31 dezembro, 2006
Bom Ano!
Pensando em família, amigos, leitores e toda a gente deste mundo, esta noite vou invocar Janus e fazer-lhe uma oferenda num templo imaginário, para que ele esqueça o ano cinzento de 2006 e tente ver se nos traz um 2007 mais colorido.
P. S. - E não se esqueçam de que amanhã não é só o primeiro dia de 2007, é também o dia mundial da Paz.
30 dezembro, 2006
De século em século
Em 1907:
- Manifestações na Rússia que tornaram famosa Alexandra Kollontai.
- O Tillman Act proíbe as contribuições financeiras de bancos e empresas para as campanhas políticas americanas.
- Churchill propõe a abolição da câmara dos lordes (até hoje...).
- Pela primeira vez, há sufrágio universal no Império Austro-húngaro.
- A eleição da primeira deputada finlandesa.
- 43000 automóveis fabricados nos EUA.
- Invenção do taxímetro e seu uso em Nova Iorque.
- Abertura da primeira escola de Maria Montessori.
- Minkowski propõe que as ideias de Einstein e Lorenz são melhor compreendidas num espaço não euclidiano, coisa que nunca ainda tinha ocorrido ao próprio Einstein e que abre o caminho à relatividade generalizada.
- O início do trabalho de Morgan sobre os cromossomas e as mutações.
- Primeiro laboratório de doenças tropicais, no Institut Pasteur.
- Primeira descrição da doença de Alzheimer.
- Edouard Belin inventa o precursor do fax.
- A UPS introduz o conceito do correio urgente.
- Alguns livros: "The Secret Agent", Joseph Conrad; "A Mãe", Maxim Gorky; "The Iron Heel", Jack London.
- A primeira exposição dos cubistas.
- A primeira loja Alfred Dunhill, Ltd., em Londres.
- Inauguração do New York's Plaza Hotel.
- O fabrico da primeira lata de conserva de atum.
PS - Pergunta parva, esta última. Herdeiro de um blogue, o que é isto, a essa distância? O meu tetraneto não saberá escrever, estará sentado diante de qualquer coisa que lhe capta o pensamento e regista, em qualquer processo baseado na física quântica. A seguir, ele pensa em destinatários do seu pensamento e mentalmente, sem dedos nem teclas, manda a máquina enviar o "texto" para "publicação". Do outro lado, ninguém lerá, já nem se saberá o que isto é. O receptor receberá um holograma (claro que muito mais aperfeiçoado) com o meu tetraneto a dizer "apanha" e mandará apenas à máquina que lhe transmita a mensagem em ondas de energia mental, coisa que eles vão descobrir.
Huxley, Orwell? Talvez, mas porque não? E eu sou tão ingénuo que até acho que nada disto me mete medo. Big brother? Alguém já conseguiu sê-lo? A grande constante do homem foi sempre a de saber controlar os custos-benefícios do progresso. Um dos meus livrinhos de cabeceira é a "Filosofia espontânea dos cientistas", de Althusser. Creio que uma característica essencial é o optimismo histórico.
E quem me dera estar a "escrever" isto em 2107!
29 dezembro, 2006
A execução de Saddam Hussein
Parece estar iminente. Indiscutivelmente, foi um grande criminoso, mas isto não justifica que seja vítima de um crime em vingança. Talião está morto e enterrado. Para mim, qualquer execução é um crime.
Mais, como dizia Talleyrand, em política pior ainda do que um crime é um erro.
Mais, como dizia Talleyrand, em política pior ainda do que um crime é um erro.
27 dezembro, 2006
O Velho do Natal
Vamos qu'é d'obrigação, cantam os foliões de Espírito Santo da minha terra. Vamos lá então retomar a escrita, mas, ainda com a ressaca de preguiça festiva, vou fazer como uma "ilustre" escritora que se autoplagia (não digo quem, não sou parvo, não gosto de tribunais).
Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar para a Terra do Nunca, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo.
Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, era o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi!
Noite de espera terrível, a de Natal, horas e horas até à missa do galo, o cheiro de incenso da matriz a abrir o apetite, depois ainda a lenta chegada dos convidados, para ceia interminável. Os meus pais condescendiam que estávamos primeiro, irmãos e primalhada, que os seus acepipes podiam esperar. Para nós, era prendas e cama.
Coisa curiosa era que o Velho do Natal sabia exactamente a hora a que os meus pais davam toque para a cerimónia. Toque que tardava, até se assegurarem que estávamos todos bem arrebanhados e que não havia malandreco à espreita. No entanto, eu esgueiro, acotovelando os outros para chegar primeiro, conseguia sempre vislumbrar o velho, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas.
Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.
Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar para a Terra do Nunca, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo.
Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, era o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi!
Noite de espera terrível, a de Natal, horas e horas até à missa do galo, o cheiro de incenso da matriz a abrir o apetite, depois ainda a lenta chegada dos convidados, para ceia interminável. Os meus pais condescendiam que estávamos primeiro, irmãos e primalhada, que os seus acepipes podiam esperar. Para nós, era prendas e cama.
Coisa curiosa era que o Velho do Natal sabia exactamente a hora a que os meus pais davam toque para a cerimónia. Toque que tardava, até se assegurarem que estávamos todos bem arrebanhados e que não havia malandreco à espreita. No entanto, eu esgueiro, acotovelando os outros para chegar primeiro, conseguia sempre vislumbrar o velho, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas.
Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.
21 dezembro, 2006
17 dezembro, 2006
Viram o Zelig?
Não gosto nada da ideia de "inimigos de estimação", mas admito que me dá muito gozo ter uma bela lista de "bobos de estimação". Na sua qualidade comum de parvoíce, tendo a classificá-los por ordem de pomposidade, de notoriedade, de "parece que há um rapaz, o Pacheco..." (atenção, estou a falar do meu conterrâneo Fradique, não de Pacheco Pereira). Quem será o meu número 1? Cada vez tendo mais a dar ao prémio a João Carlos Espada.
O homem, semanalmente, faz-me o pior que se pode fazer a um português, lembrar que a palavra "inveja" é a última dos Lusíadas. Ele são as brilhantes ideias, a originalidade decerto apreciada em todas as conversas de barbearia por este país fora, essa coisa obviamente compreensível de tanto se ser conselheiro de Soares como de Cavaco. Mas há muito melhor, aquilo que verdadeiramente invejo, o cosmopolitismo, essa capacidade única de aspirar os aromas de tudo o que há de mais intelectual em Inglaterra, por onde ele passou.
Quando lhe deu o tema de tese, Ralf Dahrendorf falou-lhe criticamente de Charles Murray. O nosso espadique foi ler, aplicadinho, e, ao longo dos tempos, alguma coisa germinou. Sei agora, segundo a sua última crónica no Expresso, que, doze anos, mais tarde, em 2002, jantaram os três e conversaram amenamente sobre esse episódio. Imagino como os dois seniores, babados, se diziam mutuamente em silêncio, "que génio, este rapaz! Com ele, ainda vamos ver um imenso Portugal!". Tudo isto me lembra o Zelig, de Woody Allen. Viram?
Oxalá que não dê a JCE para falar sobre a monarquia inglesa. Se sim, a rainha que se cuide, porque o Expresso há-de falar sobre muitos almoços com a rainha.
O homem, semanalmente, faz-me o pior que se pode fazer a um português, lembrar que a palavra "inveja" é a última dos Lusíadas. Ele são as brilhantes ideias, a originalidade decerto apreciada em todas as conversas de barbearia por este país fora, essa coisa obviamente compreensível de tanto se ser conselheiro de Soares como de Cavaco. Mas há muito melhor, aquilo que verdadeiramente invejo, o cosmopolitismo, essa capacidade única de aspirar os aromas de tudo o que há de mais intelectual em Inglaterra, por onde ele passou.
Quando lhe deu o tema de tese, Ralf Dahrendorf falou-lhe criticamente de Charles Murray. O nosso espadique foi ler, aplicadinho, e, ao longo dos tempos, alguma coisa germinou. Sei agora, segundo a sua última crónica no Expresso, que, doze anos, mais tarde, em 2002, jantaram os três e conversaram amenamente sobre esse episódio. Imagino como os dois seniores, babados, se diziam mutuamente em silêncio, "que génio, este rapaz! Com ele, ainda vamos ver um imenso Portugal!". Tudo isto me lembra o Zelig, de Woody Allen. Viram?
Oxalá que não dê a JCE para falar sobre a monarquia inglesa. Se sim, a rainha que se cuide, porque o Expresso há-de falar sobre muitos almoços com a rainha.
16 dezembro, 2006
Litvinenko, uma história mal contada
O caso Litvinenko é história muito mal contada. Não me vou embrenhar em intrigas à James Bond. Dele só retenho a recomendação "stirred, not shaken". Parece não haver dúvidas de que Litvinenko morreu de uma dose letal de radiação emitida pelo isótopo 210 do polónio, introduzido no seu organismo por forma aparentemente desconhecida. Não pode ter sido só por contacto cutâneo, não causaria efeitos tão dramáticos. Comecemos por lembrar o que é isto de radiações e de isótopos.
