As putas da R. do Beco
[Declaração de interesses: nunca fui às putas, tudo o que se segue é de ouvir dizer. Entenda-se também que puta é palavra amigável. Adivinho que muitas preferem ser chamadas de putas, em vez de prostitutas, nome arrevesado. Pior ainda é trabalhadoras do sexo, coisa que só lembra aos fanáticos do politicamente correcto. Ah, o nome da rosa! Provavelmente elas não devem concordar é com o uso do vernáculo filho da puta, bem assentado a muito filho de senhora bem. Os delas são, muitas vezes, educados com todos os esmeros.]
Isto vem na sequência da crónica anterior, acerca do Zé das camionetas. Quando o Zé ficou crescido e se virou para o negócio das apostas, os proventos iam em boa parte, como escrevi, para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
A R. do Beco era o horror das mães de família, rua da perdição, agora trajecto obrigatório para quem vem para o centro da cidade. Hoje, chama-se R. de S. Francisco Xavier. Coisa aparentemente irónica, mas se calhar não. Quantas putas indianas terá o santo acolhido ao cristianismo?
Pior ainda era o Éden, palco de decrépitas bailarinas espanholas, não sei se com quartos nas traseiras. Sussurrava-se nos serões de família, coisa deliciosa mas também a maior alimentadora da intriga: "fulano até é muito amigo da mulher e dá-lhe tudo para a casa, mas vai ao Éden". Frustração de micaelense que quer ter toda a vivência da sua terra, não conheço o Éden, que talvez já nem exista. Mas consta-me que ainda há descendência local de espanholas do Éden. Bom sinal, os açorianos são capazes de amores desbragados e de fazerem famílias bem pouco convencionais. Só assim se explica que tenham desaparecido os sinais fisionómicos dos milhares de escravos negros levados para a ilha.
Na R. do Beco, embora sem alardes, casinha baixa igual às outras, pontificava a Emília, empresária de todo o comércio da rua e distribuidora das putas por todas as casas, numa hierarquia que despachava rapariga fresca e bonita para o nº 7, velha degradada e pustulenta para o infecto nº 31. No meio, matriarcal, o nº 19 da Emília, todo alinhado, veludos e damascos, quartos pequenos todos demolidos para grande salão de dança e recepção, com um piano decrépito em que tocava um chulo, o Alfredo da Aninhas, também ela só memória viva de tempos de putice reles, que em Ponta Delgada não podia haver mais do que isto.
(Não sei porque é que me deu para escrever todos os endereços como números ímpares, à esquerda. Não tirem conclusões precipitadas. Coitadas, elas até são frequentemente, no seu sofrimento, muito religiosas e fatalistas, nada coisa de esquerda.)
Parece que também havia uma bebida excelente, mistura a meio por meio de cachaça e de vinho abafado. Outra especialidade, que vim a redescobrir há tempos no meu café de Sassoeiros, a pedido ao balcão de uma velha alcoólica envergonhada (puta reformada?), era um martini completado com cerveja. Gostos estranhos de bêbedos. Não sei por mim, tudo isto são conversas antigas do meu colega Chico, dançarino famoso dessas putices antigas, todo nu, esfregando-se em corpos de higiene duvidosa, mas com outros esmeros de limpeza, nunca dispensando as peúgas, porque o chão estava todo encardido. Gente fina!
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