Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse tumulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos, que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os germens, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indl1stria, ligando-se assim Intimamente ao que há de mais vital nos povos - estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem bus¬car e encontrar as causas da decadência da Península.
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, comreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.
29 outubro, 2006
Portugal a mudar? (II)
Na entrada anterior sobre Portugal a mudar referi-me à persistência de tipos queirozianos. Não é só Eça que ainda mantém actualidade. Leia-se Antero e o seu diagnóstico na célebre conferência do Casino, de 1871 ,"Causas da decadência dos povos peninsulares". Claro que está datado, mas não definitivamente arrumado para os arquivos.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Antero era Antero (ou Santo Antero, como lhe chamaram os amigos)e longe de mim diminuí-lo junto de um ilhéu. Mas, neste caso não concordo com Antero, por várias razões.
Primeiro, acho que o Concílio de Trento não alterou assim tanto o caatolicismo, nem creio que a liberdade moral seja uma conquista da Reforma. Aliás, acho que é preciso distinguir o movimento político da Reforma, do conteúdo da própria Reforma.
Quanto às conquistas, não me vou manifestar. Pergunto apenas se os ingleses não foram conquistadores, também, e se o Tratado de Metween é inerente às conquistas?
Quanto à ideia do absolutismo do século XVI ter destruído as liberdades locais compreendo-o em Antero, como uma continuidade de Herculano, mas recordo que foi recorrente para Marcelo Rebelo de Sousa, quando se tratou de lutar contra a Regionalização. A relação entre o poder central e local foi vista pelo romantismo como a via Antero e Herculano, mas isso é, precisamente, a visão (datada) do romantismo. A liberdade local que servia de padrão a Antero nunca existiu. O que o absolutismo destruiu foi um poder senhorial local, muito mais opressor que o poder régio central. Ainda hoje, quando se fala de municipalismo, é preciso ter atenção a que ele não seja caciquismo. Normalmente é.
Enviar um comentário