A radiações estamos todos sujeitos, num largo espectro de energias/frequências. Se não estivéssemos sujeitos à radiação luminosa, éramos cegos. De outras, como as microondas, ainda não conhecemos possíveis riscos. Outras não, toda a gente sabe que se deve proteger na praia dos ultravioletas, e que os raios X e gama são cancerígenos, causaram mais mortos de Hiroshima dos que morreram imediatamente pelo efeito térmico da bomba. Mas as radiações não aparecem espontaneamente no universo, têm sempre uma fonte. Nos casos mais correntes, são o nosso pai Sol.
Também as temos em casa, na Terra, os isótopos radioactivos. Todos os átomos se definem por um certo número de protões no núcleo, de carga positiva, igual à dos electrões negativos que orbitam ao redor. A diferença está no número de outras partículas, os neutrões, sem carga eléctrica. Átomos com o mesmo número de protões e electrões, que definem as suas características, mas com mais um ou mais neutrões, chamam-se isótopos. Muito frequentemente, manifestam-se como coisas irrequietas, emitindo radiações. Por exemplo, o vulgar carbono tem número atómico 12, mas já toda a gente ouviu falar no seu isótopo 14, o radioactivo, que permite a datação dos fósseis. É o mesmo átomo, mas com dois neutrões a mais, que o "perturbam". Fica com energia a mais e "vomita-a", como radiação.
O que temos lido é que se está a encontrar radiação de polónio-210 por toda a parte, hotéis, restaurantes, aviões, Londres, Moscovo, Hamburgo. Não se percebe, porque não há coisa nenhuma que se chame radiação de polónio-210 que fique a pairar na ausência do próprio polónio-210. Se Litvinenko foi fortemente contaminado, aceito que também fiquem contaminados – com a substância radioactiva, não com a radiação! – sítios por onde passou, as sanitas em que urinou, superfícies para que espirrou. Mas não urinou radiação, urinou foi a fonte da radiação.
Mas não, há radiação por toda a parte. Impossível. Se há radiação por toda a parte, há polónio-210 por toda a parte, a emiti-la. Isto é que já não me cabe na cabeça. Posso admitir um descuido, uma ou outra contaminação acidental. Agora profissionais da morte que andam com as mãos sujas de polónio-210 a espalhá-lo por toda a parte, aviões, hotéis, restaurantes, isto é que não. Há uma coisa clássica nestas histórias, o baralhar pistas.
Desculpem o pretensiosismo da lição de física, mas creio que é dever de cada um contribuir com alguma base técnica para o raciocínio dos leigos.
Registe-se ainda uma nota importante. Polónio-210 não se vende na drogaria. Não sei quem o pode adquirir, se a corte de Putin, se o ex-KGB (parece que é a mesma coisa), se a máfia russa. Uma coisa sei, sinto-me pouco seguro. No entanto, continuo a não trocar a liberdade pela segurança. Não será esta a grande questão dos nossos tempos de hoje?
A radiações estamos todos sujeitos, num largo espectro de energias/frequências. Se não estivéssemos sujeitos à radiação luminosa, éramos cegos. De outras, como as microondas, ainda não conhecemos possíveis riscos. Outras não, toda a gente sabe que se deve proteger na praia dos ultravioletas, e que os raios X e gama são cancerígenos, causaram mais mortos de Hiroshima dos que morreram imediatamente pelo efeito térmico da bomba. Mas as radiações não aparecem espontaneamente no universo, têm sempre uma fonte. Nos casos mais correntes, são o nosso pai Sol.
Também as temos em casa, na Terra, os isótopos radioactivos. Todos os átomos se definem por um certo número de protões no núcleo, de carga positiva, igual à dos electrões negativos que orbitam ao redor. A diferença está no número de outras partículas, os neutrões, sem carga eléctrica. Átomos com o mesmo número de protões e electrões, que definem as suas características, mas com mais um ou mais neutrões, chamam-se isótopos. Muito frequentemente, manifestam-se como coisas irrequietas, emitindo radiações. Por exemplo, o vulgar carbono tem número atómico 12, mas já toda a gente ouviu falar no seu isótopo 14, o radioactivo, que permite a datação dos fósseis. É o mesmo átomo, mas com dois neutrões a mais, que o "perturbam". Fica com energia a mais e "vomita-a", como radiação.
O que temos lido é que se está a encontrar radiação de polónio-210 por toda a parte, hotéis, restaurantes, aviões, Londres, Moscovo, Hamburgo. Não se percebe, porque não há coisa nenhuma que se chame radiação de polónio-210 que fique a pairar na ausência do próprio polónio-210. Se Litvinenko foi fortemente contaminado, aceito que também fiquem contaminados – com a substância radioactiva, não com a radiação! – sítios por onde passou, as sanitas em que urinou, superfícies para que espirrou. Mas não urinou radiação, urinou foi a fonte da radiação.
Mas não, há radiação por toda a parte. Impossível. Se há radiação por toda a parte, há polónio-210 por toda a parte, a emiti-la. Isto é que já não me cabe na cabeça. Posso admitir um descuido, uma ou outra contaminação acidental. Agora profissionais da morte que andam com as mãos sujas de polónio-210 a espalhá-lo por toda a parte, aviões, hotéis, restaurantes, isto é que não. Há uma coisa clássica nestas histórias, o baralhar pistas.
Desculpem o pretensiosismo da lição de física, mas creio que é dever de cada um contribuir com alguma base técnica para o raciocínio dos leigos.
Registe-se ainda uma nota importante. Polónio-210 não se vende na drogaria. Não sei quem o pode adquirir, se a corte de Putin, se o ex-KGB (parece que é a mesma coisa), se a máfia russa. Uma coisa sei, sinto-me pouco seguro. No entanto, continuo a não trocar a liberdade pela segurança. Não será esta a grande questão dos nossos tempos de hoje?
13 dezembro, 2006
Gente típica (VI)
Pessoas que eu gostava que fossem típicas
Este texto não se encaixa bem nesta série de personagens típicas, mas porque não? São os protagonistas de uma ocasião muito triste, o funeral da minha mãe, pessoas a quem devo gratidão até ao suspiro final. E tenho optimismo em que também são personagens típicas, no melhor sentido.
Já não sei porquê, a missa ficou a cargo do Pe. João, italiano já muito aportuguesado. Como capelão do Hospital de S. Maria, lembrava-se muito bem da "minha velhota", ocasionalmente lá internada, profundamente religiosa, mas progressista, aos 89, toda ela participante em movimentos de modernização religiosa e de acção social. Antes da missa, lembrei-me do prazer dos meus pais, na missa das suas bodas de ouro, ao ouvirem a epístola lida por este seu filho mais velho, mesmo que não crente. Perguntei ao Pe João se podia fazer a leitura, dizendo-lhe honestamente que não era católico. Nenhuma objecção e até me deu a escolha do texto. Como não podia deixar de ser, escolhi um trecho do Livro da Sabedoria (não estranhem a escolha fácil, conheço bem a Bíblia, como um dos enormes monumentos da cultura humana. Homo sum!).
Nos funerais, é vulgar um elogio. Lembrei-me da Irmã Amparo, muito amiga da minha mãe, uma freira directora do centro social em que tão boas tardes de cavaqueira tinha tido a minha mãe com as suas amigas. À margem da liturgia da missa, o Pe. João concordou sem rebuço. Mais bonito foi o que se passou quando o padre se preparava para retomar a missa e foi interrompido. Primeiro uma amiga anónima a avançar e a dar um testemunho sentido, entre lágrimas (e eu também entre lágrimas, como ainda agora), depois outra e outra, julguei que nunca mais acabava a missa. Como último dessa série de testemunhos epontâneos, entre alguma vergonha e uma grande impulsão, não posso esquecer o da D. Teresa, apoio infatigável da minha mãe nos seus tempos finais de diminuída física, felizmente que nunca intelectualmente.
Na altura, por respeito para com os hábitos das igrejas, não fiz o que me apetecia, bater palmas, a todos, Pe. João, Irmã Amparo, amigas que eu não conhecia, D. Teresa, e, obviamente, à minha mãe, afinal a grande responsável por cena tão bonita em ocasião triste. Ficarei para sempre com pena de não ter tido esse atrevimento. Creio que as palmas se teriam ouvido por toda Algés e alguém teria acompanhado com foguetes, os foguetes das festas do Espírito Santo, foguetes com que a minha mãe gostaria de se ter ido, em festa, como sempre foi festa toda a sua vida.
E, se ela conhecesse o Chico, ao chegar sei lá onde, sorrir-me-ia e diria "a festa foi bonita, pá!"
Este texto não se encaixa bem nesta série de personagens típicas, mas porque não? São os protagonistas de uma ocasião muito triste, o funeral da minha mãe, pessoas a quem devo gratidão até ao suspiro final. E tenho optimismo em que também são personagens típicas, no melhor sentido.
