29 dezembro, 2005

O Velho-Natal

Pai Natal! Na minha terra e no meu tempo, chamava-se o Velho do Natal ou o Velho-Natal. O velho querido da minha infância desapareceu. Hoje reunimo-nos em família e dou os presentes aos netos, que já não querem saber daquele velho rotundo que fez parte dos meus mitos de infância. Os meus pais eram católicos fervorosos mas tiveram a intuição de que o Pai Natal era mais atraente do que os presentes do Menino Jesus.

Da mesma forma, o seu espírito religioso compatibilizava bem o presépio com a árvore de Natal. Na família, presépio era o do meu avô, enorme, sempre com um grande céu estrelado que eu o ajudava a pintar. Em casa dos meus pais era reduzido, mas, agora que um dos meus irmãos mais novos o continua a fazer, recordo a magnífica colecção de bonecos que tínhamos, herança recuada, e que, amador, tendo a datar do séc. XVIII, pelo inegualável gosto barroco à Machado dos Santos e pela qualidade artística de cada uma dessas figuras.

Na minha casa, a véspera de Natal era a noite de alforria sem hora marcada para a cama. Era a grande festa da família íntima, porque o jantar de 25, de que hoje sou herdeiro, era do patriarca da família, o meu avô, depois o meu pai, jantar de capão recheado e champanhe. Nos meus tempos de criança, primeiro a missa do galo. Como todas as cerimónias solenes da liturgia, com destaque para as da semana santa, atraía-me muito mais o aparato do que a devoção. Creio que foi assim que nasceu a minha posterior paixão pela ópera.

Depois da missa, toda a família e os amigos íntimos para a ceia. O primeiro a chegar era o meu grande amigo João que, para desespero da minha mãe, fazia logo desaparecer os canapés de queijo com mostarda. Felizmente que não gostava dos demais, que sobravam para os outros convidados. Deixava-se ir a festa até nos pingar o olho de sono. Então, o grande momento.

Preparava-se com antecedência. O meu pai olhava para o relógio e pedia mais silêncio. A expectativa da miudagem era enorme, a olhar para a despensa, anexa à sala de jantar onde toda a gente estava reunida (não tínhamos lareira por onde descer o Velho-Natal). Num segundo, era o clímax. As luzes apagadas, uma campainha a tocar (uma sineta de prata, herança de família, que bem gostava de ter) e o Velho-Natal a correr da despensa para o quintal, deixando atrás o saco das prendas.

Julgam que eram gameboys, iPods, ténis de marca? Eram coisas deliciosas, carrocinhas de madeira, cornetas e tambores, acrescentos ao Mecano, carrinhos de lata e, isso chateava-me como ainda hoje com a minha mulher, umas roupinhas que prefiro ser eu a escolher. Oferta obrigatória, um livro da biblioteca dos rapazes do DN (O Conde de Monte Cristo, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros, O Último Moicano, Moby Dick, Robinson Crusoe, As Viagens de Gulliver, Tom Sawyer, sei lá que mais, perdição das minhas leituras de menino). Um dos meus irmãos gostava mais da condessa de Ségur. Devorava pela enéssima vez um livro que creio chamar-se O Brás e debulhava-se em lágrimas. Hoje gosta de se fazer passar por homem sabido, mas eu acho que essa pieguice de menino ainda lhe influencia a vida.

Com os anos, comecei a ter uma dúvida, porque o meu habitual Velho-Natal fugia um pouco à imagem tradicional. Coitado do meu tio Carlos personificador, que era magro que nem um espeto!

Apesar disto tudo, na penumbra da memória, julgo que acreditei no Velho-Natal até aos 5 ou 6 anos de idade. Que felicidade!

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