16 junho, 2008

O referendo irlandês

O não irlandês ao Tratado de Lisboa tem suscitado reacções desencontradas, que tendem a coincidir em boa parte com a atitude dos comentadores de cá em relação ao tratado. Parece-me que a questão não é linear e deve ser vista de vários ângulos. Em primeiro lugar a questão muito debatida da justeza do referendo. Sou dos que pensam que um tratado desta natureza não deve ser referendado. Os referendos, como foi o do aborto, devem incidir sobre uma pergunta bem delimitada, de compreensão fácil e cuja discussão é acessível, em termos gerais, à generalidade dos cidadãos. Assim, eu próprio não estaria em condições de votar neste referendo, admitindo honestamente que me seria difícil analisar com um mínimo de profundidade e de compreensão um texto jurídico de 294 páginas.

Acresce, como é sabido, que este tipo de referendo serve com frequência (parece que foi o que se passou na França e na Holanda) para projecção de outras motivações, de política interna. Assim sendo, o problema não é de um determinado país, é de todos os outros membros que não têm de ver a política europeia, também deles, dependente da política interna de um outro. No entanto, a questão não é assim tão simples, porque envolve muito de oportunismo político. O referendo foi bom para a França quando da constituição europeia, agora Sarkozy fugiu dele como o diabo da cruz. Foi também um compromisso do nosso PS, agora com o novo tratado foi o que se viu. E alguém pode garantir que, se tivesse havido mais referendos, o resultado da Irlanda seria único?

Mais do que oportunismo, é também questão de desonestidade intelectual. O argumento geral para os vira-referendo foi a diferença entre o Tratado de Lisboa e o anterior projecto de Constituição. A meu ver, é falso. As diferenças eram formais ou em boa parte retóricas. Não li os textos completos, mas tudo o que li me demonstra que as propostas substantivas, nomeadamente sobre a estrutura dos órgãos de poder europeus são exactamente as mesmas nos dois tratados.

Outro aspecto é o do futuro. De acordo com o que tenho vindo a dizer, já não são uma nem duas as declarações no sentido de que nada está perdido, porque um segundo referendo irlandês (“trabalhado”?) pode bem anular este de agora. E até num prazo muito curto, desde que se introduzissem algumas pequenas alterações a “passar a mão pelo pêlo” dos irlandeses, coitados, esses estúpidos com o cérebro derretido em Guiness. Até li que seria uma “adaptação marginal” do texto, ou “ajustamentos de retórica”.

Outro ângulo bem diferente é o da legitimidade de um referendo nacional ser bloqueador de uma decisão comunitária. Protesta-se contra o facto de menos de um milhão de pessoas ter maior peso do que 490 milhões. Repare-se numa nuance significativa. De facto, não são 490 milhões, mas sim os parlamentos representativos desses muitos milhões, isto, naturalmente, sem pretender pôr em dúvida a legitimidade da representação democrática.

Creio que a questão não faz sentido, por ir contra a lógica interestadual e não federativa do projecto europeu. Em qualquer associação, empresa, sociedade, há mecanismos aceites por todos de limitação prática da sua própria capacidade como membros, o que não pode haver é limitações à liberdade absoluta de aceitar ou não a tal sociedade. O que se desenhava com o Tratado de Lisboa era, a meu ver e independentemente de eu estar de acordo, uma alteração muito substancial das regras do jogo com que a Irlanda, e todos os outros, entrou para o projecto europeu.

Dito isto, não parecer fazer sentido colocar a Irlanda perante as consequências, como alguns estão a fazer: se não quer o que todos os outros querem, saia. Alguém se atreveria a dizer isto aos franceses depois do seu não ao referendo anterior? Pior ainda é outra ideia peregrina que vejo hoje ser defendida. Haveria uma Europa política a 26, sem a Irlanda, e uma Europa social e económica a 27, incluindo a Irlanda, mas com este país (e outros que eventualmente ainda venham a não ratificar o tratado) afastado de qualquer decisão política da União Europeia. Não há dúvida de que a imaginação dos eurocratas é fértil, doentiamente fértil.

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