02 dezembro, 2007

Nota gastronómica (XLII)

Alcatra de coelho?

Com alguma publicidade mas ainda maior privacidade, David Lopes Ramos e eu temos mantido correspondência gastronómica assídua. Consideração mútua, mas que só se alimenta com uns pozinhos de polémica cordial, como agora. E até nem se trata bem de uma crítica, mais uma dúvida.

Vem a propósito de um tema que me é muito caro, a cozinha de vinho (não fosse eu especialista em alcatra terceirense) e da sua crónica de ontem no Público, sugerindo uma alcatra de coelho. Aliás, provavelmente por coincidência, há um restaurante muito respeitável em S. Miguel, o Gato Mia, que faz essa alcatra, que ainda não comi.

A cozinha com vinho branco é banal. Num guisado, é juntar e deixar ir. Para um aveludado, uma redução de vinho branco, durante 3-5 minutos com chalotas, ervas ou uma duxelles de cogumelos nunca me deixou mal. Com um gole de moscatel ou verdelho, melhor ainda.

O vinho tinto, este sim é que é difícil. Regra essencial, para qualquer vinho, é tempo e temperatura para evaporar todo o álcool. Mas o tinto tem taninos que precisam de ser suavizados, senão qualquer cozinhado sabe a sopas de cavalo cansado. Nisto, a confecção tem tudo o que se lhe diga. Exemplifico com o polvo guisado à açoriana. Pouco mais do que uma hora de cozedura, o vinho apurado ao ponto certo, porque a alta temperatura e com ebulição forte. Assado é diferente. Experimentem o polvo assado em vinho tinto, que sai frequentemente agreste, com sabor a vinho. Ou então, para evitar o problema do vinho, assadura de mais e o polvo encortiçado.

E porque é que se faz "coq au vin" e não "poulet au vin"? E porque é que a nossa excelente chanfana só pode ser feita com cabra velha? Experimentem fazer uma chanfana de cabrito e depois mandem-me notícias. Leiam o mestre Escoffier quanto às daubes. Provençal e borguinhesa, de carne de boi, muito bem, no forno, recipiente vedado, assadura lenta. Mas já a daube de cordeiro ou a de peru são em forno a temperatura mais baixa, permitindo assadura muito lenta, e com as carnes previamente marinadas, a ganhar sabor. O grande desafio da cozinha de vinho tinto é tempo e temperatura para cozer o vinho sem as carnes se desfazerem.

Muito mais importante é isto nos assados. A temperatura é enganadora. Ponham o forno a 200º, depois meçam a temperatura do molho de uma alcatra, por exemplo. Pouco ultrapassa os 120º, é um ligeiro fervilhar. Por alguma razão uma alcatra demora cerca de 6 horas a assar. Ao fim deste tempo, o vinho está no ponto certo. Mas pode-se deixar coelho a assar durante 6 horas? Se sim, a que temperatura, não certamente a da alcatra de carne? E durante quanto tempo? Não quero dizer com isto que discorde desta ideia de alcatra de coelho, mas desconfio de que é coisa que exige algum cuidado.

Fica-me, dito isto, outra pergunta. Mas afinal a alcatra da Terceira é com vinho tinto ou branco? "Ele há cada questão..." Escreverei sobre isto uma próxima nota.

P. S. (17:30) - Reparo agora que fui injusto para com DLR. Escrevi esta nota sem ter ao lado a sua crónica. Afinal, DLR responde em pormenor às perguntas que fiz. Por isto, pensei apagar esta nota, masa é melhor deixá-la, com este esclarecimento, porque aborda uma questão culinária relevante.

4 comentários:

Anónimo disse...

Não sou especialista em nada, apenas uma pessoa que gosta de apender. Penso que a alcatra tradicionalmente era feita com vinho de cheiro(com o maximo de 10º) e o vinho verdelho que pode chegar aos 13,5º, caso do vimho verdelho dos biscoitos " Pedras do lobo" que recomendo, (não beber a menos e 9ºc, se não perde todas as suas caracteristicas). As alcatras iam para o forno depois de cozido o pão e a massa sovada para a "função" durante toda a noite.O tempo em que estavam no forno e a baixa grauação do vinho faz com que não fiquem com gosto a sopas de cavalo cansado. Fico a sua espera para exprimentar alcatra de coelho e de galinha velha, feitas com vinho verdelho dos biscotos. E quem sabe, se pueder e tiver tempo, preparar na nossa cozinha um dos seus "petiscos" seria interessante, e assim que gostaria que o meu restaurante funciona-se, com trocas de ieias opinioes e expriencias para tirar o maximo proveito da gastronomia. Foi assaim que comecei nesta area na terceira (biscoitos) onde todos partecipavam, o Srº luis brum foi uma das pessoas com quem aprendi, sobre vinhos e muito mais. Aguardo a sua visita

Anónimo disse...

Um comentário complementando o do Gato Mia (para quem não sabe, este é o nome de um notável arejamento da restauração de São Miguel, Açores, desafiando o bafiente panorama que vegeta sobre as cinzas duma ida gastronomia popular).
Na ilha Terceira, por razões sociológicas enraizadas no seiscentista comércio das Índias, existe uma nítida separação entre a culinária de raiz popular e a culinária da alta burguesia afidalgada e comerciante, culinária esta que, sem o foie gras e caviar da francesa, lhe bebeu a cultura e técnica apurada.
Vem isto a propósito da referência à alcatra em forno de pão. Lembro-me bem de que, havendo na família fornos de pão, era aí que se faziam as múltiplas alcatras do Espírito Santo. Mas as da mesa de família eram feitas individualmente e com uma atenção constante. Quando feita no forno do pão, tapada e por lá deixada, fica uma muito boa carne, da família das "daube" provençais. Mas fica também adormecido o enorme potencial de vibração que este prato encerra. O grande acrescento de valor que a cultura e técnica da mesa rica burguesa trouxe foi o de extrair à alcatra todo esse potencial de vibração, fazendo-a subir a um muito alto grau de excelência. Para tal, em primeiro lugar, a alcatra só leva vinho branco (não muito velho para conter a acidulação do molho). Enquanto que a tradicionalleva vinho tinto de cheiro, que deixa um forte e personalizado travo , o vinho branco não abafa no molho os extractos do assado. Por outro lado,a alcatra é vigiada cuidadosamente de forma a que, sempre destapada no forno, se deixe tostar suficientemente a carne de cima para depois, passando-a para baixo, se dar tempo ao molho para ir dissolvendo esse tostado. A minha experiência diz que 2 a 3 viradas por hora são o quanto basta.
É este tostado que torna o molho sublime e vibrante, de par com a complementariedade de a carne se apresentar com duas texturas, a do meio rica de sabores e a das pontas caramelizada.
Uma prova do bom gosto e cultura gastronómica da Terceira é que a alcatra vive por si e não se come com qualquer acompanhamento que não seja um pão fino e rico, como seja a massa sovada, quer seja na mesa popular quer na mesa mais rica
Dito isto, percebe-se porque esta alcatra de confecção exigente, no seu explendor, tem infelizmente um papel restrito na restauração comercial. Os preparos são do mesmo preço, mas o tempo e atenção do cozinheiro(a) tem de ser pago. Daqui que a alcatra nunca fosse prato de restaurante. Hoje, com o despertar turístico passou a oferta "típica" na maior parte dos restaurantes, mas sistematicamente feita na base da versão abandonada no forno (ao menos que ainda fosse na calma do forno de pão, ainda cheio dos aromas da massa).
(desabafo): já me propuseram, em restaurante com maneirismos de pergaminhos, uma alcatra ladeada de enorme batata cozida e, perante a justa indignação, uma saladinha alternativa.

JVC disse...

Há também uma razão muito importante para que a alcatra genuína nunca possa ser um prato de restaurante. É absolutamente essencial o alguidar de barro rústico não vidrado, que ai adquirindo "patine". Ora se a ASAE vir isto num restaurante fecha-o, É absolutamente proibido usar recipientes de barro não vidrado.

Anónimo disse...

So servimos a alcatra com masa sovada
(claro que ha sempre quem peça com batata cozida, arros, e ate piri piri. o que fazer?) Por equanto fazemos em alguidar de barro que vem da Terceira. Para conseguir fazer o que referiu fazemos em duas fazes a versão de restaurante que acelera o processo. 1º E feito em primeiro lugar num tacho para "vibrar" e perder toda a acidez. Em segundo lugar vai para o alguidar de barro não virado para tostar e apurar.Quando o irae proibir os alguidares não a alcatra.