Creio que, até ao suspiro final, continuarei a dizer que sou de esquerda. É constitutivo, mas com desconforto crescente, por duas razões principais: O que é ser de esquerda? Como transpor isto para a prática de hoje, que mais não seja no grande momento do voto?
O que é a esquerda? Apetece-me começar por uma velha máxima: é de esquerda aquele que recusa dizer que, hoje, já não faz sentido a distinção entre a esquerda e a direita, em época do "fim da História". Claro que isto tem muito de blague e é pouco operacional.
Também há uma outra fórmula: no binómio liberdade-segurança, a esquerda privilegia a segurança, a direita a liberdade (principalmente económica, entenda-se). Esta fórmula, a meu ver, é a mais errada. Começa pela ambiguidade do termo segurança. Se o entendermos como segurança individual contra as adversidades do capitalismo selvagem, baseada na solidariedade social, muito bem. No entanto, nestes tempos, segurança está muito mais conotada com a protecção contra as ameaças (maxime, terrorismo) e neste sentido, a perspectiva securitária tem muito mais reflexos reais nas políticas conservadoras, incluindo Blair (à esquerda?). Por outro lado, em relação à solidariedade, há uma velha atitude caritativa que é apanágio de uma direita católica. A diferença essencial está no adjectivo "caritativa", coisa de superior para inferior, muito diferente da solidariedade de iguais.
Outra identificação tradicional foi entre esquerda e progressismo, entendido este de forma multidimensional: a crença optimista no processo histórico, no progresso humano não limitado ao aumento da riqueza, a valorização das novas ideias, o racionalismo e a cultura para todos, o pacifismo, o anticonfessionalismo, a solidariedade com os povos oprimidos. Esta visão tem a vantagem de não se crispar em sistemas ideológicos, como o marxismo-leninismo (note-se que, sem espaço para desenvolver este tema, distingo inteiramente o marxismo do marxismo-leninismo). Honestamente, há que reconhecer que estes valores, em maior ou menor grau, são hoje partilhados por gente que até se assume como de direita. Vou mesmo mais longe. Vejo sinais de, numa atitude defensiva, alguma esquerda diabolizar o progresso.
Lembro-me também de uma fórmula de Vital Moreira, há uns anos, que me agradou: a esquerda de hoje é a que ainda continua fiel ao lema da Revolução Francesa, "liberté, égalité, fraternité". Nessa altura, escrevi, modernizando-a, "liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social". Com tristeza para toda a nossa geração, agora já se reduz a fórmula à mera preservação do estado social, coisa que me parece muito mais limitada. Tristes tempos!
Talvez a minha melhor abordagem pessoal seja a da memória da juventude. Porque é que fui de esquerda, no desabrochar dos vintes etários? A pergunta implica a vantagem de transferir o discurso da teoria, hoje nebulosa, para a prática. Com risco de parecer sectário, digo que, em 1960 e nas décadas anteriores, ser de esquerda, em Portugal, era ser comunista ou independente simpatizante e colaborante (não falo aqui das derivações posteriores, maoístas, que sempre rejeitei, mas que, em alguns casos, respeito, bem como dos grupos de católicos progressistas, pouco expressivos, embora importantes). Antifascistas houve muitos e muito respeitáveis, mas não posso considerar como de esquerda muitos democratas que rejeitavam qualquer aliança com o movimento popular ou que se recusavam a afirmar uma atitude anticolonial. Mais tarde, vem a ASP, embrião do PS. Aceito que de esquerda, mas sem uma visão de alternativa ao capitalismo.
Chegamos a uma pedra de toque. Pode-se ser de esquerda aceitando o capitalismo, como sistema económico? Nesses tempos, julgo que não se pode sequer colocar a questão, hoje é uma inevitabilidade prática. O modelo real de socialismo faliu, para não falar da hipocrisia da China actual (continua a ser socialista?). Muito antes da falência política, o "socialismo real" já tinha falido em três coisas essenciais: o défice democrático, a falência da utopia da construção do "homem novo" (veja-se o que é hoje a Rússia) e na economia, com uma visão burocrática e anti-científica de um sistema económico. Por este último factor, talvez mais do que pelos políticos e sociais, longamente acumulados, qualquer proposta da chamada "esquerda dogmática" enferma logo da falta de credibilidade, por falta de um modelo económico alternativo.
Talvez muita coisa pudesse ter sido diferente se tivessem vingado a autogestão jugoslava, a revolução húngara, a primavera de Praga. Infelizmente, a história nunca volta atrás. Fica isto apenas como consolo para quem, e foram bastantes, não esperou pelo estertor perestroiko para pôr em ordem a sua cabeça, no armário da ideologia e da política.
E estes, eu e muitos dilectos amigos, com que se defrontam hoje? Com a ordem capitalista, provavelmente por muitos anos, sem alternativas, com as regras do mercado, com a globalização, com as restrições do euro, e principalmente com a chantagem da poupança das empresas em relação ao esmiframento dos contribuintes trabalhadores, porque elas são as nossas queridas garantes da competitividade. Ironicamente, está-se a cumprir um velho princípio comunista, o colectivo antes do individual. Simplesmente, o colectivo é agora essa coisa vaga e contraditória que é o mundo das empresas.
Parece inegável que, hoje, a economia e as leis do mercado condicionam fortemente, senão totalmente, a liberdade de opção política. Como ainda li há dias, entende-se que controlar o défice, criar condições de competitividade na globalização, contribuir para a robustez do euro, não são políticas de esquerda ou de direita, são só boa governação. Por outro lado, há novas situações muito condicionantes, como a necessidade de preservação dos recursos escassos ou, por outro lado, a grande mudança demográfica, com grandes consequências para a siustentabilidade da segurança social e dos sistemas públicos de saúde. Realisticamente, aceito isto, em boa parte, mas é perigoso. Não aceito que a forma de fazer essa boa governação seja indiscutível. Se o for, congrega, como se está a ver em muitos lados, também cá, um albergue espanhol de apoios, em que, aí sim, se torna muito difícil distinguir esquerda e direita.
Com tudo isto, volto à tal minha fórmula de ser de esquerda, que me alivia o desconforto: liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social. Como disse, parece que agora a solidariedade social é o último reduto definidor. Dou mais valor à igualdade de oportunidades. Acrescentaria também um aspecto importante, de atitude. Mesmo aceitando-se a inevitabilidade das constrições do nosso sistema económico, pode-se pactuar com as suas consequências ou até mesmo desejá-las. Isto é claramente uma atitude de direita. Pelo contrário, pode-se lutar pela limitação, a maior possível nas circunstâncias reais, das consequências sociais da generalizada visão neoliberal e da globalização. É ser-se de esquerda. Juntaria a independência de espírito e o respeito pela pluralidade de visões, sempre em debate, num quadro comum de valores essenciais. Também uma atitude
profunda, não só de circunstância, de revolta e luta activa contra a pobreza, a exploração dos povos, o belicismo, o obscurantismo, a subjugação das mulheres, a doença no terceiro mundo, etc. (sem negar que há muita gente dita de direita que também partilha estas preocupações, mas sem que isto seja
estruturante do pensamento de direita). Não é muito, mas é difícil.
Isto vai longo, desculpem-me, mas assunto tão sério não se compadece com "sound bites". Para a próxima, fica outra questão, agora bastante discutida: o governo Sócrates é de esquerda? E, já agora, ao inverso, o PCP e o BE não serão uma esquerda que se mata a si própria, por desajustamento à realidade? O que fica?