13 abril, 2007

O caso Sócrates

Tenho-o seguido com sentimentos mistos. Desgosto com o meu jornal-namorada de sempre, deveres de honestidade intelectual e repulsa pela condescendência dos governos em relação às universidades privadas. Sou professor de uma e repugna-me que ela possa ser atingida pelos ecos das vergonhas alheias.

Escrevi um artigo para o Público. Não vai ser publicado, é muito longo. Mas não os deixo refastelarem-se na desculpa formal, escrevi esta carta ao director.
Sr. Director,

Sou leitor do Público desde o primeiro número. É com o pesar de romper um velho afecto que lhe escrevo esta carta, sobre o comportamento indigno que o Público tem tido em relação ao caso Sócrates.

Envio-lhe em anexo um artigo para publicação. Certamente recusará, com a justificação, que não contesto, de ser demasiadamente extenso. No entanto, nada impede a publicação desta carta, que anuncia que o artigo pode ser lido em http://jvcosta.planetaclix.pt/caso_socrates.doc.

Para localizar os leitores, transcrevo apenas os parágrafos iniciais.

"Declaração de interesses: nunca encontrei pessoalmente o Engº Sócrates, não sou filiado no PS, nem sequer seu eleitor obrigatório, não ocupo nenhum cargo de nomeação governamental. A minha última relação com o PS, muito activa mas já distante, foi nos Estados Gerais e não me lembro de encontrar Sócrates.

Um jornal também é dos seus leitores e há ocasiões em que o protesto de um leitor merece ampla difusão entre todos os demais, por via de artigo de opinião e não de simples carta ao director. Se os fazedores do jornal não o permitirem, arriscam-se a um juízo de falta de coragem. Esta é uma de tais ocasiões, porque eu e certamente muitos mais nunca esperaram ver o Público como exemplo de jornalismo tabloide. Neste caso, não estou a defender Sócrates, estou apenas a querer ficar bem com a minha honestidade intelectual. Escrevo este artigo pensando que é um dever de professor, de intelectual, de cientista. Escrevo-o enojado com a ideia de que isto ainda é uma corja, à Eça.

Com a entrevista de Sócrates de 11 de Abril, na RTP, o jornal teve uma boa oportunidade para sair airosamente do atoleiro em que se meteu. Não o fez e, pelo contrário, refinou na ronquidão acaciana, no dia seguinte. Já se chegou a um ponto em que não há margem para benevolência: ou tudo é completa burrice ou completa desonestidade intelectual."

Vai a seguir o artigo completo, para quem preferir ler online.

JÁ CHEGA!

João Vasconcelos Costa *
Declaração de interesses: nunca encontrei pessoalmente o Engº Sócrates, não sou filiado no PS, nem sequer seu eleitor obrigatório, não ocupo nenhum cargo de nomeação governamental. A minha última relação com o PS, muito activa mas já distante, foi nos Estados Gerais e não me lembro de encontrar Sócrates.
Um jornal também é dos seus leitores e há ocasiões em que o protesto de um leitor merece ampla difusão entre todos os demais, por via de artigo de opinião e não de simples carta ao director. Se os fazedores do jornal não o permitirem, arriscam-se a um juízo de falta de coragem. Esta é uma de tais ocasiões, porque eu e certamente muitos mais nunca esperaram ver o Público como exemplo de jornalismo tabloide. Neste caso, não estou a defender Sócrates, estou apenas a querer ficar bem com a minha honestidade intelectual. Escrevo este artigo pensando que é um dever de professor, de intelectual, de cientista. Escrevo-o enojado com a ideia de que isto ainda é uma corja, à Eça.

Com a entrevista de Sócrates de 11 de Abril, na RTP, o jornal teve uma boa oportunidade para sair airosamente do atoleiro em que se meteu. Não o fez e, pelo contrário, refinou na ronquidão acaciana, no dia seguinte. Já se chegou a um ponto em que não há margem para benevolência: ou tudo é completa burrice ou completa desonestidade intelectual. Seja como for, a direcção e os jornalistas envolvidos devem imaginar o que me disse há dias uma pessoa dita culta e responsável – "deve" haver aí muita sujeira e o Sócrates tem de se explicar muito bem. "Deve"? Porquê, sem mais argumentos? E a quem cabe o ónus da prova?

Há prova de alguma coisa? A meu ver, melhor conhecedor da realidade universitária do que os jornalistas envolvidos, há muitas irregularidades de funcionamento da UnI, mas ainda não vi um único facto substancial que me faça pôr em questão uma coisa essencial, a honorabilidade da pessoa que está a ser atacada. Vamos por partes.

No "sobe e desce" de 12.4, escreve o Público que "subsistem as mesmas dúvidas deste caso, que opõe factos desencontrados à palavra de Sócrates". Esta frase é eticamente abjecta. Factos desencontrados, nem sequer suspeitas fundamentadas ou provas definitivas, podem ser contrapostos à palavra de alguém? Parece que cada um dá à palavra o sentido de honra que cada um tem.

1. As razões de Sócrates. Escolheu tirar um curso de bacharelato, para engenheiro técnico. Até tinha condições familiares para se dar ao luxo de um curso universitário, mais prolongado, também em Coimbra, mas a escolha foi sua e é de foro estritamente pessoal. Porque prosseguiu depois os estudos? Desejo de valorização cultural? Garantia para a incerteza da vida de politico? Mais valia para a sua carreira política? A quem é que interessa isto (a não ser, marginalmente e não como questão individual, o papel social dos títulos académicos)? Uma jornalista que coloca esta questão de foro privado não sente vergonha?

2. O título. É questão menor mas que chamo logo a cabeça, pelo seu significado de ou má fé ou estupidez. Sócrates é engenheiro? Claro que é e não é. Não é, no sentido de profissional liberal, inscrito na Ordem. Mas, assim, eu vou protestar sempre que ler que o director de um conhecido jornal é arquitecto. É claro que Sócrates, por outro lado, é engenheiro, desde que se esteja só a falar de um tratamento social, da mesma forma que o director do Público é tratado por dr., sendo apenas licenciado em biologia. Também Marques Mendes, que protesta contra o tratamento de engenheiro, ficará ofendido se não for dr., tal como muitos mais, com a diferença de que muitos desses mais são doutores e não licenciados.

Honra se faça ao PCP, o único partido que se afastou desta mediocridade de discussão (nem o BE resistiu!). Bem me admiraria que fizesse diferentemente o partido que, certamente com muita honra, é dirigido pelo sr. Jerónimo de Sousa.

3. O currículo parlamentar. Afinal, são duas versões (original e cópia) de um mesmo documento, com uma correcção pela própria mão de Sócrates, em data indeterminada. É ele próprio que corrige engenharia civil, como habilitação, para bach. em engenharia civil. Porque o fez? Chamaram-lhe a atenção para o erro, foi ele que se lembrou? O que me importaria era se ele não tivesse emendado. Mas fazer disto meia página de jornal, é estranho.

E é caso único? Marques Mendes aparece como advogado na sua biografia parlamentar. Vou à Ordem, na net, e não está inscrito. Na biografia de Mota Amaral, na página da AR, diz-se que é advogado. Pode ser erro meu, mas também o sítio da Ordem na Internet não o identifica. Diz também que é doutorado pela U. Açores. É meia verdade, é doutor "honoris causa", por ter sido presidente do GRA, nunca escreveu uma tese ou prestou provas. Nunca vi antes um currículo em que um HC figurasse nas habilitações, em vez de nos "prémios, condecorações e honras", onde tem cabimento. Algum deles procedeu com dolo e desonestidade? Não acredito, são deslizes ou precipitações.

4. O MBA. Eu podia ainda duvidar da maldade de todo este caso, atribuindo a muita ignorância, se não fosse este caso exemplar. Alguma vez Sócrates se intitulou possuidor de um grau de mestre? E não é de nível de informação básica que, em muitas escolas de gestão, se junta o útil ao agradável, organizando cursos de mestrado em que a parte escolar, do primeiro ano, sem a tese, confere um "MBA", diploma de prestígio e reconhecimento internacional e, como tal, muito pretendido entre nós por gente dos negócios ou da administração? Até eu estou a pensar em fazer um, cá por uns projectos fantasiosos de vida que estou a imaginar.

