Foi manchete há alguns dias: "os salários na função pública portuguesa são 50% superiores aos privados". Há muito tempo que não lia título tão cretino. Mas não terá entrado logo na cabeça de milhares de leitores? Não vai logo ao encontro da ideia ventilada de que os funcionários públicos são privilegiados? Começo por esclarecer que só fui funcionário público durante curtos quatro anos da minha vida, o que nem chega para os aproveitar para a reforma.
Muito se fala da nossa "incapacidade" para a matemática. O que há é uma pasmosa inumeracia na nossa educação. Como falamos de jornalistas, tive curiosidade em ir ver o que são os nossos cursos de comunicação social. Alguns não apresentam os currículos. Dos que pude ver, sete, só um inclui a estatística (lá tenho sempre de aterrar na Madeira!). Não é importante para a formação dos jornalistas e para a sua critica a coisas como esta notícia ou as sondagens eleitorais? Ou para valorizar as oscilações do Psi-20, os "rankings" das escolas, etc. Já agora, também a maioria dos cursos despreza o português, a história e a geografia, em relação a coisas muito bonitas, como a teoria da comunicação, a semiótica, a psicossociologia da comunicação, o marketing político (se calhar o Carrilho tem alguma razão), etc. Nos EUA, os jornalistas são em maioria, coitados, simples bacharéis em humanidades! Mas sabem escrever e ter uma visão critica, que não depende do seu conhecimento da teoria da comunicação. Entre nós, as universidades continuam a "gozar com o pagode".
E nem falo do correlacionado cálculo de probabilidades, tão essencial na nossa vida corrente e que surpreende sempre a minha gestora de conta quando eu tiro a calculadora antes de aceitar uma sua proposta de investimento. Ou quando peço ao meu médico para chegarmos a uma conclusão final de probabilidade de efeitos e custos, em relação a uma determinada terapia. Imaginam quanta gente instruída já me respondeu que é igualmente provável, no totobola, acertar em todos os jogos e errar todos os jogos? É um teste que me diverte sempre. Já agora, desafio a comentários sobre este problema tão simples.
Não vou transformar esta nota em lição de estatística elementar, mas vou lembrar uma regra básica: uma média não significa nada, se não vier acompanhada pelo desvio padrão, com o que facilmente se calcula o intervalo de confiança. Vou dar um exemplo. No meu último exame, a média foi de 14. Noutra disciplina do meu colega X a média foi de 12. Conclusão jornalística: JVC é melhor professor ou então menos exigente do que X. Nada disto. O meu desvio padrão foi de 3 e, para uma probabilidade de 95%, o que é preciso comparar é o meu intervalo de confiança que é, grosso modo, de 14±6. Se ele se sobrepuser, mesmo que minimamente ao do meu colega X, nenhuma conclusão é possível.
Lembram-se de uma velha piada de um humorista que agora não recordo? "A estatística serve para demonstrar que se eu comer um frango e tu ficares em jejum, cada um se regalou com meio frango". Neste caso, o desvio padrão é igual à média, 0,5, o que significa que o intervalo de confiança dessa média está entre -0,5 e +1,5. Tentem lá fazer estatística com isto!
Voltando à notícia, logo uma coisa estranha que devia logo ter alertado os jornalistas, em simples termos de sentido critico, quando se vê a imagem que a acompanha. Ordenados pela relação entre salário médio da função pública e da actividade privada, estamos à cabeça, progredindo a série do Eurostat, para baixo, de acordo com a ideia que temos da riqueza e do desenvolvimento dos vários países europeus. Na cauda, estão os pobrezinhos da Suécia e do Reino Unido, com 101, da Finlândia, com 94, e do Luxemburgo, com 93. Tenho pena dos seus funcionários públicos, que ganham tão mal! Ou são os outros seus trabalhadores que, em média, ganham muito mais do que os nossos?
Sem entrar em questões técnicas, é preciso começar por ter em conta a distorção do que chamamos de população normal, ou, se quiserem saber o termo matemático, gaussiana. Tomemos como exemplo a altura de uma população. Calculamos a média. Em princípio, porque a população é homogénea, o que fica abaixo da média é sensivelmente igual ao que fica acima da média. Mas a população dos salários é assimétrica. Há muito mais abaixo da média (trabalhadores com menores qualificações) do que fica acima (quadros superiores). Esta assimetria é diferente na função pública e na actividade privada. Na primeira, pesam muito os administrativos intermédios e os técnicos e quadros intermédios qualificados. Na privada, pesam os infelizes milhares de operários e serventes da construção civil, com salário mínimo.
Nestas distribuições assimétricas, é muito útil decompor a amostra. Neste caso, por sectores sócio-económicos. Gostava de saber qual é a tal relação só para o grande contingente dos funcionários intermédios, administrativos e de actividade técnica reduzida. Palpita-me que é de cerca de 1. Mas gostava muito mais de saber se os quadros superiores e dirigentes da função pública ganham vez e meia a mais do que os colegas da privada!
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