Já não sei porquê, a missa ficou a cargo do Pe. João, italiano já muito aportuguesado. Como capelão do Hospital de S. Maria, lembrava-se muito bem da "minha velhota", ocasionalmente lá internada, profundamente religiosa, mas progressista, aos 89, toda ela participante em movimentos de modernização religiosa e de acção social. Antes da missa, lembrei-me do prazer dos meus pais, na missa das suas bodas de ouro, ao ouvirem a epístola lida por este seu filho mais velho, mesmo que não crente. Perguntei ao Pe João se podia fazer a leitura, dizendo-lhe honestamente que não era católico. Nenhuma objecção e até me deu a escolha do texto. Como não podia deixar de ser, escolhi um trecho do Livro da Sabedoria (não estranhem a escolha fácil, conheço bem a Bíblia, como um dos enormes monumentos da cultura humana. Homo sum!).
Nos funerais, é vulgar um elogio. Lembrei-me da Irmã Amparo, muito amiga da minha mãe, uma freira directora do centro social em que tão boas tardes de cavaqueira tinha tido a minha mãe com as suas amigas. À margem da liturgia da missa, o Pe. João concordou sem rebuço. Mais bonito foi o que se passou quando o padre se preparava para retomar a missa e foi interrompido. Primeiro uma amiga anónima a avançar e a dar um testemunho sentido, entre lágrimas (e eu também entre lágrimas, como ainda agora), depois outra e outra, julguei que nunca mais acabava a missa. Como último dessa série de testemunhos epontâneos, entre alguma vergonha e uma grande impulsão, não posso esquecer o da D. Teresa, apoio infatigável da minha mãe nos seus tempos finais de diminuída física, felizmente que nunca intelectualmente.
Na altura, por respeito para com os hábitos das igrejas, não fiz o que me apetecia, bater palmas, a todos, Pe. João, Irmã Amparo, amigas que eu não conhecia, D. Teresa, e, obviamente, à minha mãe, afinal a grande responsável por cena tão bonita em ocasião triste. Ficarei para sempre com pena de não ter tido esse atrevimento. Creio que as palmas se teriam ouvido por toda Algés e alguém teria acompanhado com foguetes, os foguetes das festas do Espírito Santo, foguetes com que a minha mãe gostaria de se ter ido, em festa, como sempre foi festa toda a sua vida.
E, se ela conhecesse o Chico, ao chegar sei lá onde, sorrir-me-ia e diria "a festa foi bonita, pá!"
12 dezembro, 2006
Despedida em beleza
Kofi Annan, a despedir-se de secretário geral da ONU, publica hoje um artigo, certamente que em muitos jornais, também no Público. Não é meu princípio violar os direitos das publicações, mas há casos que se justificam.
Cinco liçõesRepito o que escrevi algures. Nas últimas décadas, África deu ao mundo dois grandes SENHORES, Nelson Mandela e Kofi Annan. Não vejo, ao mesmo tempo, muitos europeus ou americanos que se lhes possam comparar.
Há quase 50 anos, quando cheguei ao Minnesotta, como um estudante recém-desembarcado de África, tinha muito que aprender, a começar pelo facto de não haver nada de esquisito em usar protectores de orelhas, quando a temperatura descia para 15 graus negativos. Desde então, toda a minha vida foi consagrada a aprender. Agora, gostaria de transmitir as cinco lições que aprendi durante dez anos, como secretário-geral da ONU - lições que, na minha opinião, a comunidade das nações também precisa de aprender, no momento em que tem de enfrentar os desafios do século XXI.
A primeira lição é que, no mundo de hoje, todos somos responsáveis pela nossa segurança recíproca. Perante ameaças como a proliferação nuclear, as alterações climáticas, as pandemias mundiais ou os grupos terroristas que operam a partir de refúgios seguros em Estados falhados, nenhuma nação pode garantir a sua própria segurança afirmando a sua supremacia sobre todas as outras. Só trabalhando em prol da segurança de todos podemos esperar garantir uma segurança duradoura para nós próprios.
Essa responsabilidade inclui a responsabilidade partilhada de proteger as pessoas do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e dos crimes contra a humanidade. Uma responsabilidade que foi aceite por todas as nações, na cimeira da ONU do ano passado. Mas, quando vemos os assassínios, as violações e a fome que são infligidos ao povo do Darfur, compreendemos que essas doutrinas não passam de mera retórica, enquanto aqueles que têm poder para intervir eficazmente - exercendo pressão política, económica ou, em último recurso, militar - não estiverem dispostos a dar o exemplo. Também têm uma responsabilidade para com as gerações futuras - a de conservar recursos que lhes pertencem tanto como a nós. Cada dia em que nada fazemos ou não fazemos o suficiente para prevenir as alterações climáticas tem custos elevados para os nossos filhos.
A segunda lição é que somos responsáveis pelo bem-estar de todos. Sem solidariedade, nenhuma sociedade pode ser verdadeiramente estável. Não é realista pensar que uns quantos podem continuar a retirar grandes benefícios da globalização, enquanto milhares de milhões de outros permanecem ou são atirados para uma pobreza abjecta. Devemos dar a todos os nossos semelhantes pelo menos a possibilidade de partilharem a nossa prosperidade.
A terceira lição é que a segurança e a prosperidade dependem do respeito pelos direitos humanos e o Estado de direito. Ao longo da história, a diversidade enriqueceu a vida humana e as diferentes comunidades aprenderam umas com as outras. Mas, se quisermos que as nossas comunidades vivam em paz, devemos salientar também o que nos une: a nossa humanidade comum e a necessidade de a nossa dignidade humana e direitos serem protegidos pela lei.
Isso também é vital para o desenvolvimento. Tanto os estrangeiros como os cidadãos de um país tendem a investir mais, quando os seus direitos fundamentais são protegidos e quando sabem que serão tratados equitativamente pela lei. E as políticas que favorecem verdadeiramente o desenvolvimento têm mais hipóteses de ser adoptadas, se as pessoas que mais necessitam do desenvolvimento puderem fazer ouvir as suas vozes.
Os Estados precisam também de cumprir as regras que regem as relações entre eles. Nenhuma comunidade, em parte alguma do mundo, sofre de excesso de Estado de direito, mas muitas sofrem de falta dele - e isto aplica-se também à comunidade internacional. É uma situação que devemos mudar.
A minha quarta lição é, pois, que os governos devem ser responsabilizados pelos seus actos, tanto na cena internacional como na nacional. Todos os Estados devem prestar contas àqueles que são afectados, de uma maneira decisiva, pelas suas acções. Na situação actual, é fácil obrigar os Estados pobres e fracos a prestar contas, pois precisam de ajuda externa. Mas só o povo dos Estados grandes e poderosos, cuja acção tem maior impacto sobre os outros, pode obrigá-los a fazê-lo. Isto confere ao povo e instituições dos Estados poderosos uma responsabilidade especial por ter em conta as opiniões e interesses mundiais. E hoje têm de tomar em consideração os actores não estatais. Os Estados já não podem - se é que alguma vez puderam - enfrentar sozinhos os desafios mundiais. Cada vez mais, precisam da ajuda de uma miríade de associações em que as pessoas se juntam voluntariamente, para benefício próprio ou para reflectir em conjunto sobre a situação do mundo e para o mudar.
Como é que os Estados se podem responsabilizar uns perante os outros? Só por intermédio de instituições multilaterais. Assim, a minha quinta e última lição é que estas instituições devem ser organizadas de uma maneira justa e democrática, permitindo que os pobres e os fracos tenham alguma influência sobre a acção dos ricos e dos fortes.
Os países em desenvolvimento deveriam ter mais influência nas instituições financeiras internacionais, cujas decisões podem significar a vida ou a morte para os seus cidadãos. E haveria que incluir novos membros permanentes ou a longo prazo no Conselho de Segurança, cuja composição reflecte a realidade de 1945 e não a do mundo actual. E, o que não é menos importante, os membros do Conselho de Segurança devem aceitar a responsabilidade que acompanha o privilégio de o integrarem. O Conselho não é um palco para expressar interesses nacionais. É o comité de gestão do nosso frágil sistema de segurança mundial.
Mais do que nunca, a humanidade precisa de um sistema mundial que funcione. E a experiência tem demonstrado, repetidamente, que o sistema é pouco eficaz, quando os Estados-membros estão divididos e carecem de liderança, mas funciona muito melhor, quando há unidade, uma liderança clarividente e a participação de todos os actores. Sobre os dirigentes do mundo, os de hoje e os de amanhã, recai uma grande responsabilidade. Compete aos povos do planeta assegurar que se mostrem à altura dessa responsabilidade.
11 dezembro, 2006
Unamuno e "viva la muerte"
A propósito da minha entrada anterior, sobre a "morte amada" de alguns perversos, lembrei-me do célebre último discurso de Unamuno (ficou depois em prisão domiciliária até à morte), quando, como reitor da Universidade de Salamanca, respondeu de improviso a uma diatribe inflamada do general fascista Millán Astray, terminada com "Viva la muerte!". Vale a pena recordar. Valho-me da transcrição em "A guerra civil de Espanha", de Hugh Thomas (um clássico imprescindível).
"Todos vós estais suspensos das minhas palavras, todos vós me conheceis e sabeis que sou incapaz de me calar. Em certas ocasiões, calar é mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. (...) Agora mesmo ouvi um grito necrófilo e insensato, "viva la muerte". E eu, que passei a vida a compor paradoxos que despertaram a cólera dos que não os compreendiam, devo dizer-lhes, como entendido, que este paradoxo, vindo de fora, me repugna. O general Millán Astray é um aleijado. Digamo-lo sem a menor amenidade. É um inválido de guerra. Tal como Cervantes. Infelizmente, neste momento, há demasiados aleijados em Espanha. E em breve ainda haverá mais se Deus não se apiedar de nós. Penaliza-me que seja um homem como o general Millán Astray a ditar os padrões da psicologia das massas. Um aleijado a quem falta a grandeza espiritual de Cervantes procura uma odiosa consolação para o seu mal provocando mutilações à sua volta".Após novo grito idêntico e ainda mais furioso do general, Unamuno concluiu:
"Este é o templo do intelecto e eu sou o seu sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os seus paços sagrados. Vencereis porque possuís força bruta mais do que suficiente. Mas não convencereis porque para convencer é preciso persuadir. E, para persuadir, seria necessário possuirdes aquilo de que careceis: razão e direito na luta".Não devia acrescentar mais nada a tão sublime gesto de coragem, mas há uma nota importante. Ao contrário de muitos outros grandes intelectuais espanhóis, Marañon, Pérez de Ayala, Machado, Menéndez Pidal, Ortega y Gasset, Severo Ochoa, Picasso, muitos outros, Unamuno manteve-se discreto durante parte da guerra civil, se é que não teve mesmo uma atitude simpática para com os que "lutam pela civilização contra a tirania" (Unamuno, sic), isto é, os franquistas que dominavam a sua Salamanca. Mas este episódio mostra que há alturas em que abrasa a chama da grandeza e da excelência intelectual e moral. E da coragem, coisa hoje tão esquecida, numa sociedade mesquinha toda feita de pequenos compromissos de enviesamento moral.
A morte amada
Ouvi hoje na rádio - lamento não me lembrar dito por quem - que Pinochet se tinha ido com a sua amada morte. É verdade, há quem tenha grande amor pela morte... dos outros. O mundo ficou mais leve, como fica sempre que morre um tirano ou um criminoso, mas com a mágoa da justiça por cumprir.
10 dezembro, 2006
Falta de originalidade
Há uma velha anedota que diz que, em muitos escritos, o que é bom não é original e o que é original não é bom. Há outros em que nem sequer há original, mesmo que mau. Um bom exemplo é o artigo de João Carlos Espada (JCE), no último Expresso, "O futuro da universidade", sobre o que já escrevi como Oxford em polvorosa.
JCE defende-se, referindo que, sobre este assunto, Timothy Garton Ash (TGA) publicou um artigo no Guardian. Também é certo que, muito brevemente, refere a opinião de TGA. No entanto, não diz que o resto do seu artigo (de JCE) vai ser apenas o desenvolvimento da opinião de TGA. O leitor não se lembrará de duvidar de que o restante texto de JCE não são as suas próprias ideias, as suas próprias informações.
Não são. A redacção é de JCE, mas não há uma ideia, uma informação ou um dado numérico que não venha no artigo de TGA. Não há mal nenhum em que JCE concorde com TGA (duvido de que concorde sempre) mas não pode dar a impressão de que foi o primeiro a ter a ideia. Arrogantemente (coisa bem portuguesa-intelectual), JCE esqueceu-se de que não é o único leitor português do Guardian. Deixo bem claro que não estou a acusar JCE de plágio, mas não tenho dúvida em afirmar que a sua lisura de rigor intelectual deixa muito a desejar. Assim, não é difícil escrever uma coluna semanal no Expresso.
JCE defende-se, referindo que, sobre este assunto, Timothy Garton Ash (TGA) publicou um artigo no Guardian. Também é certo que, muito brevemente, refere a opinião de TGA. No entanto, não diz que o resto do seu artigo (de JCE) vai ser apenas o desenvolvimento da opinião de TGA. O leitor não se lembrará de duvidar de que o restante texto de JCE não são as suas próprias ideias, as suas próprias informações.
Não são. A redacção é de JCE, mas não há uma ideia, uma informação ou um dado numérico que não venha no artigo de TGA. Não há mal nenhum em que JCE concorde com TGA (duvido de que concorde sempre) mas não pode dar a impressão de que foi o primeiro a ter a ideia. Arrogantemente (coisa bem portuguesa-intelectual), JCE esqueceu-se de que não é o único leitor português do Guardian. Deixo bem claro que não estou a acusar JCE de plágio, mas não tenho dúvida em afirmar que a sua lisura de rigor intelectual deixa muito a desejar. Assim, não é difícil escrever uma coluna semanal no Expresso.
09 dezembro, 2006
Separatismo
Sempre que há um conflito entre o inefável Aberto João Jardim (AJJ) e as autoridades da República, lá vem o separatismo, por interpostos lacaios. Nos Açores, é história arrumada e há um certo pudor em se falar disso. Na Madeira, é claro que é simples folclore o discurso habitual do factotum Jaime Ramos. E folclore até pode não ser muito mau, como no carnaval do Funchal, mesmo que com a participação histriónica de AJJ. Vou mais longe, até o admito a nível partidário, no célebre discurso anual depois de uma manhã de provas de poncha e canudinhos em cerca de cinquenta tascas. O que já não admito é a ridicularização das instituições do Estado.
Dito isto, é bom lembrarmo-nos de que não há qualquer ameaça separatista nos dois arquipélagos. No caso da Madeira, é pura chantagem política. Independência para quê? Para países inviáveis, em vez do conforto da solidariedade continental com os custos da insularidade? AJJ pode ser tudo menos estúpido, embora nem sempre se preocupe com realçar essa ideia de si próprio.
Curiosamente, onde o separatismo teve alguma importância (já explico o termo) foi nos Açores, como bem o demonstram as declarações de Carlucci, na sua visita recente a Portugal. A Madeira, foi fenómeno local, tirando algumas coisas surrealistas como uns eventuais contactos com a Líbia. Nos Açores, o separatismo foi um instrumento da estratégia americana, ao mais alto nível. Não é por acaso, embora descarado, que um dos maiores activistas fosse um funcionário açoriano do consulado americano ou que um recrutador notório passasse, publicamente e sem preocupações de desmentido, por agente da CIA. Quando me referi à importância da FLA não era à sua expressão real, mas sim ao seu papel instrumental como ameaça dos EUA em relação ao curso revolucionário no continente. Creio que isto está mais do que demonstrado, em muita documentação (é pena é não conhecermos as actas do encontro entre Spínola e Nixon). Note-se que, com o 25 de Novembro, se esfumou o separatismo açoriano.
Dito tudo isto, ponhamos a questão às avessas. De certa forma, o que seria natural é que houvesse separatismo e muito mais forte. Os arquipélagos merecem estudo em termos do seu portuguesismo secular. A língua e as tradições são importantes, mas quantos países hoje independentes não tiveram isso em conta? Gerações sucessivas de ilhéus, açorianos e madeirenses, nunca conheceram Portugal continental. Ainda me lembro, na minha meninice, de ser um luxo vir-se conhecer o continente, mas isto também era o sonho de muita gente. Ainda por cima, a pesada exploração senhorial (lembram-se do célebre encontro dos corvinos com Mouzinho da Silveira?) podia ser facilmente identificada com "colonialismo". Pelo menos em S. Miguel, o grande senhor, Vila Franca ou Ribeira Grande, sempre viveu na corte, desde o tempo de D. João IV (fora uma passagem pelos Estaus, pelo "nefando crime").
No entanto, falando agora só dos Açores, como exemplo, até houve tempos em que, de certa forma, Portugal – ou o seu melhor – só estava nos Açores: Prior do Crato e liberalismo. Depois, o movimento autonomista dos finais do século XIX até foi bem modesto, defendia apenas, como conseguiu, uma maior autonomia administrativa. Ninguém pensaria numa autonomia até legislativa, como a actual, generosamente conferida pelos constituintes.
Desafio os leitores, em conclusão, a reflectirem sobre esta coisa tão simples. Como é que umas centenas de milhares de pessoas, ao longo de séculos, isolados no meio do oceano, se mantiveram sempre portugueses? Isto leva-me a repetir uma afirmação de identidade pessoal que costumo fazer. Sou muito português porque sou muito açoriano, sou muito açoriano porque sou muito português.
Dito isto, é bom lembrarmo-nos de que não há qualquer ameaça separatista nos dois arquipélagos. No caso da Madeira, é pura chantagem política. Independência para quê? Para países inviáveis, em vez do conforto da solidariedade continental com os custos da insularidade? AJJ pode ser tudo menos estúpido, embora nem sempre se preocupe com realçar essa ideia de si próprio.
Curiosamente, onde o separatismo teve alguma importância (já explico o termo) foi nos Açores, como bem o demonstram as declarações de Carlucci, na sua visita recente a Portugal. A Madeira, foi fenómeno local, tirando algumas coisas surrealistas como uns eventuais contactos com a Líbia. Nos Açores, o separatismo foi um instrumento da estratégia americana, ao mais alto nível. Não é por acaso, embora descarado, que um dos maiores activistas fosse um funcionário açoriano do consulado americano ou que um recrutador notório passasse, publicamente e sem preocupações de desmentido, por agente da CIA. Quando me referi à importância da FLA não era à sua expressão real, mas sim ao seu papel instrumental como ameaça dos EUA em relação ao curso revolucionário no continente. Creio que isto está mais do que demonstrado, em muita documentação (é pena é não conhecermos as actas do encontro entre Spínola e Nixon). Note-se que, com o 25 de Novembro, se esfumou o separatismo açoriano.
Dito tudo isto, ponhamos a questão às avessas. De certa forma, o que seria natural é que houvesse separatismo e muito mais forte. Os arquipélagos merecem estudo em termos do seu portuguesismo secular. A língua e as tradições são importantes, mas quantos países hoje independentes não tiveram isso em conta? Gerações sucessivas de ilhéus, açorianos e madeirenses, nunca conheceram Portugal continental. Ainda me lembro, na minha meninice, de ser um luxo vir-se conhecer o continente, mas isto também era o sonho de muita gente. Ainda por cima, a pesada exploração senhorial (lembram-se do célebre encontro dos corvinos com Mouzinho da Silveira?) podia ser facilmente identificada com "colonialismo". Pelo menos em S. Miguel, o grande senhor, Vila Franca ou Ribeira Grande, sempre viveu na corte, desde o tempo de D. João IV (fora uma passagem pelos Estaus, pelo "nefando crime").
No entanto, falando agora só dos Açores, como exemplo, até houve tempos em que, de certa forma, Portugal – ou o seu melhor – só estava nos Açores: Prior do Crato e liberalismo. Depois, o movimento autonomista dos finais do século XIX até foi bem modesto, defendia apenas, como conseguiu, uma maior autonomia administrativa. Ninguém pensaria numa autonomia até legislativa, como a actual, generosamente conferida pelos constituintes.
Desafio os leitores, em conclusão, a reflectirem sobre esta coisa tão simples. Como é que umas centenas de milhares de pessoas, ao longo de séculos, isolados no meio do oceano, se mantiveram sempre portugueses? Isto leva-me a repetir uma afirmação de identidade pessoal que costumo fazer. Sou muito português porque sou muito açoriano, sou muito açoriano porque sou muito português.
06 dezembro, 2006
Gente típica (V)
As putas da R. do Beco
[Declaração de interesses: nunca fui às putas, tudo o que se segue é de ouvir dizer. Entenda-se também que puta é palavra amigável. Adivinho que muitas preferem ser chamadas de putas, em vez de prostitutas, nome arrevesado. Pior ainda é trabalhadoras do sexo, coisa que só lembra aos fanáticos do politicamente correcto. Ah, o nome da rosa! Provavelmente elas não devem concordar é com o uso do vernáculo filho da puta, bem assentado a muito filho de senhora bem. Os delas são, muitas vezes, educados com todos os esmeros.]
Isto vem na sequência da crónica anterior, acerca do Zé das camionetas. Quando o Zé ficou crescido e se virou para o negócio das apostas, os proventos iam em boa parte, como escrevi, para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
A R. do Beco era o horror das mães de família, rua da perdição, agora trajecto obrigatório para quem vem para o centro da cidade. Hoje, chama-se R. de S. Francisco Xavier. Coisa aparentemente irónica, mas se calhar não. Quantas putas indianas terá o santo acolhido ao cristianismo?
Pior ainda era o Éden, palco de decrépitas bailarinas espanholas, não sei se com quartos nas traseiras. Sussurrava-se nos serões de família, coisa deliciosa mas também a maior alimentadora da intriga: "fulano até é muito amigo da mulher e dá-lhe tudo para a casa, mas vai ao Éden". Frustração de micaelense que quer ter toda a vivência da sua terra, não conheço o Éden, que talvez já nem exista. Mas consta-me que ainda há descendência local de espanholas do Éden. Bom sinal, os açorianos são capazes de amores desbragados e de fazerem famílias bem pouco convencionais. Só assim se explica que tenham desaparecido os sinais fisionómicos dos milhares de escravos negros levados para a ilha.
Na R. do Beco, embora sem alardes, casinha baixa igual às outras, pontificava a Emília, empresária de todo o comércio da rua e distribuidora das putas por todas as casas, numa hierarquia que despachava rapariga fresca e bonita para o nº 7, velha degradada e pustulenta para o infecto nº 31. No meio, matriarcal, o nº 19 da Emília, todo alinhado, veludos e damascos, quartos pequenos todos demolidos para grande salão de dança e recepção, com um piano decrépito em que tocava um chulo, o Alfredo da Aninhas, também ela só memória viva de tempos de putice reles, que em Ponta Delgada não podia haver mais do que isto.
(Não sei porque é que me deu para escrever todos os endereços como números ímpares, à esquerda. Não tirem conclusões precipitadas. Coitadas, elas até são frequentemente, no seu sofrimento, muito religiosas e fatalistas, nada coisa de esquerda.)
Parece que também havia uma bebida excelente, mistura a meio por meio de cachaça e de vinho abafado. Outra especialidade, que vim a redescobrir há tempos no meu café de Sassoeiros, a pedido ao balcão de uma velha alcoólica envergonhada (puta reformada?), era um martini completado com cerveja. Gostos estranhos de bêbedos. Não sei por mim, tudo isto são conversas antigas do meu colega Chico, dançarino famoso dessas putices antigas, todo nu, esfregando-se em corpos de higiene duvidosa, mas com outros esmeros de limpeza, nunca dispensando as peúgas, porque o chão estava todo encardido. Gente fina!
[Declaração de interesses: nunca fui às putas, tudo o que se segue é de ouvir dizer. Entenda-se também que puta é palavra amigável. Adivinho que muitas preferem ser chamadas de putas, em vez de prostitutas, nome arrevesado. Pior ainda é trabalhadoras do sexo, coisa que só lembra aos fanáticos do politicamente correcto. Ah, o nome da rosa! Provavelmente elas não devem concordar é com o uso do vernáculo filho da puta, bem assentado a muito filho de senhora bem. Os delas são, muitas vezes, educados com todos os esmeros.]
Isto vem na sequência da crónica anterior, acerca do Zé das camionetas. Quando o Zé ficou crescido e se virou para o negócio das apostas, os proventos iam em boa parte, como escrevi, para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
A R. do Beco era o horror das mães de família, rua da perdição, agora trajecto obrigatório para quem vem para o centro da cidade. Hoje, chama-se R. de S. Francisco Xavier. Coisa aparentemente irónica, mas se calhar não. Quantas putas indianas terá o santo acolhido ao cristianismo?
Pior ainda era o Éden, palco de decrépitas bailarinas espanholas, não sei se com quartos nas traseiras. Sussurrava-se nos serões de família, coisa deliciosa mas também a maior alimentadora da intriga: "fulano até é muito amigo da mulher e dá-lhe tudo para a casa, mas vai ao Éden". Frustração de micaelense que quer ter toda a vivência da sua terra, não conheço o Éden, que talvez já nem exista. Mas consta-me que ainda há descendência local de espanholas do Éden. Bom sinal, os açorianos são capazes de amores desbragados e de fazerem famílias bem pouco convencionais. Só assim se explica que tenham desaparecido os sinais fisionómicos dos milhares de escravos negros levados para a ilha.
Na R. do Beco, embora sem alardes, casinha baixa igual às outras, pontificava a Emília, empresária de todo o comércio da rua e distribuidora das putas por todas as casas, numa hierarquia que despachava rapariga fresca e bonita para o nº 7, velha degradada e pustulenta para o infecto nº 31. No meio, matriarcal, o nº 19 da Emília, todo alinhado, veludos e damascos, quartos pequenos todos demolidos para grande salão de dança e recepção, com um piano decrépito em que tocava um chulo, o Alfredo da Aninhas, também ela só memória viva de tempos de putice reles, que em Ponta Delgada não podia haver mais do que isto.
(Não sei porque é que me deu para escrever todos os endereços como números ímpares, à esquerda. Não tirem conclusões precipitadas. Coitadas, elas até são frequentemente, no seu sofrimento, muito religiosas e fatalistas, nada coisa de esquerda.)
Parece que também havia uma bebida excelente, mistura a meio por meio de cachaça e de vinho abafado. Outra especialidade, que vim a redescobrir há tempos no meu café de Sassoeiros, a pedido ao balcão de uma velha alcoólica envergonhada (puta reformada?), era um martini completado com cerveja. Gostos estranhos de bêbedos. Não sei por mim, tudo isto são conversas antigas do meu colega Chico, dançarino famoso dessas putices antigas, todo nu, esfregando-se em corpos de higiene duvidosa, mas com outros esmeros de limpeza, nunca dispensando as peúgas, porque o chão estava todo encardido. Gente fina!
