Anteontem, 24 de Março, foi devidamente celebrado o aniversário do dia do estudante de 1962, marco da primeira grande agitação académica do fim anunciado do fascismo (se não dermos a devida importância à luta contra o 40900, uns anos antes). Propositadamente, não escrevi nada nesse dia, o seu a seu dono. Nesse dia de há tantos anos, fui soldado raso, não tenho galões que justifiquem participar nas comemorações ao lado de quem as bem merece. Aproveito hoje é para relembrar a fase seguinte da luta associativa, essa sim, minha.
Em 24 de Março de 1962, eu era um calouro de medicina, em Coimbra, com umas vagas leituras filistinas, com a crítica anti-salazarista doméstica, mas em surdina e com muitas recomendações de segredo. Só nesse dia ou no dia seguinte, já não me lembro bem, é que o meu poiso frequente, a república Corsário das Ilhas, passou de sítio de patuscada para lugar de partida, em grupo, para a assembleia magna. Foi isto toda a minha participação na crise de 62. Ir à assembleia, votar o luto académico, cumpri-lo. Nada mais. É meu dever dizer isto, em época em que a memória frágil das testemunhas sessentonas dessa época permitirá louros indevidamente invocados por alguns. Afinal, Portugal não era todo antifascista, legionários incluídos?
Passo para 1964-68, a minha época. Aí sim, invoco pergaminhos de intervenção e responsabilidade no movimento associativo, já em Lisboa. Tende-se a esquecer essa época, 64-68, espartilhada entre a crise de 62 e a de 69, em Coimbra. No entanto, foram anos de extraordinária resistência. Em 62 houve castigos, prisões, expulsões da universidade, mas num período curto. O tempo de que agora estou a falar teve tudo isto, mas diariamente, o que nos impunha, ao movimento associativo, uma resistência muito mais organizada e mantida.
Também o grande golpe que a Pide tinha desferido, ao obter a denúncia de muitos nomes pelo responsável do PCP pelo sector estudantil. Reconstruir o aparelho clandestino, separá-lo rigidamente dos denunciados, e manter viva a actividade associativa deve ter sido trabalho de monta. Nunca soube ao certo a quem se deveu. Alguém sabe ou quer revelar?
Mas, de longe, julgo que a diferença essencial foi a luta contra a guerra colonial. Era questão que não se punha em 1962, mas era o fulcro de toda a luta nesse meu tempo de 64-68. E era coisa com que o fascismo não deixava que se tocasse, mesmo quando dávamos a volta com manifestações contra a guerra do Vietnam. Por isto, era uma época de regras muito rígidas na separação das relações, no entanto obrigatórias, entre estudantes portugueses e estudantes africanos. Acima de tudo, no entanto, valia a solidariedade. Lembro-me de que o meu primeiro envolvimento associativo teve a ver com os protestos com duas vagas de prisões em simultâneo, de portugueses e de africanos. Todos irmãos, ainda hoje. E até me vem à memória que, tendo eu tido a sorte de nunca ser preso, passei todavia por um plenário, como testemunha. Mas testemunha de um africano, meu colega de medicina.
P. S. – E lembram-se do que fizemos nas inundações de 67? De como o povo de Lisboa ouviu falar pela primeira vez do movimento estudantil?
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6 comentários:
Pode-se dizer que, tal como o João Vasconcelos Costa, estou a advogar em causa própria, mas de facto é oportuno lembrar que a história da luta estudantil e do movimento associativo não é feita apenas das épocas ou períodos de «crise» (luta contra o 40.900, depois 62 e a seguir 69)mas também do esforçado e paciente trabalho desenvolvido em épocas de refluxo, de reorganização, de redinamização em que , não há que ter vergonha em o reconhecer, formas menos avançadas de luta desempenharam um grande papel (as actividades culturais, as comissões pedagógícas, as iniciativas de convivio etc., etc.).
