrada, de propor uma alteração legislativa que, em relação a mulheres acusadas da prática de aborto clandestino, conduzisse à "suspensão dos julgamentos" ou "arquivamento dos processos" (não consegui perceber muito bem a sua exacta definição jurídica).


Quando divulgou em manchete esta iniciativa, em que Zita Seabra era dada como executante de uma orquestração de Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, o Expresso logo a apresentou como visando "retirar um dos principais argumentos aos defensores do sim", o que constituiu uma manifesta falsidade, a juntar às outras que depois se tornaram patentes.


Com efeito, jamais os julgamentos de mulheres representaram o "principal argumento" dos defensores da despenalização da IVG, como se prova facilmente pelo facto de, durante os cerca de vinte anos decorridos após a primeira discussão na AR, não ter havido notícias sobre julgamentos (o que não quer dizer que não tivessem ocorrido) e nem por isso, com momentos fortes em diversas ocasiões, deixou de ser prosseguido com constância e pertinácia o combate por essa relevante causa.


Naturalmente que os julgamentos da Maia, de Aveiro e de Setúbal, até por permitirem à opinião pública confrontar-se, não apenas com uma discussão aparentemente abstracta da questão, mas com a sua humanização através das mulheres concretas que estavam a passar por aquela dramática experiência, foram invocados - e muito bem - pelos defensores da despenalização para demonstrar que era falso um dos principais argumentos de recurso e desespero dos apoiantes da penalização em vigor. E que, como muitos se recordarão, consistia em proclamar que a lei era o que era mas, na prática, não se aplicava e que, portanto, nenhuma mulher era julgada pelo "crime" de prática de aborto.


Como deveria ser evidente, iniciativas legislativas deste tipo não dariam a mais pequena contribuição para a superação do problema de fundo que é a existência do recurso ao aborto clandestino, com todas as suas consequências, por força de um artigo de Código Penal que continua a criminalizar e a penalizar com prisão até 3 anos as práticas de aborto clandestino mais generalizadas, ou seja até às doze semanas de gestação e por decisão da mulher.


Sendo esta a questão central, de que até poderia legitimamente não me desviar um milímetro, acrescento ainda acessoriamente que, mesmo no seu limitadíssimo âmbito, não têm quase nada para oferecer as iniciativas como a que foi agora falada, como a defendida por Bagão Félix em 2002 (e que tinha o propósito humilhante de substituir as penas de prisão por "trabalhos comunitários" - creches, jardins de infância, etc., - que fossem uma "maneira" de a mulher "expiar a sua própria dificuldade moral perante a situação") e como aquela que Freitas do Amaral apresentou há dois anos. 


Na verdade, se alguém fala em "suspensão de julgamentos" isso quer dizer que antes houve a elaboração de processos; e se alguém fala de "arquivamento de processos", isso além de confirmar obviamente que houve processos, abre a porta a porta, eventualmente, para tudo o que de indigno, chocante e revoltante os tem precedido nestes casos de aborto.


Em consequência, tais ideias ou propostas poderiam acabar com julgamentos ou condenações (e, ainda assim, dependendo da boa vontade e benévola apreciação - que às vezes estão mal distribuídas - dos magistrados envolvidos) mas nem sequer poriam fim necessariamente fim a investigações, a interrogatórios e a essa repugnante "novidade" dos últimos anos que são as denúncias de mulheres por recurso ao aborto clandestino feitas por ajuste de contas, retaliação ou vingança.


A este respeito, esclareça-se que não ponho em causa nem duvido que algumas e alguns defensores destas ideias (e oponentes da despenalização) se possam sentir sinceramente chocados ou amargurados com os julgamentos de mulheres. Mas, ao mesmo tempo, isso não me impede de chamar a atenção para que, em termos políticos, o fim apenas dos julgamentos seria para os adversários da despenalização uma prenda muito apreciável e apetecível, na medida em que, vantajosamente, se livrariam do problema, da situação e dos momentos em que, até pelo impacto mediático dos julgamentos, as suas posições e concepções ficam extremamente fragilizadas e conhecem um maior isolamento.


E compreenda-se que acrescente que há uma grande coerência neste cálculo e neste desejo. Ao fim e ao cabo, uma das mais estáveis características das forças e correntes que se opõem à despenalização do aborto é uma longa, cordata e pacífica convivência com a realidade do aborto clandestino - onde parece já não haver nefando "crime contra a vida", terrível "pena de morte" ou horrenda "matança de bebés" -, ficando toda a sua indignação, todos os seus bárbaros epítetos e acusações e todos os seus pungentes gritos de alma guardados somente para os projectos de despenalização da IVG que, evidentemente, não "matam" nada nem ninguém e apenas asseguram às mulheres a liberdade e soberania para uma decisão responsável e uma escolha pessoal, sem qualquer imposição exterior. 


É a esta luz que se tem de perceber que estas propostas limitadas ao alegado fim dos julgamentos traduzem a suprema ambição dos oponentes da despenalização em reenviar a questão do aborto para o reino da sombra, do silêncio e da clandestinidade porque é isso que os reconforta, tranquiliza e lhes dá a boa consciência da intocabilidade dos seus "sagrados valores" nem que seja ao lado do mundo de angústia, insegurança e riscos que, de forma egoísta e autoritária, querem manter.


Pelas razões que expus nesta coluna em 30/06, continuo a considerar que, nesta matéria, o recurso ao referendo é um péssimo caminho e que, se for adoptado a 19 de Outubro, traduzirá a falta de coragem de uma maioria de deputados para, aprovando uma lei de despenalização, exercerem plenamente os deveres e responsabilidades que estão associados à sua eleição. 


E confirmará, triste e penosamente, que este é o país em que, da furiosa privatização de património público à alteração do regime da função pública e da gravosa alteração do regime de segurança social a novos e controversos passos da integração de Portugal na União Europeia, tudo se pode decidir e aplicar sem recurso ao referendo. Salvo a despenalização da interrupção voluntária da gravidez que, sendo no final uma decisão individual das mulheres, pelos vistos requer que uma maioria de portugueses aprove e autorize este passo elementar de modernidade, humanismo e civilização. A cada um as suas responsabilidades.

Sem comentários: