29 outubro, 2006

Portugal a mudar? (II)

Na entrada anterior sobre Portugal a mudar referi-me à persistência de tipos queirozianos. Não é só Eça que ainda mantém actualidade. Leia-se Antero e o seu diagnóstico na célebre conferência do Casino, de 1871 ,"Causas da decadência dos povos peninsulares". Claro que está datado, mas não definitivamente arrumado para os arquivos.
Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse tumulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos, que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os germens, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indl1stria, ligando-se assim Intimamente ao que há de mais vital nos povos - estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem bus¬car e encontrar as causas da decadência da Península.

Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, comreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Antero era Antero (ou Santo Antero, como lhe chamaram os amigos)e longe de mim diminuí-lo junto de um ilhéu. Mas, neste caso não concordo com Antero, por várias razões.

Primeiro, acho que o Concílio de Trento não alterou assim tanto o caatolicismo, nem creio que a liberdade moral seja uma conquista da Reforma. Aliás, acho que é preciso distinguir o movimento político da Reforma, do conteúdo da própria Reforma.
Quanto às conquistas, não me vou manifestar. Pergunto apenas se os ingleses não foram conquistadores, também, e se o Tratado de Metween é inerente às conquistas?
Quanto à ideia do absolutismo do século XVI ter destruído as liberdades locais compreendo-o em Antero, como uma continuidade de Herculano, mas recordo que foi recorrente para Marcelo Rebelo de Sousa, quando se tratou de lutar contra a Regionalização. A relação entre o poder central e local foi vista pelo romantismo como a via Antero e Herculano, mas isso é, precisamente, a visão (datada) do romantismo. A liberdade local que servia de padrão a Antero nunca existiu. O que o absolutismo destruiu foi um poder senhorial local, muito mais opressor que o poder régio central. Ainda hoje, quando se fala de municipalismo, é preciso ter atenção a que ele não seja caciquismo. Normalmente é.