05 dezembro, 2006
Nota breve
O arcebispo de Santiago do Chile, um cardeal, visitou Pinochet no hospital. Não há dúvida de que foi um gesto sensato, para uma igreja que certamente quer fazer esquecer o seu papel de abençoadora da ditadura. Se Salazar ainda fosse vivo e estivesse internado como Pinochet, não estou a ver D. José Policarpo a ir visitá-lo.
04 dezembro, 2006
Subtilezas semânticas
Já há anos que deixámos de ter cegos em Portugal. Passámos foi a ter invisuais. Ouvi hoje que, segundo a terminologia governamental, deixámos de ter deficientes, passámos a ter pessoas com deficiência. Que bom seria este país se a vida obedecesse às palavras... Era só inventar novos termos para desempregados, pobres, excluídos, tanta coisa mais. Infelizmente, a linguagem politicamente correcta não muda nada a realidade.
Já agora, não concordo com o termo "portugueses". Prefiro "europeus de residência periférica ocidental".
Já agora, não concordo com o termo "portugueses". Prefiro "europeus de residência periférica ocidental".
03 dezembro, 2006
Sobre uma proposta de António Barreto
Escreve hoje António Barreto, no Público:
Já o seu segundo parágrafo me parece pecar por alguma arrogância universitária. A educação básica e secundária é muito diferente da superior, dirige-se a crianças e jovens em fase de construção da aprendizagem geral, tem condicionantes pedagógicas de natureza etária muito específicas. Se me pedissem para participar nesse trabalho proposto por António Barreto, responderia honestamente que não sou capaz.
Os departamentos universitários científicos não dispõem de pessoas com esta formação pedagógica. Em contrapartida, aos de ciências da educação falta a componente científica disciplinar. Concordando com António Barreto na sua preocupação de uma eficaz monitorização, sugeria outras entidades que, muitas vezes, conjugam ambas as competências: as sociedades científicas, nomeadamente aquelas que não se restringem a investigadores científicos. Ainda por cima, em muitos casos, têm dado contributo público à critica dos desmandos programáticos.
"Cada disciplina do básico e secundário deveria ser "monitorizada" por uma instituição universitária, devidamente contratada pelo ministério para esse efeito, com um termo de responsabilidade de cinco a dez anos (renováveis), a fim de poder assegurar estabilidade e capacidade para reformar tranquilamente e corrigir erros. A escolha da instituição (faculdade, instituto, centro, departamento) deveria ser feita após anúncio e concurso públicos. Os candidatos seriam instituições, não indivíduos, mesmo sabendo que é importante que uma instituição tenha um dirigente competente e prestigiado. Uma faculdade de ciências, por exemplo, teria a responsabilidade de acompanhar a disciplina de Física ao longo dos 12 anos de escolaridade. Um instituto ocupar-se-ia de todo o ensino da Matemática do 1.º ao 12.º ano.A ideia é certamente muito bem intencionada e, à primeira vista, não parece absurda. No entanto, tenho fortes dúvidas, como investigador e professor universitário. Que se corrigiriam erros científicos frequentes, que se estabeleceria uma distinção acertada entre o essencial do corpo de conhecimentos e a informação perecível, que se proporiam adequadas aproximações à experimentação, concordo.
Entre os termos de referência, teríamos, por exemplo, a determinação da extensão dos programas, a avaliação dos manuais, a definição do grau de complexidade em cada ano de escolaridade, a progressão disciplinar ao longo do percurso do aluno e eventualmente a elaboração de provas nacionais. Competiria também a essa instituição notar os resultados das avaliações internas e dos exames, advertir escolas, analisar o êxito e o insucesso, fazer recomendações para a formação de professores, elaborar normas e regras pedagógicas. Tudo no quadro de uma disciplina e não no âmbito de ambiciosas e inúteis reformas globais e integradas do sistema. "
Já o seu segundo parágrafo me parece pecar por alguma arrogância universitária. A educação básica e secundária é muito diferente da superior, dirige-se a crianças e jovens em fase de construção da aprendizagem geral, tem condicionantes pedagógicas de natureza etária muito específicas. Se me pedissem para participar nesse trabalho proposto por António Barreto, responderia honestamente que não sou capaz.
Os departamentos universitários científicos não dispõem de pessoas com esta formação pedagógica. Em contrapartida, aos de ciências da educação falta a componente científica disciplinar. Concordando com António Barreto na sua preocupação de uma eficaz monitorização, sugeria outras entidades que, muitas vezes, conjugam ambas as competências: as sociedades científicas, nomeadamente aquelas que não se restringem a investigadores científicos. Ainda por cima, em muitos casos, têm dado contributo público à critica dos desmandos programáticos.
02 dezembro, 2006
Em época de crise
Entre o sério e a brincadeira, a contenção não podia começar pela dimensão do governo? Ainda hoje (dia desta escrita) vi a reportagem da cimeira luso-espanhola, e lá estava a ministra espanhola da Educação e da Ciência. Ao lado, o ministro português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Isto é pecha portuguesa, não há sector corporativo que não se queira ver representado a nível de ministério. E mesmo ministérios pequeninos, como esse ou o da cultura, não dispensam um secretário de Estado. Não será apenas, como uma vez disse Cavaco, com infelicidade (?), ajudante do ministro? Até há casos bizarros e crípticos, por exemplo, Secretário de Estado da Saúde
e Secretária de Estado Adjunta e da Saúde. Porque não um Secretário de Estado Ajunto da Secretária de Estado Adjunta?
Não podia deixar de falar do meu sector de estimação, a educação. Temos dois ministérios, a Espanha só tem um, a Inglaterra também (associando a formação profissional), a Holanda tem um ministério da educação, cultura e ciência, muitos outros exemplos.
Aqui vai o que seria um governo à nossa medida, respeitando os ministérios tradicionais e com simbolismo da soberania, seguidos das suas áreas de influência, eventualmente secretarias de Estado.
• Presidência > Assuntos parlamentares
• Defesa
• Negócios estrangeiros
• Justiça
• Administração interna > Autarquias / Segurança / Função pública
• Finanças > Tesouro / Orçamento
• Economia > Indústria / Comércio / Agricultura e pescas / Turismo / Inovação e tecnologia
• Educação e cultura > Educação básica e secundária / Educação superior / Ciência / Cultura
• Saúde
• Assuntos sociais > Trabalho / Segurança social / Formação profissional
• Equipamento > Obras públicas / Transportes / Comunicações
Tenho dúvidas quanto ao Ordenamento e ambiente. É difícil meter este sector juntamente com outros que representam os maiores predadores (autarquias, indústria, agricultura, etc.).
Em conclusão, um governo de pequeno pais, 11 ministros e 21 secretários de Estado. Hoje temos 16 ministros e 30 secretários de Estado. Em chefes de gabinete, adjuntos, assessores, secretárias, motoristas, cartões de crédito, despesas de representação, faz alguma diferença. Não é altura de, na sua luta contra os privilégios, Sócrates falar nos privilégios do governo?
Mais sério é que isto traduz uma lógica de governação. Em muitos países, o governante tem a seu cargo apenas a orientação e decisão política final. O seu staff até pode não ter funções governamentais. Desconfio, por muito que conheço da administração pública, que entre nós há uma cadeia de despromoção. De facto, os ministros, despachando trivialidades, são secretários de Estado, estes são directores-gerais e os directores-gerais são chefes de repartição. Em que é que ocupam o dia a Ministra da Cultura e o seu Secretário de Estado? Gostava de saber. Para que precisa Mariano Gago de um Secretário de Estado?
Não podia deixar de falar do meu sector de estimação, a educação. Temos dois ministérios, a Espanha só tem um, a Inglaterra também (associando a formação profissional), a Holanda tem um ministério da educação, cultura e ciência, muitos outros exemplos.
Aqui vai o que seria um governo à nossa medida, respeitando os ministérios tradicionais e com simbolismo da soberania, seguidos das suas áreas de influência, eventualmente secretarias de Estado.
• Presidência > Assuntos parlamentares
• Defesa
• Negócios estrangeiros
• Justiça
• Administração interna > Autarquias / Segurança / Função pública
• Finanças > Tesouro / Orçamento
• Economia > Indústria / Comércio / Agricultura e pescas / Turismo / Inovação e tecnologia
• Educação e cultura > Educação básica e secundária / Educação superior / Ciência / Cultura
• Saúde
• Assuntos sociais > Trabalho / Segurança social / Formação profissional
• Equipamento > Obras públicas / Transportes / Comunicações
Tenho dúvidas quanto ao Ordenamento e ambiente. É difícil meter este sector juntamente com outros que representam os maiores predadores (autarquias, indústria, agricultura, etc.).
Em conclusão, um governo de pequeno pais, 11 ministros e 21 secretários de Estado. Hoje temos 16 ministros e 30 secretários de Estado. Em chefes de gabinete, adjuntos, assessores, secretárias, motoristas, cartões de crédito, despesas de representação, faz alguma diferença. Não é altura de, na sua luta contra os privilégios, Sócrates falar nos privilégios do governo?
