01 dezembro, 2006

Uma opinião sobre o aborto

Todos os utilizadores de Mac conhecem a imprescindível "mailing list" do Pedro Aniceto, o "Correio dos Outros". Extravasa frequentemente para coisas que não têm a ver com computadores. Ultimamente, tem sido o referendo sobre o aborto. Tenho-me dividido, entre respostas a coisa sérias e inibição de responder a alarvidades. Aqui vai uma mensagem de um anónimo (palpita-me que com boa formação jurídica). Não percebo bem o primeiro parágrafo, mas nada desmerece do conjunto. Este conjunto quase me dispensa de escrever mais sobre o meu voto pelo SIM. Segue-se a transcrição.

"Seja-me permitido fazer uma observação.

É verdadeiramente espantoso que alguém possa dizer-se Cristão e que, sob (prefiro-o ao “sobre”...) o ponto de vista religioso, “se está nas tintas para que as pessoas abortem ou não, assassinem, roubem, etc.”, por entender que “isso é um problema entre as pessoas que o fazem e o seu criador”! A enormidade da afirmação, que varre do mapa uma civilização baseada num código moral judaico-cristão e apaga de uma penada a Bíblia, os Evangelhos e tudo, mas rigorosamente tudo, quanto se escreveu sobre religião desde há já mais de vinte séculos, justifica amplamente que o seu autor aproveite o assombroso balanço e lance as fundações de uma nova religião.

Porém, impõe-se que renuncie a apelidá-la de Cristã, pois que jamais conseguirá justificar a sua teologia com um código moral em que matar, roubar, “etc.” sejam um assunto privado entre o indivíduo e o “seu” criador, ao revés de tudo quanto sobre a lição de Cristo – como testemunhada nos Evangelhos – se escreve há 2 mil anos.

A asneira é felizmente livre.

Mas é espantoso é que assuma estas dimensões épicas sem que quem se mete por esses espinhosos caminhos das relações entre Religião, Moral e Direito sem uma competente armadura conceitual se dê aparentemente conta do imenso ridículo que é não se limitar a dizer “eu ACREDITO que” isto e aquilo. Só neste País? Provavelmente não...

Mas, no fim de tudo, se é bem inócuo o que o Senhor Amorim traz como fundamento da sua posição, não deixa por isso de ser extremamente importante: o Senhor Amorim, que confessa não saber quando começa a vida, diz, preto no branco, que ACREDITA “sinceramente que comece antes das 10 semanas”. É aí que está o centro da questão: se fosse possível estabelecer como verdade científica (diversamente das outras “verdades”, para ser científica ela tem que ser susceptível de demonstração indutiva) que a vida humana (tal como a definimos) começa no preciso momento em que a fecundação ocorre, ninguém poderia discutir a ilicitude penal da interrupção do processo de gestação. Mas, embora aos cientistas chamados a pronunciar-se nessa questão não tenhamos sequer o direito de opor a sua fé pessoal – por definição não pode haver confusão de planos – tal afirmação não pôde até à data ser estabelecida com crédito científico. É linear – mas não por isso menos verdadeiro – que na falta dela o legislador tenha considerado a opção – bem mais razoável do que a apresentada pelos “fundamentalistas do não” - entre a consensualidade segura de um mínimo e o risco de, mesmo assim, se ferir a área intangível da vida. Tudo isto é muito menos espectacular do que alguns pensam, dividido entre exércitos que se embatem numa fragorosa colisão de branco e preto. Pois é, mas é muito menos simples, muito mais exigente da humana condição e da sua capacidade – propugnada pelo Cristianismo – de entender e de sentir compaixão pela condição humana.

De resto, aos feros proibicionistas, que tanto enchem a boca de um direito à vida mas que andam tão perto do direito de tirar a vida a quem já nasceu – como mostram a história e o direito comparado (ver os tais EUA, sempre trazidos para tudo como um paradigma que nem serve para a nossa cultura, vista a prevalência dos valores herdados da Reforma) na previsível coincidência entre o proibição do aborto e vigência da pena de morte – não ocorre nem por um momento equacionar a vontade conjectural do feto, ou seja, a que seria razoável supor emitida por quem, ainda por diferenciar e adquirir consciência – mesmo incipiente – de si mesmo (que é o que nos distingue dos irracionais), fosse colocado ante a opção de nascer sem ser sido voluntariamente concebido e de, com a probabilidade que as circunstâncias inculcassem, não ter uma razoável expectativa de apoio do conjunto dos seus progenitores para a vida extra-uterina.

Será agora a minha vez de dizer que ACREDITO que é aqui, na dignidade deste direito a ser concebido que conjecturalmente se pode projectar no nascituro, que radica a outra dimensão do direito à interrupção voluntária de um processo de gestação que apenas se consolida irrevogavelmente a partir de um dado momento.

Não é menos escrupuloso quanto à determinação desse momento quem se mostre sensível às questões sociais da maternidade – porque as relativas à paternidade estão quase invariavelmente no centro da dolorosa decisão de abortar – e se apoie na falta da evidência dessa vida humana para desobstruir o caminho da interrupção, em coerência com o apoio a uma maternidade responsável.

Por isso todos se devem respeito, a começar pelo da inteligência de cada qual. Mesmo assim, nunca será demais sublinhar que, se somos soberanos nas nossas escolhas legislativas – designadamente quanto à bárbara punição com pena de prisão da mulher que aborte, a mesma mulher que, sem sinais de maior consideração social, paga em dobro a sua condição de mãe, vendo-se preterida no emprego em função da maternidade, subjugada pela obstinação de supremacia masculina no âmbito do seu relacionamento social e familiar, vítima das violências de género que proliferam num tempo de igualitarismo consumista, e até descriminada do ponto de vista fiscal, ela cujo comportamento reprodutivo que é a chave da sobrevivência da sociedade!

Se o conjunto dos cidadãos deste país votar maioritariamente o não, impõe-se que a mesma Assembleia da República que se demitiu de legislar com o mandato que recebeu desses mesmos cidadãos tome a iniciativa de votar uma lei que puna com a mesma pena de prisão o homem que, tendo dado causa à gravidez interrompida, não tenha conseguido obviar ao aborto apesar dos esforços que razoavelmente são exigíveis de quem se permite ter relações sexuais com mulher fértil sem protecção apropriada. Trata-se apenas de dar corpo ao que a lei penal prevê como autoria e imputação a título e dolo eventual.

Basta de brincadeiras de mau gosto, meus senhores!

jlsc (???)"

1 comentário:

Danilo disse...

Muitos dos que defendem o aborto são sensíveis ao argumento da liberdade da mulher.

Sobre esse assunto, convido os amigos a lerem meu artigo "Aborto: liberdade ou tirania?", no blog da Família de Nazaré:

http://familianazare.blogspot.com

No final, o grande tema é o que entendemos por liberdade!