5. O processo individual. Por tudo o que li, não tenho dúvidas de que é um processo muito mal organizado, com falta de documentos. Vou dar como exemplo o caso das equivalências. Já participei em muitos processos destes, na minha universidade. É todo um dossiê, para cada aluno. Não basta a entrega de um certificado de créditos obtidos, é necessário a descrição dos programas e da organização e formas de avaliação de cada disciplina. Sobre isto, o parecer obrigatório e fundamentado do professor da universidade de acolhimento. Na UnI, nada disto, ou então, como se disse, "ao fim de cinco anos ia tudo para o maneta". Mas é o aluno que tem responsabilidade? Alguma vez um jornalista do Público, enquanto estudante, teve a preocupação de ir à secretaria da sua universidade consultar o seu processo e garantir que tudo estava em ordem?

E o requinte da data de domingo de alguns lançamentos de pauta? Uma nota é lançada depois de o exame corrigido e classificado, não no dia do exame. Se for num domingo, que mal vem disso? Hoje, até lanço as pautas é pela net e não garanto que nunca tenha lançado ao domingo ou a altas horas da noite.

6. O certificado do ISEL. Não há dúvidas de que, formalmente, é o aspecto mais criticável deste processo. Um pedido de equivalências para prosseguimento de estudos deve ir logo acompanhado, como é óbvio, por certificado dos estudos anteriores, sob pena de invalidade do processo, nos termos da lei. Neste aspecto, não há dúvidas, o processo Sócrates é ilegal. Mas é razão para ele ir para o pelourinho?

Sócrates iniciou os seus estudos na UnI em 2005/06, só entregando o certificado do ISEL meses depois. Mas porquê? Não diz o Público e tinha de dizer, honestamente, para não me deixar na incerteza e a todos os leitores. Porque a UnI não o exigiu inicialmente? Porque Sócrates se desleixou? Porque foi o ISEL que se desleixou? Teria sido interessante o Público pedir ao ISEL a data do requerimento em que Sócrates pede o certificado.

O que tudo isto revela, inequivocamente, é a bandalheira do funcionamento da UnI (e, com isto, o pouco sentido politico de Sócrates, ao ficar com a sua carreira ligada a tão triste coisa). Não venha agora o MCTES dizer hipocritamente que durante todos estes anos a UnI foi avaliada. Não é verdade. Foi em relação aos seus cursos, uma única vez, mas, como também se passa com todas as privadas (e públicas), nunca em relação ao seu funcionamento e gestão, o que não é indiferente à qualidade de uma universidade.

7. Os professores. Novamente, é caso triste, sintomático do que é aquela "universidade", mas não vejo em que é que possa ser responsabilidade de Sócrates, a não ser, repito, por ele não ter atentado em como o prestígio ou o desprestígio da nossa formação se cola à pele para toda a vida e exige uma escolha ponderada. Por ficar perto do ISEL? A que propósito, sr. engº, foi a coisa mais esfarrapada que disse na entrevista à RTP? Por funcionar em horário pós-laboral? Voltarei a isto.

Admito que esta história dos professores, quem deu ou não cada disciplina é coisa bem bizarra, sem o ministério saber, coisa também bizarra. Mas que crédito merece essa gente? Um até elogiou Sócrates pelo seu desempenho em disciplinas que nunca cursou, mas é homem hoje na cadeia. Se alguém me lançar uma calúnia, o jornal vai ouvir um preso a meu respeito, sem se precaver com grandes cuidados?

8. Testemunhos. Saíram como tiro pela culatra. Afinal, há colegas que se lembram de Sócrates. No entanto, o Público não se contém e tenta torcer as coisas. É mesmo deontologia rasca. Segundo tais testemunhas, Sócrates chegava aos exames dez minutos atrasado (inegavelmente coisa a criticar, que eu não autorizo), era mandado sentar ao fundo da sala (esta, surrealista, é que não percebo: para não copiar pelos outros? Afinal não o favoreciam em coisa tão banal?) e saía dez minutos mais cedo. Espantoso! Eu tenho alunos que saem meia hora mais cedo, é tudo questão de terem concluído o ponto.