Mais sério é que isto traduz uma lógica de governação. Em muitos países, o governante tem a seu cargo apenas a orientação e decisão política final. O seu staff até pode não ter funções governamentais. Desconfio, por muito que conheço da administração pública, que entre nós há uma cadeia de despromoção. De facto, os ministros, despachando trivialidades, são secretários de Estado, estes são directores-gerais e os directores-gerais são chefes de repartição. Em que é que ocupam o dia a Ministra da Cultura e o seu Secretário de Estado? Gostava de saber. Para que precisa Mariano Gago de um Secretário de Estado?
01 dezembro, 2006
Uma opinião sobre o aborto
Todos os utilizadores de Mac conhecem a imprescindível "mailing list" do Pedro Aniceto, o "Correio dos Outros". Extravasa frequentemente para coisas que não têm a ver com computadores. Ultimamente, tem sido o referendo sobre o aborto. Tenho-me dividido, entre respostas a coisa sérias e inibição de responder a alarvidades. Aqui vai uma mensagem de um anónimo (palpita-me que com boa formação jurídica). Não percebo bem o primeiro parágrafo, mas nada desmerece do conjunto. Este conjunto quase me dispensa de escrever mais sobre o meu voto pelo SIM. Segue-se a transcrição.
"Seja-me permitido fazer uma observação.
É verdadeiramente espantoso que alguém possa dizer-se Cristão e que, sob (prefiro-o ao “sobre”...) o ponto de vista religioso, “se está nas tintas para que as pessoas abortem ou não, assassinem, roubem, etc.”, por entender que “isso é um problema entre as pessoas que o fazem e o seu criador”! A enormidade da afirmação, que varre do mapa uma civilização baseada num código moral judaico-cristão e apaga de uma penada a Bíblia, os Evangelhos e tudo, mas rigorosamente tudo, quanto se escreveu sobre religião desde há já mais de vinte séculos, justifica amplamente que o seu autor aproveite o assombroso balanço e lance as fundações de uma nova religião.
Porém, impõe-se que renuncie a apelidá-la de Cristã, pois que jamais conseguirá justificar a sua teologia com um código moral em que matar, roubar, “etc.” sejam um assunto privado entre o indivíduo e o “seu” criador, ao revés de tudo quanto sobre a lição de Cristo – como testemunhada nos Evangelhos – se escreve há 2 mil anos.
A asneira é felizmente livre.
Mas é espantoso é que assuma estas dimensões épicas sem que quem se mete por esses espinhosos caminhos das relações entre Religião, Moral e Direito sem uma competente armadura conceitual se dê aparentemente conta do imenso ridículo que é não se limitar a dizer “eu ACREDITO que” isto e aquilo. Só neste País? Provavelmente não...
Mas, no fim de tudo, se é bem inócuo o que o Senhor Amorim traz como fundamento da sua posição, não deixa por isso de ser extremamente importante: o Senhor Amorim, que confessa não saber quando começa a vida, diz, preto no branco, que ACREDITA “sinceramente que comece antes das 10 semanas”. É aí que está o centro da questão: se fosse possível estabelecer como verdade científica (diversamente das outras “verdades”, para ser científica ela tem que ser susceptível de demonstração indutiva) que a vida humana (tal como a definimos) começa no preciso momento em que a fecundação ocorre, ninguém poderia discutir a ilicitude penal da interrupção do processo de gestação. Mas, embora aos cientistas chamados a pronunciar-se nessa questão não tenhamos sequer o direito de opor a sua fé pessoal – por definição não pode haver confusão de planos – tal afirmação não pôde até à data ser estabelecida com crédito científico. É linear – mas não por isso menos verdadeiro – que na falta dela o legislador tenha considerado a opção – bem mais razoável do que a apresentada pelos “fundamentalistas do não” - entre a consensualidade segura de um mínimo e o risco de, mesmo assim, se ferir a área intangível da vida. Tudo isto é muito menos espectacular do que alguns pensam, dividido entre exércitos que se embatem numa fragorosa colisão de branco e preto. Pois é, mas é muito menos simples, muito mais exigente da humana condição e da sua capacidade – propugnada pelo Cristianismo – de entender e de sentir compaixão pela condição humana.
De resto, aos feros proibicionistas, que tanto enchem a boca de um direito à vida mas que andam tão perto do direito de tirar a vida a quem já nasceu – como mostram a história e o direito comparado (ver os tais EUA, sempre trazidos para tudo como um paradigma que nem serve para a nossa cultura, vista a prevalência dos valores herdados da Reforma) na previsível coincidência entre o proibição do aborto e vigência da pena de morte – não ocorre nem por um momento equacionar a vontade conjectural do feto, ou seja, a que seria razoável supor emitida por quem, ainda por diferenciar e adquirir consciência – mesmo incipiente – de si mesmo (que é o que nos distingue dos irracionais), fosse colocado ante a opção de nascer sem ser sido voluntariamente concebido e de, com a probabilidade que as circunstâncias inculcassem, não ter uma razoável expectativa de apoio do conjunto dos seus progenitores para a vida extra-uterina.
Será agora a minha vez de dizer que ACREDITO que é aqui, na dignidade deste direito a ser concebido que conjecturalmente se pode projectar no nascituro, que radica a outra dimensão do direito à interrupção voluntária de um processo de gestação que apenas se consolida irrevogavelmente a partir de um dado momento.
Não é menos escrupuloso quanto à determinação desse momento quem se mostre sensível às questões sociais da maternidade – porque as relativas à paternidade estão quase invariavelmente no centro da dolorosa decisão de abortar – e se apoie na falta da evidência dessa vida humana para desobstruir o caminho da interrupção, em coerência com o apoio a uma maternidade responsável.
Por isso todos se devem respeito, a começar pelo da inteligência de cada qual. Mesmo assim, nunca será demais sublinhar que, se somos soberanos nas nossas escolhas legislativas – designadamente quanto à bárbara punição com pena de prisão da mulher que aborte, a mesma mulher que, sem sinais de maior consideração social, paga em dobro a sua condição de mãe, vendo-se preterida no emprego em função da maternidade, subjugada pela obstinação de supremacia masculina no âmbito do seu relacionamento social e familiar, vítima das violências de género que proliferam num tempo de igualitarismo consumista, e até descriminada do ponto de vista fiscal, ela cujo comportamento reprodutivo que é a chave da sobrevivência da sociedade!
Se o conjunto dos cidadãos deste país votar maioritariamente o não, impõe-se que a mesma Assembleia da República que se demitiu de legislar com o mandato que recebeu desses mesmos cidadãos tome a iniciativa de votar uma lei que puna com a mesma pena de prisão o homem que, tendo dado causa à gravidez interrompida, não tenha conseguido obviar ao aborto apesar dos esforços que razoavelmente são exigíveis de quem se permite ter relações sexuais com mulher fértil sem protecção apropriada. Trata-se apenas de dar corpo ao que a lei penal prevê como autoria e imputação a título e dolo eventual.
Basta de brincadeiras de mau gosto, meus senhores!
jlsc (???)"
"Seja-me permitido fazer uma observação.
É verdadeiramente espantoso que alguém possa dizer-se Cristão e que, sob (prefiro-o ao “sobre”...) o ponto de vista religioso, “se está nas tintas para que as pessoas abortem ou não, assassinem, roubem, etc.”, por entender que “isso é um problema entre as pessoas que o fazem e o seu criador”! A enormidade da afirmação, que varre do mapa uma civilização baseada num código moral judaico-cristão e apaga de uma penada a Bíblia, os Evangelhos e tudo, mas rigorosamente tudo, quanto se escreveu sobre religião desde há já mais de vinte séculos, justifica amplamente que o seu autor aproveite o assombroso balanço e lance as fundações de uma nova religião.
Porém, impõe-se que renuncie a apelidá-la de Cristã, pois que jamais conseguirá justificar a sua teologia com um código moral em que matar, roubar, “etc.” sejam um assunto privado entre o indivíduo e o “seu” criador, ao revés de tudo quanto sobre a lição de Cristo – como testemunhada nos Evangelhos – se escreve há 2 mil anos.
A asneira é felizmente livre.
Mas é espantoso é que assuma estas dimensões épicas sem que quem se mete por esses espinhosos caminhos das relações entre Religião, Moral e Direito sem uma competente armadura conceitual se dê aparentemente conta do imenso ridículo que é não se limitar a dizer “eu ACREDITO que” isto e aquilo. Só neste País? Provavelmente não...
Mas, no fim de tudo, se é bem inócuo o que o Senhor Amorim traz como fundamento da sua posição, não deixa por isso de ser extremamente importante: o Senhor Amorim, que confessa não saber quando começa a vida, diz, preto no branco, que ACREDITA “sinceramente que comece antes das 10 semanas”. É aí que está o centro da questão: se fosse possível estabelecer como verdade científica (diversamente das outras “verdades”, para ser científica ela tem que ser susceptível de demonstração indutiva) que a vida humana (tal como a definimos) começa no preciso momento em que a fecundação ocorre, ninguém poderia discutir a ilicitude penal da interrupção do processo de gestação. Mas, embora aos cientistas chamados a pronunciar-se nessa questão não tenhamos sequer o direito de opor a sua fé pessoal – por definição não pode haver confusão de planos – tal afirmação não pôde até à data ser estabelecida com crédito científico. É linear – mas não por isso menos verdadeiro – que na falta dela o legislador tenha considerado a opção – bem mais razoável do que a apresentada pelos “fundamentalistas do não” - entre a consensualidade segura de um mínimo e o risco de, mesmo assim, se ferir a área intangível da vida. Tudo isto é muito menos espectacular do que alguns pensam, dividido entre exércitos que se embatem numa fragorosa colisão de branco e preto. Pois é, mas é muito menos simples, muito mais exigente da humana condição e da sua capacidade – propugnada pelo Cristianismo – de entender e de sentir compaixão pela condição humana.
