Vou tentar cumprir o que disse na última nota, responder à pergunta: “porque não está a haver a mesma contestação no ensino superior?”. Creio que há múltiplas razões convergentes, umas mais ligadas às instituições e aos docentes, outras mais à política do MCTES.
Ao contrário do ensino básico e secundário (EBS), o corpo docente do ensino superior (ES) sempre foi muito hierarquizado. Isto reflecte-se, obviamente, na estrutura de carreira. A criação de duas categorias de professores do EBS está a ser uma das grandes razões de protesto. Imagine-se o que seria a criação de uma carreira com cinco categorias, como no ES. Mais. Após um curto interregno basista a seguir à revolução, cedo os hierarcas recuperaram poderes decisivos sobre os mais novos, por via da sua participação exclusiva nos conselhos científicos e da composição dos júris. Parece-me óbvio que isto, só por si, impede uma mobilização corporativa tão global e solidária como se vê nos professores do EBS.
Outra diferença essencial é que no EBS os estudantes quase não contam. Podiam contar os pais mas a grande maioria é desinteressada. Já no ES, a situação é diversa, com grandes tensões, amiúde, entre os dois grandes corpos, resultando por vezes em eles se defrontarem entre si, deixando incólume o adversário comum, o MCTES. Um caso exemplar é o das propinas. Veja-se o que se passou em Coimbra, que resultou num divórcio do que parecia ser um casamento feliz entre o reitor e a Associação Académica. Mas, afinal, o que colocou o reitor naquela situação (que ele devia ter ponderado antecipadamente) foi a política orçamental do MCTES.
Outra característica de que o ministério tira partido é a maior afirmação institucional. Repare-se que nesta luta dos professores do EBS, nunca aparece o nome de uma escola, muito menos qualquer forma de rivalidade entre elas. Aliás, factores de rivalidade como os “rankings” acabam sempre por serem esquecidos no dia seguinte da saída nos jornais e servem muito mais é para outra guerra, a do público/privado. Já no ES é diferente e nem falo no uso hábil que é feito, com culpas diversas, da dicotomia universidade-politécnico. Falo principalmente da rivalidade entre universidades, que dificulta uma frente unida de professores.
Ainda outra diferença essencial, a da cultura de avaliação. É novidade para o EBS, mas é coisa perfeitamente assimilada no ES, a nível pessoal, de carreira, na avaliação de projectos de investigação, na avaliação de cursos. Também, honra se faça aos professores do ES, uma já largamente conquistada cultura da mudança, a consciência da necessidade de uma reforma que seja vaga de fundo.
Finalmente, arrisco-me a uma coisa que me pode valer críticas e desagrados. No EBS, é difícil o clientelismo. A rigidez burocrática do sistema, os processos de colocação, as regras de progressão salarial, a benesse para alguns (oxalá que poucos) de não terem de se moer a ensinar, tudo em grande parte escapa ao poder do ME. É diferente no ES. Claro que o que vou dizer é teórico e não tenho qualquer ideia de que assim se passe. Teoricamente, repito, não é possível ao MCTES, por via da FCT, criar um sistema clientelista de bonzos de investigação atentos, veneradores e obrigados? Teoricamente, repito, não é possível ao MCTES, pelo aperto orçamental, criar tais dificuldades à abertura de concursos que muitos acharão que ou se calam e se portam bem ou se reformarão como professores auxiliares? E até, não é possível constituir uma espécie de corte em que professores cortesãos beijam a mão, só por vaidade da recepção nas Laranjeiras?
Passando ao que chamei a segunda ordem de factores, vou tentar chamar a atenção, muito esquematicamente, para algumas diferenças essenciais de política entre a ME e o MCTES. Começa logo por isto de MCTES, que demonstra habilidade política do ministro. Em 1995, sei eu muito bem, tudo indicava que o actual ministro ia ser MCTES e acabou por recusar e exigir ser só MCT (ciência e tecnologia, lembram-se?). Com isto, fez inegável bom trabalho, ganhou prestígio e atirou para cima de Marçal Grilo a batata quente das propinas. Goste-se ou não, deve-se reconhecer que isto é traquejo político, coisa antiga das lutas estudantis, como já disse, coisa a faltar à ME.
Depois, tem tido a habilidade máxima, pela qual devia ser responsabilizado, a de fugir da revisão dos estatutos de carreira como diabo da cruz. Digo que deve ser responsabilizado porque julgo que a revisão das carreiras é determinante para qualquer outra reforma. Neste sentido, dou razão à ME. Outra habilidade, a de se escudar em grandes pareceres internacionais, o que critiquei muitas vezes, embora reconhecendo a habilidade política. Também o uso matreiro de alguns argumentos para efeitos internos, como o desperdício de cursos com poucos alunos ou a reconhecida má gestão de algumas instituições, a manutenção amiguista de pessoal contratado supérfluo, a falta de sentido de “accountability”, etc.
Dito tudo isto, não quero esquecer uma sorte que o MCTES tem e o ME não, o de um quadro geral de referência política. No caso do EBS, este quadro é muito criticado, o do chamado “eduquês”, que os professores não sentem como coisa sua, antes como um exercício masturbatório de gente da 5 de Outubro (diga-se que, em boa parte, seus colegas professores). No caso do ES, há uma grande diferença. O MCTES pode invocar (a meu ver, em geral de forma errada) um quadro de referência que os professores cada vez mais sentem como seu: o processo e o paradigma de Bolonha.
11 março, 2008
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