9. Regime pós-laboral. Aqui sim, é o aspecto em que mais posso criticar Sócrates mas, curiosamente, nunca é levantado pelo jornal. Pudera, os jornalistas sabem lá o que é ou deve ser a educação superior. Sócrates fez "Análise de estruturas", "Betão armado e pré-esforçado", "Estruturas especiais", "Projecto e dissertação". Só esta última, se a sério, já exige um contacto muito frequente com o professor. Quanto às outras, embora eu não seja engenheiro, não compreendo como se pode sentir de consciência tranquila, no plano intelectual, um estudante de engenharia civil que não só raramente vai às aulas como não segue um programa intensivo de trabalhos práticos, de exercícios de cálculo. Era como se eu tivesse feito clínica médica em horário pós-laboral, sem nunca ter visto um doente.

10. O fax. Deixo para o fim, porque raia de tal forma o absurdo e o ridículo que permite todas as suspeitas de má intenção. Questão elementar: sempre tive grande curiosidade em saber coisa que o jornal nunca disse, o que eram aqueles decretos que Sócrates enviava. Porque é que o Público nunca divulgou isto? Estou certo de que o ex-reitor se lembraria do que eram os tais decretos. Afinal, os que justificavam que ele não pudesse ser professor, claro que não aluno!

Também a data do fax. Não posso jurar, mas suspeito de grossa aldrabice quanto o jornalista, em 12.4.2007, diz que o fax não está datado, o que teria permitido saber que é posterior à licenciatura. Provavelmente, Sócrates não escreveu a data, mas nunca vi um aparelho de fax que não imprima automaticamente a data e hora. Fui procurar a imagem, mas já não está disponível. Desafio o público a divulgá-la, sem apagar o cabeçalho do fax.

Quanto ao "seu", nem me digno comentar tal rasteirice. Vou passar é a ter cuidado com uma assinatura que uso muito, quase imagem de marca, "cordialmente". Ainda um dia um marido ciumento me põe processo de adultério!

E, mesmo neste caso do fax, o jornalista não resiste a uma ferroada maldosamente estúpida: "José Sócrates não explicou por que razão aquele documento se encontrava apenso no (sic) seu dossier (sic) de aluno da UnI". Esta jóia não vem assinada. Apesar de não desejar mal a ninguém, achava piada a que acontecesse uma coisa bem possível a este jornalista, lembrando-me de uma experiência minha de hoje: encomendou uma colecção de CD, de 100 euros e pagou. A fornecedora diz que, afinal, não tem à venda e vai reembolsar. Manda ordem para o banco, que se engana e apensa a ordem de pagamento no (sic) dossier (sic) do vizinho.

11. Finalmente, o aspecto crucial deste caso de péssimo jornalismo "ad hominem" (e em boa hora?...). Não há uma linha publicada sobre as práticas generalizadas da UnI. Por maiores irregularidades que possa ter havido, não há a mínima substanciação quanto à inevitável suspeita de favorecimento político. Pode tratar-se apenas de bandalheira geral. E valia a pena inquirir um número significativo de alunos, antigos e actuais.

Em conclusão. Detesto a desonestidade. Detesto a arrogância intelectual. Detesto a moleza vertebral perante poderes (este caso, não os poderes políticos). Detesto a estupidez. Mas, acima de tudo, detesto vigorosamente a mistura de tudo isto.

P. S. (11:50) – um comentário de um leitor leva-me a clarificar melhor a minha posição. Este meu artigo não tem nada ver com qualquer atitude minha de desculpabilização de Sócrates. Tudo me faz suspeitar, creio que legitimamente, que houve uma atitude geral de facilitismo por parte da UnI. Coisa muito diferente é eu me permitir suspeitar de que Sócrates foi voluntariamente conivente com isso. Era preciso que a investigação jornalística o tivesse indicado. Não o fez. Ela foi conduzida com incompetência e com falta de seriedade. Foi só sobre isto que pretendi escrever.

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