De resto, aos feros proibicionistas, que tanto enchem a boca de um direito à vida mas que andam tão perto do direito de tirar a vida a quem já nasceu – como mostram a história e o direito comparado (ver os tais EUA, sempre trazidos para tudo como um paradigma que nem serve para a nossa cultura, vista a prevalência dos valores herdados da Reforma) na previsível coincidência entre o proibição do aborto e vigência da pena de morte – não ocorre nem por um momento equacionar a vontade conjectural do feto, ou seja, a que seria razoável supor emitida por quem, ainda por diferenciar e adquirir consciência – mesmo incipiente – de si mesmo (que é o que nos distingue dos irracionais), fosse colocado ante a opção de nascer sem ser sido voluntariamente concebido e de, com a probabilidade que as circunstâncias inculcassem, não ter uma razoável expectativa de apoio do conjunto dos seus progenitores para a vida extra-uterina.
Será agora a minha vez de dizer que ACREDITO que é aqui, na dignidade deste direito a ser concebido que conjecturalmente se pode projectar no nascituro, que radica a outra dimensão do direito à interrupção voluntária de um processo de gestação que apenas se consolida irrevogavelmente a partir de um dado momento.
Não é menos escrupuloso quanto à determinação desse momento quem se mostre sensível às questões sociais da maternidade – porque as relativas à paternidade estão quase invariavelmente no centro da dolorosa decisão de abortar – e se apoie na falta da evidência dessa vida humana para desobstruir o caminho da interrupção, em coerência com o apoio a uma maternidade responsável.
Por isso todos se devem respeito, a começar pelo da inteligência de cada qual. Mesmo assim, nunca será demais sublinhar que, se somos soberanos nas nossas escolhas legislativas – designadamente quanto à bárbara punição com pena de prisão da mulher que aborte, a mesma mulher que, sem sinais de maior consideração social, paga em dobro a sua condição de mãe, vendo-se preterida no emprego em função da maternidade, subjugada pela obstinação de supremacia masculina no âmbito do seu relacionamento social e familiar, vítima das violências de género que proliferam num tempo de igualitarismo consumista, e até descriminada do ponto de vista fiscal, ela cujo comportamento reprodutivo que é a chave da sobrevivência da sociedade!
Se o conjunto dos cidadãos deste país votar maioritariamente o não, impõe-se que a mesma Assembleia da República que se demitiu de legislar com o mandato que recebeu desses mesmos cidadãos tome a iniciativa de votar uma lei que puna com a mesma pena de prisão o homem que, tendo dado causa à gravidez interrompida, não tenha conseguido obviar ao aborto apesar dos esforços que razoavelmente são exigíveis de quem se permite ter relações sexuais com mulher fértil sem protecção apropriada. Trata-se apenas de dar corpo ao que a lei penal prevê como autoria e imputação a título e dolo eventual.
Basta de brincadeiras de mau gosto, meus senhores!
jlsc (???)"
Duas notas, atrasadas
1. Há dias, Eduardo Prado Coelho escreveu no Público, sobre o próximo referendo, que "a questão consiste apenas numa decisão de tipo filosófico, quando começa a vida humana". Parece-me dupla tolice. Primeiro, porque, julgando eu que é EPC é pelo sim, está a colocar-se no terreno minado preferido dos adeptos do não. Segundo, porque isto não me parece que seja questão de filosofia. Começo por perguntar o que é hoje a filosofia, que me parece navegar em águas duplas. Por um lado, há matérias essencialmente filosóficas, a ética, o sentido da vida, a estética, mas mesmo assim recorrendo a contributos científicos. Outras são questões em que a filosofia é precária, aguardando pela ciência. Ainda há dois séculos, a psicologia era filosofia. Também a cosmologia, disciplina hoje totalmente assimilada pela ciência.
No entanto, dou o benefício da dúvida a EPC, se ele está a pensar no que vou dizer. Pode a ciência definir o que é o princípio da vida, muito mais da vida humana? A biologia assume o conceito de vida como abstracção, essencialmente como coisa com base relativamente objectiva: a vida é o que há de comum nos seres vivos, coisa objectiva que a ciência sabe bem o que é. É, por natureza, um processo contínuo, a nível individual e das gerações. No início, passa por frases igualmente importantes para a evolução intra-uterina de um futuro ser: a fertilização, a nidação, a activação do primeiro gene especificamente humano, a diferenciação, o nascimento para uma vida autónoma. Sendo um contínuo, é quase impossível definir uma única data determinante.
Acho curioso que toda esta discussão "filosófica" esqueça o outro extremo, o da morte. A pressão prática (transplantes, exageros de cuidados médicos) roubou-a à filosofia, ninguém hoje nega o conceito de morte cerebral. Porque é que o mesmo critério não se há-de aplicar ao início da vida? Seguramente que a vida cerebral aparece muito depois da fertilização.
2. O caso Litvinenko desafia toda a minha capacidade de análise racional. Putin está na mira. É, para mim, uma personagem bastante detestável, mas longe de mim pensar que é estúpido e, à primeira vista, o caso Litvinenko é estúpido. Um envenenamento flagrante, com marcas de estado, num país estrangeiro, de um oposicionista menor, numa época em que a Rússia se quer afirmar no G8. Podia haver uma hipótese maquiavélica, a de uma operação ex-KGB para comprometer Putin. Não tenho dados para discutir esta hipótese.
No emaranhado de teias de corrupção em que se embrulhou a Rússia pós-comunista, inclino-me mais a pensar em outros responsáveis, mais ou menos mafiosos. Isto leva-me a uma consequência terrível. Há quem hoje possa dispor de polónio-210, que não se vende em qualquer drogaria. A seguir, não virá uma bomba nuclear?
No meio disto, há coisas que não percebo. Aparentemente, alguém andou a espalhar resíduos de polónio por hotéis, escritórios, até cinco aviões. Não são traços de radiação emitida por eventuais contaminados, são resultado de derrame da substância radioactiva. Quem a usou, com alta sofisticação, não soube acondicioná-la? E logo cinco aviões! Os assassinos andaram a fazer turismo?
No entanto, dou o benefício da dúvida a EPC, se ele está a pensar no que vou dizer. Pode a ciência definir o que é o princípio da vida, muito mais da vida humana? A biologia assume o conceito de vida como abstracção, essencialmente como coisa com base relativamente objectiva: a vida é o que há de comum nos seres vivos, coisa objectiva que a ciência sabe bem o que é. É, por natureza, um processo contínuo, a nível individual e das gerações. No início, passa por frases igualmente importantes para a evolução intra-uterina de um futuro ser: a fertilização, a nidação, a activação do primeiro gene especificamente humano, a diferenciação, o nascimento para uma vida autónoma. Sendo um contínuo, é quase impossível definir uma única data determinante.
Acho curioso que toda esta discussão "filosófica" esqueça o outro extremo, o da morte. A pressão prática (transplantes, exageros de cuidados médicos) roubou-a à filosofia, ninguém hoje nega o conceito de morte cerebral. Porque é que o mesmo critério não se há-de aplicar ao início da vida? Seguramente que a vida cerebral aparece muito depois da fertilização.
2. O caso Litvinenko desafia toda a minha capacidade de análise racional. Putin está na mira. É, para mim, uma personagem bastante detestável, mas longe de mim pensar que é estúpido e, à primeira vista, o caso Litvinenko é estúpido. Um envenenamento flagrante, com marcas de estado, num país estrangeiro, de um oposicionista menor, numa época em que a Rússia se quer afirmar no G8. Podia haver uma hipótese maquiavélica, a de uma operação ex-KGB para comprometer Putin. Não tenho dados para discutir esta hipótese.
No emaranhado de teias de corrupção em que se embrulhou a Rússia pós-comunista, inclino-me mais a pensar em outros responsáveis, mais ou menos mafiosos. Isto leva-me a uma consequência terrível. Há quem hoje possa dispor de polónio-210, que não se vende em qualquer drogaria. A seguir, não virá uma bomba nuclear?
No meio disto, há coisas que não percebo. Aparentemente, alguém andou a espalhar resíduos de polónio por hotéis, escritórios, até cinco aviões. Não são traços de radiação emitida por eventuais contaminados, são resultado de derrame da substância radioactiva. Quem a usou, com alta sofisticação, não soube acondicioná-la? E logo cinco aviões! Os assassinos andaram a fazer turismo?
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