A verdade é que sem esse trabalho regular e as mais das vezes discreto (que não dá direito a efemérides justamente celebradas com a do «Dia do Estudante» de 62)
o mais certo é que nunca teriamos chegado aos momentos de confrontação mais dura e mais desgastantes para o regime fascista.
Saudo também a lembrança que JVC aqui trouxe da intervenção estudantil nas trágicas inundações de 1967 ( sobre este tema suponho que há um documentário da Diana Andringa que, quanto a mim, só tem o senão de uma escolha de depoimentos muito situada na sua «área» política)- intervenção que teve aliás uma magnífica condução táctica e política.
Obrigado pelo testemunho, João. Eu sou um pouco mais novo e, onde estive, não havia essas lutas. Mas delas fui tendo algum conhecimento pela TVE e por jornais espanhóis (que, apesar da ditadura de lá, sempre iam noticiando alguma coisa) e franceses.
Meu Caro João: participar nas assembleias Magnas, votar o luto e cumpri-lo chega e sobra para te poderes considerar da geração. É que muitos, provavelmente a maioria, não iam às "magnas", não votavam, não terão respeitado a greve ou, se a respeitaram, foi porque foram forçados a tal.
Há no nosso país a deletéria ideia que é preciso ter sido dirigente para se poder dizer que se esteve numa determinada causa. Nada mais falso. A crise de 62 e depois a de 69 são de quem as viveu e participou. Exactamente o que tu fizeste!
Este comentário de d'oliveira desvanece-me mas acho que deve fazer pensar. É quase palavra por palavra o que me escreveu privadamente o meu amigo Marcelo Correia Ribeiro, ele com muito mais do que eu em provas de resistência, prisões e tortura que eu nunca experimentei.
Que ninguém queira ser herói, apenas cumprir o seu dever, dia-a-dia. E devo dizer que, já casado e pai, tinha um enorme medo ao ver todas as noites um pide pespegado à minha porta, em trabalho estúpido de me insultar, nada mais. É verdade, tinha medo! E os heróis não têm medo? Eu tinha.
Essa discussão sobre o ter ou não ter medo já devia estar arrumada nos baús da história.
É claro que todos os combatentes antifascistas tinham ou tiveram medo.
Mas é preciso dizer outra coisa; é que uma grande parte aprendia a ir vencendo o medo.
Aí é que estava o segredo.
Pois, é bom cultivar a memória. Obrigada, João!
Dessa memória - da minha, certamente da tua e da de muitos outros - fazem parte magníficos textos que também nos ajudavam a enfrentar o medo.
Permito-me enviar dois, o Poema pouco original do medo,do Alexandre O'Neill, e um excerto do Pátria, Lugar de Exílio, do Daniel Filipe, que me parecem caír tão bem nesta conversa...
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
“Contra isto nada podem as armas a polícia os exércitos / A prisão a tortura / Somos mais fortes do que tudo / Somos a alegria / Mesmo no fundo das masmorras cantamos / Os pássaros aprendem as nossas palavras de esperança / Descem com elas sobre o vosso sonho / E ensinam-vos o terror das noites solitárias / Tendes jornais / Usai-os / Tendes exércitos / Usai-os / Tendes polícia / Usai-a / Tendes juízes / Usai-os /Usai-os contra nós /Procurai esmagar-nos / Cantando resistimos / Somos a alegria o corpo e o sal da terra / O sol das manhãs férteis a música do Outono / A própria essência do amor a força das marés / Somos o tempo em marcha.”
“E no entanto é doce dizer pátria / Sonhar a terra livre e insubmissa /Inteiramente nossa / Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos/ Como / Se nada houvesse antes de nós /E desde as fundações a erguêssemos completa / Pura alegre acolhedora virgem / De medos mortos insepultos.”
Ah, e convém lembrar, por ser cada vez mais necessária " a fiel dedicação à honra de estar vivo", o Sena e a sua Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya:
"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Afinal, a poesia pesou em nós pelo menos tanto - se não mais, muito mais - que os textos políticos..."
Desculpa ter-te invadido assim o espaço e um abraço,
Diana
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